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O que os 'barracos do Leblon' e do Gero podem nos dizer sobre o Brasil

Escritora e professor ouvidos pela BBC News Brasil apontaram atitudes 'patriarcais' e 'classistas' do que descreveram como sendo características típicas da sociedade brasileira.

29 set 2020 - 10h53
(atualizado às 10h59)
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Vídeo com briga de mulher em um conversível no Leblon viralizou nas redes
Vídeo com briga de mulher em um conversível no Leblon viralizou nas redes
Foto: Reprodução/Twitter / BBC News Brasil

Vídeo 1: Duas mulheres de biquíni e um homem passeiam em um carro conversível no Leblon, bairro de classe média alta do Rio de Janeiro, famoso nacionalmente por servir de cenário para novelas da TV Globo. Ao passarem por uma rua movimentada, atraem a atenção da multidão. Um copo de água é arremessado por uma frequentadora de um bar e atinge uma das mulheres. A vítima desce do carro e ataca sua agressora. Um homem que a acompanha na mesa de bar se levanta e corre atrás da mulher, tenta agredi-la e acaba tirando a parte superior de seu biquíni, enquanto o carro onde o grupo estava bate em retirada.

Vídeo 2: Um homem, aparentemente embriagado, grita dentro do restaurante italiano Gero, um dos mais caros de São Paulo, localizado no bairro dos Jardins, também de classe média alta. Outros clientes se envolvem na discussão e pedem para que ele deixe o local. O homem, que seria médico, alega ter sido desrespeitado, ao que um funcionário do restaurante rebate, dizendo que ele desrespeitou um garçom. Já do lado de fora, ele discute com dois homens, alega que foi chutado por um deles e ameaça registrar um Boletim de Ocorrência (BO). Ele pega o celular e liga para quem diz ser "seu delegado" ao que um dos homens diz ser irmão de um "delegado federal". Acrescenta que ele e seu amigo são "educados" e "têm berço". Funcionários do restaurante tentam apartar a confusão, que quase termina em agressão física, enquanto que, ao fundo, um coro de mulheres pede repetidamente pelo registro médico do homem.

Os dois vídeos viralizaram nas redes sociais no último fim de semana, e novas trocas de acusações entre as partes deram mais gás ao assunto.

Mas, além dos memes, as imagens geraram discussões mais profundas pelos usuários.

Especialistas ouvidos pela BBC News Brasil apontaram atitudes "patriarcais" e "classistas" do que descreveram como sendo características típicas da sociedade brasileira.

'Controle de corpos'

Comentando sobre o caso do Leblon, a escritora, jornalista e cientista política Débora Thomé, criadora do bloco de Carnaval "Mulheres Rodadas", diz que o episódio reflete um "paradoxo".

"Acho que meu maior ponto sobre o episódio do Leblon diz respeito ao paradoxo brasileiro de uma sociedade que parece ao mundo liberada sexualmente, mas que ainda se vê regida pelo ciúme e, como eu gosto de falar, controle de corpos", diz ela.

"Somos ainda regidas por isso dentro do sistema patriarcal. Ou seja, menos me interessa a mulher estar nua ou de biquíni ou o que for, mas o fato de a outra, por ela passar assim na frente do companheiro dela, sentir-se no direito de violentá-la", acrescenta.

"Ou seja, trata-se de uma discussão sobre feminismo", conclui.

'Delegados de estimação?'

Renato Janine Ribeiro, professor de Ética e Filosofia Política na USP e ex-ministro da Educação, assinala que o episódio no restaurante Gero, de São Paulo, reflete um Brasil "desigual".

"Parte-se do princípio de que eu sou superior, não existe igualdade, que não faz sentido a igualdade, e eu posso dizer o que quero, quando quero e como quero", diz ele.

"No fundo, ecoa o legado da escravidão, de uma sociedade baseada exploração do outro", acrescenta.

Janine Ribeiro lembra outros episódios recentes semelhantes, como o caso de uma mulher que, logo após seu marido ser abordado por um fiscal da Prefeitura do Rio de Janeiro sobre o uso de máscaras, sentencia: "Cidadão, não? Engenheiro civil, melhor do que você".

"Episódios como esses mostram que uma parcela da sociedade brasileira acha que tomar uma atitude assim é inteiramente normal. E fica chocada quando exposta", opina.

"Essas pessoas acham que podem fazer isso porque sempre fizeram. O fato de o presidente da República ter atitudes semelhantes acaba dando autorização a esse tipo de coisa", acrescenta.

Ele vê como positiva, no entanto, a repercussão desses episódios.

"Uma coisa é positiva. Quando esses vídeos são divulgados, a repercussão sobre eles é negativa. A sociedade brasileira está começando a ficar indignada com certos costumes prepotentes. Tanto é que, não raro, essas pessoas se retiram das redes sociais ou fazem um pedido público de desculpas", diz.

Janine Ribeiro ressalva que, apesar de "ajudar a melhorar a sociedade", a reação a eventos como esse é "limitada".

"Existe toda uma parcela dessa sociedade que fica indignada com esse tipo de atitude, mas não se revolta contra a miséria, contra a desigualdade social, que é o cerne do problema. Ou seja, é progressista em matéria comportamental e conservadora em matéria econômica, social", argumenta.

"Ou seja, essa crítica tem alcance limitado. Pois essa noção de superioridade está atrelada à desigualdade social, ou seja, ao pensamento de que 'não somos iguais, somos superiores'", conclui.

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