Novo comandante do Exército conseguirá maior distensão entre Lula e militares, diz especialista
O general Tomás Miguel Miné Ribeiro Paiva, comandante militar do Sudeste, foi anunciado neste sábado (21/1) para o posto em substituição ao general Júlio César de Arruda, demitido pelo presidente.
A troca no comando do Exército determinado pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva e anunciada neste sábado (21/1) pode ser uma forma de distensionar a relação entre o novo governo federal e os militares, analisa Adriana Aparecida Marques, professora de Defesa e Gestão Estratégica Internacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
Ela diz que o novo escolhido para o posto, o general Tomás Miguel Miné Ribeiro Paiva, é conhecido por uma trajetória de defender o legalismo ao mesmo tempo que mantém um bom trânsito com outros militares.
Na última semana, Paiva fez um discurso em que defendeu o respeito ao resultado das últimas eleições presidenciais, em um tom diferente de outros militares, que abriam espaço para a contestação da vitória de Lula.
"Quando a gente vota, tem que respeitar o resultado da urna. Não interessa. Tem que respeitar. É essa a convicção que a gente tem que ter, mesmo que a gente não goste", disse ele no Quartel-General Integrado (QGI).
Segundo Marques, o movimento de distensionamento deveria ocorrer dos dois lados e o comandante demitido, o general Júlio César de Arruda, não expressava disposição para reconciliação com o novo governo.
Veja abaixo a entrevista com a professora da UFRJ:
BBC News Brasil - O que a senhora achou da escolha do general Paiva para o comando do Exército? Qual é o perfil dele?
Adriana Aparecida Marques - Acho que, dentro das circunstâncias, o general Paiva foi a melhor escolha que o presidente Lula poderia fazer no momento, justamente pelo perfil dele, que trabalhou durante muitos anos como ajudante de ordens do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso. Já foi chefe no passado do Batalhão da Guarda Presidencial, uma unidade que esteve ali no centro dos problemas dos atos golpistas do dia 8 de janeiro.
Havia também uma questão de identidade aí. O general Arruda é das Forças Especiais do Exército, assim como o general [e ex-ministro da Saúde Eduardo] Pazuello e o general [e ex-ministro-chefe da Secretaria Geral da Presidência Luiz Eduardo] Ramos, ou seja, todo o entorno mais radical do ex-presidente Bolsonaro.
Assim, seria muito difícil para Lula conduzir qualquer coisa com o general Arruda à frente. O general Paiva tem um perfil muito diferente, mais discreto e menos engajado nas questões políticas.
BBC News Brasil - Como o general Paiva é visto internamente no alto escalão do Exército?
Marques - Olha, das pessoas com quem eu conversei, eu sempre ouvi muitos elogios justamente pela trajetória dele de ser um oficial legalista, isso é muito claro. Quando começaram a circular aquelas mensagens de bolsonaristas acusando os generais do Alto Comando de trair o país, o general Paiva estava sempre nessa lista justamente por ser legalista.
E quando ele assumiu o Comando Militar do Sudeste não foi muito fácil porque ele substituiu o general Ramos, que fez campanha abertamente para o ex-presidente enquanto estava na ativa. Então o general Paiva mudou o perfil do comando ali e passou a ter uma postura mais mais discreta. Parou de fazer política dentro da unidade. Acho que isso é uma sinalização importante.
BBC News Brasil - O discurso da última quarta-feira, em que o general Paiva pediu respeito aos resultados das últimas eleições presidenciais, teve alguma influência em sua nomeação?
Marques - Acho que existe alguma tensão no alto comando entre esses oficiais que são mais legalistas e os outros que eram mais vinculados ao antigo governo. A gente não sabe a dimensão dessa tensão, porque ainda é um tema muito obscuro para a gente.
Não sei se nesse discurso ele já sabia de alguma possível mudança, mas o presidente Lula já estava insatisfeito com o general Arruda desde o dia 8 de janeiro, talvez até antes disso. Mas depois de Arruda ter colocado tanques para proteger manifestantes golpistas dentro do quartel-general do Exército em Brasília [segundo reportagem do jornal The Washington Post] acho que a situação começou a ficar insustentável.
Acho que o general Paiva queria passar, com o discurso, o recado de que havia generais no alto comando que são legalistas. Mas, olha, o fato de a pessoa ser legalista é o mínimo que a gente pode esperar de um militar no regime democrático. Não sei se deve tecer tantas loas ao legalismo dele porque isso é uma obrigação.
BBC News Brasil - O que vai mudar com a entrada do general Paiva?
Marques - Certamente fazer qualquer tipo de de contenção dos militares que estavam envolvidos nos atos golpistas do dia 8 de janeiro era muito mais difícil com o general Arruda do que será agora com o general Paiva. Então, assim as coisas imediatamente ficam melhores nessa parte.
Ao mesmo tempo, acho que ele tem um grande trânsito com todos os militares porque Paiva já trabalhou com o general [Eduardo] Villas Boas [ex-assessor do Gabinete de Segurança Institucional da Presidência com Bolsonaro], algo que poderia até fazê-lo ser visto com desconfiança.
Eu imagino que Paiva vai ter habilidade para conduzir um distensionamento, melhor que o general Arruda. Porque isso deve ocorrer pelos dois lados. Até então o presidente Lula vinha com essa postura de distensionar, mas o general Arruda não parecia muito disposto a algo nesse sentido não.
BBC News Brasil - A demissão do comandante do Exército com 20 dias de governo pode ser interpretada pelos militares como uma demonstração de força do presidente Lula e causar mais fricção?
Marques - O ex-presidente Bolsonaro era o comandante supremo das Forças Armadas e demitiu o ministro da Defesa e os três comandante das Forças Armadas. O presidente Lula, então, também está usando a prerrogativa que ele tem de ter autoridade em relação às Forças Armadas. É absolutamente normal, assim como o fato de o general Paiva ser um oficial legalista é absolutamente normal.
Lula não está hostilizando, não está sendo revanchista, está cumprindo o papel dele. Ele está comandando. Porque a relação entre o poder político e as Forças Armadas, num regime democrático, é de obediência. Quem manda é o poder político. Os militares obedecem e, no caso, o presidente deu uma ordem. O comandante do Exército não cumpriu o que está exercendo a autoridade dele.
É que a gente viveu nos últimos anos uma situação tão disruptiva, disfuncional, na área das relações civis com os militares que às vezes coisas mais comezinhas, princípios básicos de um regime democrático, às vezes nos deixam perplexos.
BBC News Brasil - E como fica neste momento a situação do ministro da Defesa, José Múcio, que era criticado por fazer defesa de manifestantes golpistas antes do 8 de janeiro e, segundo reportagens, esteve com o cargo ameaçado?
Marques - Bom, primeiramente, houve essa declaração que ele fez de que escolheu os comandantes das Forças Armadas pela internet. Viu o mais antigo [comandante] e escolheu o mais antigo. Mas o critério de antiguidade não é escolher o mais antigo e sim escolher entre os mais antigos, o que é diferente.
O Múcio até agora fez péssimas escolhas, deu péssimas declarações e houve medidas completamente desconectadas da conjuntura política que nós estamos vivendo agora. Foi colocado no cargo pelo presidente Lula, que deve ter tido um motivo para isso. Mas até agora foi mais de contemporizar e botar panos quentes do que de fato ter uma atuação mais firme.
- Este texto foi publicado em https://www.bbc.com/portuguese/brasil-64361851