O passado difícil do homem que ganhou fama como rei de um castelo de areia
Márcio Mizael Matolas ficou conhecido depois de vídeo sobre ele ser divulgado na imprensa; há 22 anos, ele esculpe castelos de areia em praia do Rio.
Da infância nas ruas à fama como rei de um castelo de areia. Márcio Mizael Matolas, 44 anos, passou a receber visitas frequentes de curiosos e jornalistas desde que um vídeo curto sobre ele, feito pela agência de notícias AFP, foi divulgado pela BBC Brasil e outros veículos de comunicação. É tanta entrevista e conversa com quem passa por lá que falta tempo para retocar sua obra.
Após a divulgação das imagens, a BBC Brasil recebeu, pelo Facebook e Instagram, vários comentários de leitores pedindo mais informações sobre ele. Fomos, então, atrás de mais detalhes da vida do homem que usa grãos de areia para esculpir em detalhes as torres e portais de uma "fortaleza" que não resiste às águas da chuva.
Ao lado de sua inseparável cadela, batizada de Humana, ele esclarece que passa a maior parte do tempo nos castelos que constrói na praia, mas também tem uma casa de verdade, na zona oeste do Rio de Janeiro.
"Eu não moro dentro do castelo de areia. Passo a maior parte do tempo aqui, mas tenho uma casa na Tijuquinha. Vou e volto. Às vezes me abrigo ali dentro quando está chovendo."
Conhecido na vizinhança como "Castelo", Márcio contou à BBC Brasil como começou sua trajetória de escultor de castelos de areia na Praia do Pepê, na Barra da Tijuca. A história da vida dele, de certa forma, reflete a sua obra.
Por um lado, apreciamos a grandiosidade e a beleza dos detalhes do castelo feito com areia, água e "um pouco de fixador" borrifado principalmente nas torres para durarem mais tempo. Por outro, a bagunça de suas bugigangas.
"As pessoas fantasiam. Só olham de lá para cá. Mas tem o outro lado", diz Márcio.
Infância difícil
Filho de pai negro e de mãe branca e loira, Márcio sofreu na infância com a desconfiança e as gozações de parentes e vizinhos.
Ele foi o único dos filhos a nascer com a pele negra. As quatro irmãs eram brancas como a mãe.
"Eu era a ovelha negra, o patinho feio", lembra.
O pai ele não chegou a conhecer. Foi assassinado a facadas uma semana antes do seu nascimento. A relação com a mãe nem sempre era carinhosa e, aos 7 anos, Márcio resolveu sair da casa em Duque de Caxias, na Baixada Fluminense, passando a morar na rua.
Sobreviveu catando e vendendo gibis. "Mais tarde acabei montando um estande daqueles de feira e passei a ganhar um bom dinheiro", conta.
O prazer da leitura e a arte de esculpir
Márcio não aprendeu a ler na escola, mas sim com moradoras do bairro onde dormia. Até hoje conserva o hábito da leitura e montou seu sebo ao lado da escultura de areia. Não vende os livros. Pede doação de outras publicações ou dinheiro.
Por volta dos dez anos, viu um homem construindo pirâmides de areia na Praia do Flamengo e se encantou com a obra. "Pedi que ele me ensinasse e ele disse 'você não está vendo eu fazer? Então vem aqui, junta areia e faz'."
Foi na Praia do Flamengo que começou a construir esculturas de areia - também vendia bonecos de papel que criava. De lá foi para Copacabana e chegou a viajar para a Bahia, onde participou de um evento de escultores de areia.
"Depois voltei para Copacabana. Lá se ganha mais dinheiro, mas também tem mais conflito", conta. "Não era briga com os outros escultores, que são oito. Era o resto. É um encontro de tribos. Não havia sossego, e gosto de ficar quieto."
Um dia resolveu caminhar ao longo de todo o calçadão da Barra da Tijuca, procurando um ponto ideal para erguer sua obra.
"Achei esse local e construí um castelo." Ali se estabeleceu há 22 anos. A obra ganhou mais tarde uma base de madeira resgatada após uma ressaca. Embaixo dela montou um depósito onde guarda livros, objetos pessoais e outras quinquilharias.
A bagunça incomoda alguns vizinhos, que já acionaram a fiscalização municipal. "Mas outros vizinhos vêm e o defendem. É assim mesmo. Uns gostam e outros não", comenta Beto, um guardador de carros em frente ao local.
"Às vezes alguém me dá um toque para arrumar as coisas, para aparecer só areia e nenhum cacareco. Mas nunca ninguém pediu que eu saísse daqui. Sei que não tem como agradar todo mundo", diz Márcio.
Perguntado sobre o que faz com o lixo, ele conta que joga tudo na lixeira do calçadão. Se precisa ir ao banheiro, usa o do posto de salva-vidas.
Enquanto conversava com a reportagem da BBC Brasil, um homem que caminhava no calçadão urinou em um arbusto ao lado do castelo de areia. "Viu só que deselegância? E esse é um morador daqui. Imagina se sou eu...", comenta indignado.
A única vez que sofreu uma advertência foi quando a fiscalização municipal ordenou que ele retirasse um tapete de grama artificial que havia colocado em cima da areia para brincar de minigolfe. "Os americanos adoravam dar umas tacadas", recorda.
O castelo já foi destruído algumas vezes. "Deu raiva, mas o maior castelo que eu tenho são minhas mãos", poetiza.
Enquanto conversava com a BBC Brasil, vários moradores vieram cumprimentá-lo. Um deles, chamado Fernando, traz diariamente ração para Humana e escova seu pelo.
Outro homem que deixava um prédio em frente ao calçadão disse que Márcio é admirado pela maioria dos vizinhos.
"Ele tem uma história muito bonita. Minha filha já tirou muitas fotos naquele castelo. E você sabia que ele é um ótimo jogador de futevôlei?", diz o vizinho enquanto caminha em direção ao mar. Outro morador conta como são parceiros de batucadas e admira o amigo durante uma entrevista para uma emissora de televisão.
Renda mensal
Dentro do castelo, Márcio guarda vários objetos, como um caderno com seu planejamento financeiro. Ele diz ganhar até R$ 1 mil por mês entre doações e trabalho prestado aos comerciantes na praia. "Ajudo nas barracas, pinto as traves de vôlei e futevôlei, coisas assim."
Com o dinheiro sustenta sua casa, compra material de arte e agora economiza para fazer um tratamento nos dentes. Tinha um telefone celular, mas mergulhou no mar e esqueceu de tirá-lo do bolso. Resolveu não comprar outro.
Sobre relacionamentos, conta que ficou casado durante dois anos, mas não deu certo. "Ela não aguentou toda essa minha liberdade", brinca.
Márcio passa o dia apenas de bermuda. Reclama com o jornalista que pede que ele vista uma camiseta para aparecer na televisão. Um par de sapatos jogados num canto do castelo foi doação de um morador, mas raramente usado. "Esse sim é um terror", ri.
Ele tem seus planos. De imediato, quer reconstruir outro castelo. "Fiquei dando tanta entrevista que acabei não retocando. Está na hora de construir outro, mas não dava para fazer muito rápido porque a coluna não aguenta mais", diz aos risos.
Também quer emagrecer alguns quilos porque "os joelhos não aguentam" - o da perna esquerda guarda as cicatrizes de um atropelamento aos 14 anos, enquanto soltava pipa.
Sua maior ambição é montar um ateliê para trabalhar em sua arte. "Minha casa é muito pequena e aqui não posso fazer bagunça. Quero ter um lugar para desenvolver tudo o que sei, que não é só com areia, mas também outros materiais como madeira, papel e pintura", planeja.
"Quero viver disso, fazer minhas exposições. Tenho que pensar em mudança, assim como a mudança que acontece todos os dias em meu castelo."
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