O verdadeiro perigo é o mercado ilegal, diz autor de projeto da maconha
Os recentes casos de legalização da maconha no Uruguai e nos Estados Unidos reacenderam o debate global sobre o tema. Os governos de José Mujica e dos Estados norte-americanos de Colorado e Washington adotaram propostas diferentes, mas que partem de princípios similares. Entre eles estão está a convicção de que a proibição da droga não impede seu consumo e o entendimento de que não há fundamento para que ela seja distinguida das drogas lícitas como o cigarro e o álcool.
É nesta direção que André Kiepper, analista de Gestão de Saúde da Fundação Oswaldo Cruz, propôs, através do portal e-Cidadania, a regulamentação da maconha. Em quatro dias, a ideia ultrapassou a barreira dos 20 mil apoios e, com isso, entrará em discussão do Senado, conforme anunciado essa semana por Cristovam Buarque. É esse debate que poderá fazer com que a proposta tramite como projeto de lei.
Sua proposta é um misto dos casos uruguaio e americanos. “A proposta apresentada ao Senado é a de um modelo híbrido, baseado nas leis do Uruguai, Colorado e Washington, que preveem o cultivo caseiro, a criação de clubes de auto cultivadores e o licenciamento de estabelecimentos, registrados e fiscalizados pelo Estado, de cultivo, manufatura e venda, no atacado e no varejo”, explica.
André acredita que o principal impedimento à legalização na maconha é o desconhecimento da droga. “Percebo que a oposição está, na verdade, entre aqueles que já estão bem esclarecidos sobre o tema, e os que ainda não aprenderam quase nada sobre ele”, afirma. Para ele, o mesmo ocorre com a crença muito difundida de que a maconha é porta de entradas para outras drogas. “A verdadeira porta de entrada é o mercado ilegal, não regulado”, resume.
Leia abaixo a íntegra da entrevista concedida ao Terra.
Terra - Fale um pouco sobre sua trajetória profissional e o que o levou ao projeto.
André Kiepper - Sou servidor da Fundação Oswaldo Cruz e faço mestrado em Saúde Pública na Escola Nacional de Saúde Pública, onde pesquiso os modelos de regulação do uso medicinal da maconha nos EUA. Já são 21 estados, de 50, que autorizam o uso medicinal. Colorado e Washington, este ano, tornaram-se os primeiros estados a regular, também, o uso recreativo. No final de 2013, comecei a acessar o site do Senado do Uruguai para acompanhar a tramitação do Projeto de Lei de regulação da maconha desse país e, ao mesmo tempo, acessar o site do Senado brasileiro, para acompanhar a tramitação do PLC 37/2013, que é o Projeto de Lei da Câmara com tendência totalmente oposta ao que o resto do mundo está legislando sobre drogas. Então, nestas buscas pelo site do Senado brasileiro, conheci o e-Cidadania, um portal criado para fomentar a participação cidadã. Vi nesta ferramenta a oportunidade de pautar o tema no Congresso Nacional.
A proposta da Câmara |
O projeto de lei do deputado Osmar Terra (PMDB-RS) altera a Lei Antidrogas, incentiva a internação de usuários e amplia pena de traficantes; a ideia é criticada por apoiar a criminalização dos usuários |
Terra - Sua proposta obteve mais de 20 mil apoios no portal e-Cidadania. Você ficou surpreso com a adesão popular?
André - Cadastrei a proposta no site do Senado em meados de dezembro de 2013. Demorou mais de 01 mês para que a proposta fosse publicada, mas a divulgação da campanha de coleta de assinaturas só começou mesmo no dia 05 de fevereiro. No primeiro dia houve 5 mil apoios. No segundo dia, mais 8 mil, totalizando 13 mil apoios. No terceiro dia, chegamos a 16 mil apoios. E no quarto dia, um sábado, concluímos a campanha com mais de 20 mil apoios. Fiquei um pouco surpreso, sim, com a rapidez com que aconteceu.
Terra - O senador Cristovam Buarque afirmou que o tema deve em breve entrar na pauta do Senado. Qual é sua expectativa?
André - Ano passado ficou interdito que não haveria oposição política ao PLC 37/2013, por causa das eleições de outubro de 2014. Para mim, inadmissível que senadores se abstivessem de reformar a Lei de Drogas do Brasil sob o argumento do efeito negativo que o tema poderia causar nas urnas. Quem sabe a chegada desta proposta sirva como contrapeso para as futuras decisões sobre o PLC 37/2013, e revolucione a forma como políticos legislam sobre drogas no Brasil? Esta semana, durante seu primeiro pronunciamento sobre o tema, no plenário, o senador Cristovam Buarque enfatizou a importância da proposta ter chegado ao Congresso através de uma ação de iniciativa popular. Ao dizer que o tema é muito relevante, o senador nos transmitiu esperança. Não temos certeza de nada, mas sabemos, ao menos, que o debate começou nas mãos de um verdadeiro educador, que sofreu perseguição política durante o regime militar, exilou-se na França, e que, agora, não deixará que o assunto seja boicotado, como sempre foi.
Terra - Cristovam também disse que quer ouvir líderes religiosos durante a discussão da proposta. Acredita que parlamentares ligados a igrejas podem dificultar a tramitação da proposta, caso vire um projeto de lei?
André - A verdadeira religião ensina a respeitar e conviver com as diferenças. Líderes religiosos compreenderão e apoiarão a proposta.
A proposta de André Kiepper no portal e-Cidadania |
Ideia Central: Regular o uso recreativo, medicinal e industrial da maconha. Problema: O mercado não regulado da maconha gera violência, crimes e corrupção. O usuário é penalizado e milhares de jovens estão presos por tráfico. Exposição: A maconha deve ser regularizada como as bebidas alcoólicas e cigarros. A lei deve permitir o cultivo caseiro, o registro de clubes de auto cultivadores,licenciamento de estabelecimentos de cultivo e de venda de maconha no atacado e no varejo e,regularizar o uso medicinal. |
Terra - O Brasil é um país grande e diverso, composto por regiões que muito diferem entre si em termos culturais, sociais e políticos. Essa pluralidade não pode ser um empecilho à sua proposta?
André - A pluralidade ou grandeza de uma país não traz nenhum empecilho para um modelo de regulação. A grande mudança será a de que, ao se estabelecer as regras de produção, industrialização, comercialização e uso da maconha, ou seja, de todas as atividades econômicas envolvidas nesta relação de consumo, o mercado ilegal, que não oferece garantias de qualidade e segurança ao usuário, perderá espaço. A regulação reposicionará um bem de consumo que está, até então, sob o poder de facções criminosas, e o colocará sob poder do Estado. Eu compartilho com a visão do presidente do Uruguai, o Mujica, de que com uma regulação responsável os índices de violência e criminalidade no Brasil melhorarão.
Terra - Na sua opinião, quais são os principais grupos que apoiam e quais os principais grupos que se opõem à legalização da maconha?
André - Não diria que haja uma dicotomia bem estabelecida entres grupos ou segmentos sociais, pró e contra a regulação. Percebo que a oposição está, na verdade, entre aqueles que já estão bem esclarecidos sobre o tema, e os que ainda não aprenderam quase nada sobre ele.
Terra - Uruguai, Holanda e alguns Estados americanos legalizaram a droga. Algum destes casos pode ser de modelo ao Brasil, ou temos que adotar um novo formato de legalização?
André - A proposta apresentada ao Senado é a de um modelo híbrido, baseado nas leis do Uruguai, Colorado e Washington, que prevêem o cultivo caseiro, a criação de clubes de auto cultivadores e o licenciamento de estabelecimentos, registrados e fiscalizados pelo Estado, de cultivo, manufatura e venda, no atacado e no varejo. Neste modelo de regulação há diversas regras. Qualquer tipo de propaganda ou publicidade é proibida. A quantidade de licenças de funcionamento que uma pessoa jurídica pode receber é limitada a pouco mais de 03, como forma de controle de mercado. E há também restrições sobre a quantidade de maconha que uma pessoa pode adquirir, por operação, ou portar consigo. O Colorado, por exemplo, proíbe o uso em locais públicos. Já o Uruguai permite. No Brasil, já há leis de regulação de bebidas alcoólicas, cigarros e medicamentos, promulgadas no final da década de 90, que foram depois aperfeiçoadas no sentido de criar restrições quanto à propaganda e ao uso. A ideia proposta ao Senado Federal é que a maconha receba o mesmo tratamento, inspirado nestes modelos, já bem estabelecidos, de regulação do álcool, do cigarro e dos medicamentos, considerando as características peculiares de produção, industrialização, comercialização e uso da erva.
Terra - Se possível, fale de sua relação com a maconha. Você é ou já foi usuário? Teve, tem ou planejaria ter, em caso de aprovação da lei, plantação da droga?
André - Neste momento, meu interesse de pesquisa é o uso medicinal, que já está muito bem estabelecido, tanto na América do Norte, quanto em diversos países da Europa, mais notadamente em Israel, onde o uso se dá inclusive por idosos que sofrem das mais diversas doenças crônicas e degenerativas. Em alguns estados norte-americanos, o uso medicinal já está aprovado, também, para crianças com câncer, epilepsia ou convulsão, cujos pais administram aos filhos, via oral, diariamente, gotas do óleo extraído das flores. Segundo Lester Grinspoon, professor de psiquiatria de Harvard, a maconha é mais comumente, mas não exclusivamente, usada no tratamento de náuseas e vômitos severos da quimioterapia do câncer, glaucoma, epilepsia, esclerose múltipla, dor e espasmo de paraplegia e tetraplegia, HIV/AIDS, dor crônica, enxaqueca, doenças reumáticas, síndrome pré-menstrual, cólicas menstruais, dores do parto, colite ulcerativa, doença de Crohn, dor do membro fantasma, depressão e hiperemese gravídica.
Terra - Um dos principais argumentos contra movimentos de legalização da maconha é o entendimento de que ela abre portas para outras drogas. O que você diz para os críticos que se baseiam neste ponto de vista?
André - Não existe nenhum estudo que comprove esta teoria. De acordo com a Academia Nacional de Ciências dos Estados Unidos, a maioria dos consumidores de drogas começa pelo álcool e pela nicotina, e não pela maconha. A maconha pode ser a primeira droga ilícita a ser consumida por ser a mais fácil de encontrar. A exposição do usuário de maconha a outras drogas, ao comprar no mercado ilegal, aumenta a sua probabilidade de comprar e usar outras drogas ilícitas. Com isso se conclui que a verdadeira porta de entrada é o mercado ilegal, não regulado.