O vírus que atinge milhões em todo o mundo e pode causar microcefalia em bebês - e não é o Zika
Ele é pouco conhecido pelo público e foi ofuscado pelo vírus Zika: o citomegalovírus (CMV), que era tido como responsável pela maior parte dos casos de microcefalia e surdez no mundo e que volta a causar alertas da comunidade médica internacional.
"Enquanto todos se preocupam com os bebês infectados pelo Zika, com razão, há outra infecção viral que causa milhares de má-formações congênitas nos Estados Unidos a cada ano", disse ao jornal The New York Times o médico Mark Schleiss, diretor de doenças infecciosas pediátricas da Escola de Medicina da Universidade de Minnesota.
"Não só nos Estados Unidos, mas também na Europa o CMV é a principal causa de má-formações congênitas", disse à BBC Mundo, serviço em espanhol da BBC, o neuropediatra espanhol Alejandro Reyes Martín, professor da Universidade de Alcalá de Henares.
Não há dados precisos sobre o Brasil, mas só nos Estados Unidos entre 20 mil e 40 mil bebês nascem com CMV a cada ano. Pelo menos 20% deles, cerca de 8 mil, possuem ou desenvolvem problemas permanentes como microcefalia, surdez e deficiência intelectual.
Também faltam números precisos sobre a prevalência do vírus no mundo, mas calcula-se que a incidência da infecção congênita por CMV fique entre 1% e 5% dos nascimentos, de acordo com um estudo feito em 2013 na Universidade da Cidade do Cabo, na África do Sul.
No Brasil, país com mais casos de microcefalia relacionada à Zika, não há dados consolidados sobre a prevalência do vírus, já que a doença não é de notificação obrigatória, de acordo com o Ministério da Saúde. Isso significa que os profissionais de saúde não são obrigados a registrar os casos da doença que chegam até eles.
Segundo um estudo do hematologista Alfredo Mendrone Junior, do Hemocentro de São Paulo, pesquisas feitas na população brasileira de 15 a 45 anos revelaram a presença de anticorpos contra o CMV - que indica que houve infecção pela doença - em mais de 80% dos participantes no Rio de Janeiro, em São Paulo, em Salvador e no Estado de Santa Catarina.
O CMV é considerado uma infecção sexualmente transmissível (IST) mas sequer aparece no site no Departamento de IST, Aids e hepatites virais do Ministério.
No entanto, médicos brasileiros apontam o vírus como o principal causador de alterações do sistema nervoso em bebês até a aparição do vírus Zika - e ainda uma fonte de preocupação.
"Sempre que vemos algumas alterações nas crianças, pensamos no CMV primeiro. Principalmente quando vemos calcificações (cicatrizes no cérebro) nas tomografias", disse à BBC Brasil a infectologista Maria Ângela Rocha, do Hospital Universitário Osvaldo Cruz, em Pernambuco.
"É por isso que, quando os casos de Zika apareceram, fizemos questão de investigar primeiro a possibilidade do CMV. E até hoje fazemos isso com todas as crianças."
'Devastador'
O CMV pertence à família dos vírus da herpes. Ele se propaga nos fluidos corporais como saliva, urina, lágrimas e leite materno e pode ser transmitido até pelo contato próximo com crianças pequenas infectadas para, por exemplo, trocar suas fraldas.
O vírus também é transmitido através do beijo e das relações sexuais. Uma vez que ele está no organismo, fica ali por toda a vida e pode ser reativado. O portador não ficará doente outra vez, mas pode passar a infecção adiante.
De acordo com o Ministério da Saúde, a maioria das infecções por CMV não apresenta sintomas - pode parecer uma gripe leve. Sintomas mais graves geralmente aparecem em mulheres que têm o sistema imunológico fragilizado, por causa do vírus da Aids, por exemplo.
Mas os especialistas afirmam que o CMV pode ser "devastador para o feto", caso a infecção seja contraída no início da gravidez.
"Quanto mais cedo o vírus chega no feto, mais repercussões clínicas vão acontecer, ou até mesmo o aborto", diz Angela Rocha.
"Se a infecção acontece a partir do sétimo, oitavo mês, o bebê pode não ter microcefalia, mas ter outros sintomas síndrome congênita, como aumento no tamanho do fígado. Ele pode até parecer saudável ao nascer, mas ter déficit de atenção ou de aprendizado, alterações auditivas."
A descrição é semelhante ao que os médicos já sabem sobre a manifestação do vírus Zika nos bebês infectados ainda na barriga da mãe, mas Rocha esclarece que, no caso do Zika, os efeitos no cérebro têm se mostrado mais imprevisíveis - e perigosos.
"As calcificações (cicatrizes) que o CMV deixa no cérebro das crianças são em locais específicos, ao redor dos ventrículos. Já com o Zika, elas aparecem de maneira mais anárquica em várias regiões do cérebro. Isso pode deixar mais sequelas", diz.
Prioridade na vacina?
Até agora não há uma vacina para prevenir a infecção pelo CMV.
Por isso, os especialistas internacionais e brasileiros dizem que são necessários mais programas de conscientização das mulheres grávidas sobre o vírus e seus efeitos, para evitar que a infecção se propague e minimizar os riscos de contágio do bebê.
O Ministério da Saúde recomenda "reforçar hábitos de higiene, usar preservativos e, mesmo que seja com familiares ou filhos menores, não compartilhar objetos de uso pessoal: seringas, agulhas, talheres, escovas de dente e materiais cortantes ou potencialmente cortantes".
Por causa do alto número de ocorrências nos EUA, Mark Schleiss, médico da Universidade de Minnesota, diz que "o CMV deve ser uma prioridade tão urgente quanto o Zika".
"Há décadas se pede o desenvolvimento de uma vacina e ainda não a temos, em parte por causa da falta de consciência pública sobre o CMV", afirmou ao The New York Times.
Mas no Brasil, os médicos que estão na linha de frente da epidemia de microcefalia, como Angela Rocha, discordam.
"Todas as vacinas são importantes, mas a contaminação e a disseminação dos arbovírus, como Zika, dengue e chikungunya, é muito maior do que a de uma doença viral, como o CMV", afirma.
"Ainda nos preocupamos com o CMV, mas o efeito do Zika foi muito mais devastador, especialmente considerando a quantidade de casos e o pouco tempo em que eles ocorreram. Nós nunca tivemos uma epidemia de CMV como essa."