Os voluntários que se arriscam salvando vidas na 'rodovia da morte'
Grupo de socorro rodoviário atua em trecho crítico da BR-381, em Minas; profissionais abrem mão da família em dias de folga e tiram dinheiro do próprio bolso para ajudar desconhecidos.
No km 423 da BR-381, em Caeté (Grande Belo Horizonte), um grupo gasta o tempo livre do domingo. Na mesa do restaurante Boi Bandido, uns jogam bingo, outros batem papo. No cantinho, um rapaz digita com os olhos atentos na tela do notebook.
Parece uma cena qualquer de beira de estrada, mas não é - macacões laranjas, capacetes e botas altas do grupo dão a pista. Enquanto a maioria das pessoas busca diversão e paz aos finais de semana, ali todos são voluntários numa missão mais dura: salvar vidas em uma das rodovias mais perigosas do Brasil.
A câmera instalada no capacete de Jefferson Batista, de 23 anos, mostra o desafio de um dia de trabalho do grupo. É março, e chove muito. Um carro está dentro de um barranco com três pessoas. Duas vítimas são obesas, e a equipe de Batista vai ao limite do esforço para retirá-las.
Ao içarem o segundo ferido, dois carros batem de frente a 50 metros dali. Enquanto o time se divide entre as duas ocorrências, outra batida frontal com os veículos lotados mais adiante. "Esse dia exigiu muito, muito de nós", relembra Batista.
É uma situação frequente para os Anjos do Asfalto, grupo que desde 2004 se dedica ao trabalho voluntário de primeiros-socorros em um trecho de 100 km da BR-381, estrada conhecida como "rodovia da morte" pelo alto índice de acidentes.
São 17 homens e seis mulheres de diferentes profissões: enfermeira, médica, taxista, empresário, repórter, bombeiro. Todos se revezam em equipes de sete pessoas, em plantões aos domingos e feriados no trecho de pista única e cheio de curvas entre Barão de Cocais e Belo Horizonte.
Em comum, todos têm o curso de primeiros-socorros e a disposição de ajudar desconhecidos de graça. E um papel fundamental: podem encurtar em até quatro vezes o intervalo até o primeiro atendimento, preparando o terreno até a chegada do Samu ou do Corpo de Bombeiros, que não possuem bases próximas.
Transformando-se em "anjo"
"Eu identificava o grupo pelo carro e pela roupa, sempre que tinha acidente ou batida", conta Jefferson Batista, o "anjo" da câmara no capacete. O técnico de segurança do trabalho se recorda que costumava observar, quando criança, os voluntários uniformizados na estrada.
Até o dia, já adulto, em que se viu obrigado a socorrer um acidente na mesma rodovia, enquanto viajava com os pais. "Não tinha ninguém por perto e tive que usar técnicas que aprendi na autoescola e em meu curso técnico. Depois fiquei com aquela sensação de que poderia ter feito melhor", conta.
O rapaz correu atrás de mais conhecimento e concluiu 40 horas do curso de socorrista do Corpo de Bombeiros. "Assim que terminei o curso, entreguei meu currículo para o grupo. Queria fazer parte daquele time que durante toda minha infância vi salvar vidas na estrada."
O serviço voluntário surgiu em 2004, diante da necessidade de atendimento rápido em trechos específicos da rodovia, sobretudo aos domingos, quando acidentes são comuns. Uma turma de amigos socorristas abriu diálogo com Polícia Rodoviária Federal, Corpo de Bombeiros e Samu e articulou a parceria.
A logística funciona assim: os socorristas contam com rádios transmissores e ficam à espera de chamados da PRF, Bombeiros ou Samu. Recebidos os informes de acidentes, deslocam-se em dois carros - uma Saveiro 2004 e um Palio 2005 - até o local do chamado, onde fazem o atendimento pré-hospitalar até a chegada das equipes de saúde.
Quem banca os veículos são os próprios voluntários - com doações mensais de R$ 25 por cabeça para combustível - e pequenos patrocínios e parcerias.
O dono do restaurante onde funciona a "base" do grupo, por exemplo, dá R$ 10 por dia de crédito em alimentação, e um hotel das imediações costuma fornecer refeições. Um provedor local de internet e uma cooperativa de caminhoneiros contribuem com R$ 1,8 mil mensais, que ajudam a pagar a prestação da Saveiro usada.
"Gostaria muito de ter um quarto disponível nos dias em que eles precisam dormir nos plantões", conta o empresário Leonardo Alves, dono do restaurante, citando feriados movimentados como Carnaval e Semana Santa, quando os voluntários dormem por ali mesmo, dentro dos carros.
Hoje os Anjos do Asfalto promovem uma campanha na internet para arrecadar R$ 50 mil para comprar uma ambulância e erguer um alojamento para os plantonistas, o sonho maior do grupo.
Perigo na estrada
A BR-381, pode-se dizer, não é uma estrada para amadores. Canal de escoamento de produtos das regiões Sul e Sudeste até o Nordeste, a estrada registra alto volume de tráfego durante todo o ano.
O "território" dos Anjos é uma rodovia de pista simples e sem barreira física entre as direções opostas. Apenas nos 110 km entre a capital mineira e a cidade de João Monlevade (MG), são cerca de 200 curvas. Não há acostamento em grande parte do percurso, o asfalto é precário em longos trechos e a sinalização é insuficiente.
Aliados à imprudência de motoristas, esses fatores formam a receita conhecida de acidentes e mortes. Apenas no primeiro semestre de 2017, por exemplo, a PRF registrou 2.097 acidentes nos 562 km da rodovia, e um óbito a cada três dias - não há dados específicos do trecho BH-Barão de Cocais, atendido pelo grupo.
A escolha dos voluntários envolve análise de currículo, teste prático e entrevista. "Sempre tem gente querendo entrar, mas somos bem criteriosos na escolha", diz o enfermeiro Tiago Muzzi, de 38 anos, há nove no grupo.
Jefferson Batista, o "cameraman" dos Anjos, por exemplo, passou seis meses de período probatório antes de poder vestir o macacão laranja que chamava sua atenção na infância.
Nos domingos de trabalho, ele acorda às 7h para se juntar uma hora depois ao restante da equipe, moradores de cidades próximas a BH, como Caeté, Santa Luzia e Ribeirão das Neves.
O ponto de encontro é um estacionamento de transportadora, já na BR-381, onde o grupo estaciona os carros após os plantões. Depois de verificar se está tudo certo com veículos e equipamentos, todos seguem até o km 423, onde se acomodam nas mesas do restaurante.
Nos carros, há o material usado na primeira resposta aos acidentes. Cones, oxigênio, roupa para uso em incêndio e itens de primeiros-socorros - soro, agulhas e luvas - dividem espaço com ferramentas pesadas, como pá, alicate corta-frio, machado e desencarcerador, este para retirar vítimas de ferragens. Todo o material foi doado.
Quem observa o trabalho dos voluntários logo percebe a relação de respeito e parceria com a vizinhança da rodovia. Motoristas de carros e caminhões buzinam em sinal de aprovação e incentivo, e moradores das imediações também os procuram quando há necessidade de primeiros-socorros.
"Consideramos que são voluntários profissionais, pela atuação sempre responsável que ameniza um grande gargalo da saúde pública, que é o atendimento ágil e eficiente", diz Wilton Silveira, chefe da unidade da PRF em Sabará (MG), no começo da BR-381.
Antes de todo plantão, o grupo passa na sede da PRF mais próxima para sinalizar a presença. "Vamos lá pedir a benção", brinca Jefferson.
Solidariedade
Uma experiência pessoal também está por trás da história do empresário Claudio Bastos, de 51 anos, nos Anjos do Asfalto. A vontade de fazer o curso do Corpo de Bombeiros surgiu após um amigo ter sido atendido em um acidente por uma médica que vinha no carro de trás.
"Ali parei para pensar pela primeira vez na importância desse tipo de socorro", conta.
Claudinho, como é carinhosamente chamado pelo grupo, tem uma firma de sirenes para veículos especiais. Como socorrista, especializou-se na liberação de vítimas presas em ferragens - é também o motorista que ajuda a equipe a chegar aos locais com agilidade.
A formação das equipes dos plantões leva em conta o ponto forte de cada integrante e uma divisão que deixe os times sempre completos.
"Temos uma médica no grupo, que está sempre disponível, mesmo à distância, para qualquer questionamento. Mantemos ao menos um enfermeiro e também uma pessoa boa com ferragens, condução de viaturas e direcionamento de helicóptero para pouso", explica o bombeiro civil Edmar Freitas, de 36 anos, coordenador do grupo.
Enquanto aguarda um chamado no restaurante, Thales Benício, de 23 anos, adianta no computador o trabalho "oficial" de segunda-feira. Repórter policial em Itabira (MG), cidade onde vive, ele resolveu se tornar socorrista ao apurar acidentes para o portal em que trabalha.
"Algumas vezes, eu chegava antes mesmo dos Bombeiros ou do Samu. Um dia fui cobrir um acidente e eles estavam atendendo as vítimas. Fiz o curso porque achei que em algum momento precisaria colocar esse conhecimento em prática para salvar alguém", conta.
Na página dos Anjos do Asfalto no Facebook, é possível conhecer histórias do grupo e a campanha de doação de recursos para a nova ambulância e construção da sede. Por ali, não raro aparecem depoimentos de quem já foi atendido em momentos difíceis.
"Obrigada por lutarem pela vida das pessoas até o último suspiro", comentou uma seguidora em uma foto da equipe reunida.
Quando o domingo termina sem acidentes, o alívio predomina entre os voluntários. "Sabemos que o trabalho na BR é sem previsão. Às vezes somos surpreendidos no fim do dia por algum chamado", diz Jefferson Batista.
A lembrança volta ao domingo chuvoso de março em que um acidente ocorria após o outro. Nessas horas, afirma, o desafio maior é alinhar força física e psicológica para dividir funções, manter a calma e socorrer todos.
"Aqui aprendemos a ter esse pensamento lógico, de equipe. Aprendemos que a morte também deve ser vista como natural. Morrer é tão fácil. Somos tão frágeis," afirma o voluntário.
"Tudo vale a pena, porque saímos daqui com a sensação de dever cumprido", completa o técnico em segurança, ao final de mais um domingo de trabalho.
Este, comemoram os integrantes, sem ocorrências.