'Pacto de sangue': As acusações de Palocci contra Lula e Odebrecht
Em depoimento ao juiz federal Sergio Moro, ex-ministro diz que líder petista sabia do esquema de corrupção na Petrobras e que empreiteira "dava propinas frequentes ao presidente Lula e ao PT".
A relação entre o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva e a empreiteira Odebrecht envolvia um "pacto de sangue" que consistia em presentes pessoais ao líder petista, como o sítio de Atibaia (SP), a doação do prédio de um museu dedicado a seu legado, palestras no valor de R$ 200 mil, uma reserva de R$ 300 milhões de reais.
A afirmação, que já apareceu em acusações de delatores e testemunhas da operação Lava Jato, pela primeira vez partiu de um dos homens próximos a Lula: seu ex-ministro da Fazenda, o petista Antonio Palocci.
Em depoimento ao juiz federal Sergio Moro na tarde desta quarta-feira, em ação penal que investiga a acusação de que a Odebrecht doou um terreno para a construção de prédio do Instituto Lula como propina, Palocci afirmou que o ex-presidente tinha conhecimento do esquema de corrupção na Petrobras e se preocupou no início, mas depois pediu que os diretores da estatal fizessem reservas partidárias a partir dos desvios.
Palocci está preso desde setembro de 2016. Em junho passado, foi condenado por Moro a 12 anos de prisão por corrupção passiva e lavagem de dinheiro. No depoimento, também acusa de crimes a ex-presidente Dilma Rousseff, o pecuarista José Carlos Bumlai e o ex-tesoureiro do PT João Vaccari Neto, entre outros nomes.
Confira os pontos mais importantes do depoimento:
1. Sítio, palestras e museu: o pacto de sangue com a Odebrecht
Durante o depoimento, Palocci afirma que Emílio Odebrecht procurou Lula no fim de 2010, no fim de seu governo, para fazer um "pacto de sangue".
"Eu chamei de pacto de sangue porque envolvia um presente pessoal, que era um sítio, envolvia um prédio de um museu pago pela empresa, envolvia palestras pagas a R$ 200 mil, fora impostos, combinadas com a Odebrecht para o próximo ano, várias palestras, envolvia uma reserva de 300 milhões de reais", diz.
Emilio é pai de Marcelo Odebrecht, que era presidente da empreiteira e está preso desde junho de 2015 - ele deve deixar o regime fechado no fim deste ano, como parte do acordo de delação premiada fechado entre os advogados da empreiteira e o Ministério Público Federal.
Segundo Palocci, Lula o procurou após a conversa com Emílio e ordenou que não brigasse com a Odebrecht - "ele mandou eu recolher os valores".
Ao detalhar a relação entre Odebrecht e Lula, o ex-ministro afirma que a corrupção era longeva e conhecida dos mais íntimos do ex-presidente. "A Odebrecht era uma colaboradora", afirma.
Na sequência, no entanto, ele corrige o uso do termo "colaboradora": "O senhor (Moro) desculpa, às vezes eu... 30 anos treinando para falar dessa forma, que a Odebrecht dava propinas frequentes ao presidente Lula e ao PT".
Palocci classifica a ligação entre a empresa e os governos de Lula e Dilma como "intensa".
"Foi uma relação bastante intensa, bastante movida a vantagens dirigidas à empresa, a propinas pagas pela Odebrecht para agentes públicos em forma de doação de campanha, em forma de benefícios pessoais, em forma de caixa 1, caixa 2", diz. "Eu tenho conhecimento porque participei de boa parte desses entendimentos na qualidade de ministro da Fazenda do presidente Lula e de ministro da Casa Civil da presidente Dilma."
O ex-ministro diz que conhecia os Odebrecht desde antes do primeiro governo petista. "Eu estive com eles desde 1994 quando o presidente Lula os conheceu", conta. "Então eu tratava de todo tipo de tema com eles (Odebrecht), inclusive de temas ilícitos. Inclusive."
Segundo ele, o "pacto de sangue" oferecido a Lula por Emílio Odebrecht surgiu de "certo pânico" da companhia com a posse de Dilma - como ministra da Casa Civil, ela teria liderado um embate com a empreiteira e impedido que conquistasse as obras das duas usinas do Rio Madeira - no fim, ficou apenas com uma, e "a um preço muito ruim".
"Ele procurou o presidente Lula nos últimos dias do seu mandato e levou um pacote de propinas (...) que envolvia esse terreno do instituto, que já estava comprado e o seu Emílio apresentou (...), o sítio pra uso da família do presidente Lula - que ele já estava fazendo a reforma, que já estava em fase final, e disse (...) que já estava pronto - e também disse (...) que ele tinha à disposição dele para o próximo período, para fazer as atividades políticas dele, R$ 300 milhões."
Palocci diz ter ficado "chocado" com a oferta, que representava uma guinada no relacionamento com a empreiteira - e conta como ficou sabendo dela.
"No dia seguinte, de manhã, o presidente Lula me chamou no Palácio da Alvorada, e me conta da reunião. Ele também se mostrou um pouco surpreso e disse: 'Olha, ele só fez isso porque ele tem muito receio da Dilma. Porque ele nunca tratou de recursos comigo e dessa vez ele tratou de um pacote de coisas e de recursos muito alto'. E ele pediu pra tratar desse recurso com o Marcelo Odebrecht."
Segundo o ex-ministro, Emílio não trouxe uma "pauta de desejos" específica em troca desse pacto de sangue. "Apresentou vontade de que com o governo da presidente Dilma a relação da Odebrecht com o governo continuasse fluida, como havia sido com o governo Lula."
No Twitter, Cristiano Zanin Martins, advogado de Lula, afirmou que "Palocci compareceu ato pronto para emitir frases de efeito como 'pacto de sangue', esta última anotada em papéis por ele usados na audiência". Para o advogado, "Palocci repete papel de validar, sem provas, as acusações do MP (Ministério Público) para obter redução de pena."
Em nota, por sua vez, a Odebrecht afirmou que "está colaborando com a Justiça no Brasil e nos países em que atua".
"Já reconheceu os seus erros, pediu desculpas públicas, assinou um Acordo de Leniência com as autoridades do Brasil, Estados Unidos, Suíça, República Dominicana, Equador e Panamá, e está comprometida a combater e não tolerar a corrupção em quaisquer de suas formas."
2. Conta corrente com o PT
De acordo com Palocci, as vantagens indevidas pagas pelas empreiteiras ao PT não se destinavam a retribuir benesses específicas obtidas em um ou outro contrato público. Tratava-se de manter uma relação amigável e constante com os mandatários para estar sempre em posição privilegiada em concorrências públicas.
Por isso, segundo o ex-ministro, a Odebrecht e outras construtoras mantinham uma conta corrente ativa com o PT, frequentemente abastecida com propina. "A vantagem (repassada ao partido) dá vantagens para a empresa. Essa empresa cria uma conta para destinar aos políticos que a apoiaram", explica.
Em contrapartida, de acordo com o raciocínio de Palocci, Lula e o PT criariam ambiente propício na Petrobras para que as empresas obtivessem gordos contratos:
"O presidente mantém lá (na Petrobras) diretores que apoiam a empresa, para dar a ela contratos. Esses contratos geram dinheiro. Algumas (empresas) criam operações estruturadas, outras criam caixas dois, outras criam doleiros, e com esse dinheiro pagam propina aos políticos. É isso. Isso aconteceu durante esse período."
Palocci não especifica o período, mas infere-se que ele está falando dos governos Lula e Dilma.
Os detalhes da conta-corrente com a Odebrecht foram tratados em reuniões entre Emílio Odebrecht e Lula. De acordo com Palocci, Emílio se comprometera a fazer um repasse ao ex-presidente de R$ 300 milhões no final de 2010 e acenara com a possibilidade de ser mais. Ao conversar com Marcelo Odebrecht, no entanto, ouviu que houve uma "divergência de valores".
"Ele falou: 'não é R$ 300 milhões, meu pai se enganou, R$ 300 milhões é a soma daquilo que foi dado com aquilo que ainda tem disponível'", diz o ex-ministro.
Embora tenha se envolvido na negociação sobre a conta corrente, Palocci afirma ter sido contra essa ideia:
"Não queria ter contas com a Odebrecht. Insisto, doutor, não por santidade, eu achava que não devia ter conta corrente, eu achava que devia continuar tendo uma relação de confiança, onde a gente buscava os recursos quando necessário. Eu tinha essa postura."
Palocci, no entanto, foi voto vencido diante do interesse do próprio Lula em viabilizar a conta corrente:
"Não era prática do Emílio tratar de reservas e recursos com o presidente Lula. Esse assunto não era pauta das reuniões. Mas nessa foi. Esse foi o espanto do presidente Lula. Não o espanto de ter disponível R$ 300 milhões, ele gostou disso. Tanto que na segunda vez falou que o dr. Emílio tinha confirmado os 300 e que poderia ser mais, pra eu cuidar disso. Não é pra cuidar do espanto dele, é pra cuidar do dinheiro", disse.
Emílio Odebrecht fez parte do mega acordo de delação premiada negociada em 2016 com o Ministério Público Federal. Em seus depoimentos, confirmou o repasse de propinas para o PT, a pedido do próprio Lula. Mas não citou a reunião dos R$ 300 milhões da conta corrente. Marcelo Odebrecht, no entanto, mencionou o assunto em depoimentos da colaboração firmada.
3. Dilma ajudou a manter esquema
De acordo com Palocci, Dilma não apenas sabia do esquema corrupto entre PT, Odebrecht e outras empreiteiras, como foi beneficiária e mantenedora dos arranjos. Segundo ele, tanto as campanhas presidenciais de Lula quanto as de sua sucessora foram custeadas com dinheiro ilícito.
"Várias vezes eu falei para empresas: o senhor, pode fazer doações para a campanha do presidente tal e da presidente tal?", relata, e continua:
"Eu sabia que depois os tesoureiros iam lá e (as empresas) faziam pagamento lícitos e ilícitos, caixa 1 e caixa 2. Muitas vezes era caixa 1 para simular pagamento legal, mas a origem do dinheiro era ilegal."
Na sequência, Palocci dá como exemplo da mecânica de doações ilegais à campanha de reeleição de Dilma, em 2014.
"Essa foi a campanha que mais teve caixa 1 e foi uma das que mais teve ilicitudes. Por quê? Porque o crime se sofisticou no campo eleitoral, as pessoas viram que o problema era o caixa 2, então transformaram tudo em caixa 1. O ponto é a origem criminosa dos valores, a Lava Jato desvendou esse mistério", afirma Palocci.
A ex-presidente Dilma e o PT sempre negaram caixa 2 ou ilegalidades no financiamento da campanha. No entanto, Palocci dá exemplos de situações em que tais temas foram tratados na presença dela ou dependeram de sua chancela.
Segundo o ex-ministro, em meados de 2010 ele participou de uma reunião com Lula, Dilma e o então presidente da Petrobras José Sérgio Gabrielli. No encontro, realizado na biblioteca do Palácio da Alvorada, o então presidente tratava da exploração do pré-sal.
De acordo com Palocci, Lula teria dito:
"Palocci está aqui porque ele vai lhe acompanhar nesses projetos, para que eles tenham total sucesso, e para que ele garanta que uma parcela desses projetos financie a campanha dessa companheira aqui (Dilma), que eu quero ver eleita presidente do Brasil."
Ainda naquele ano, mas após a eleição de Dilma, teria havido uma nova reunião. Dessa vez, além de ambos, estariam Lula e Emílio Odebrecht. O objetivo do encontro, afirma o ex-ministro, era colocar Dilma a par das relações entre o PT e a empresa, para que ela conservasse todos os acordos - "lícitos e ilícitos", nas palavras dele.
Palocci diz que Dilma cumpriu o papel a contento, "em diversas ocasiões".
"Na área de aviação, por exemplo. Odebrecht desejava muito ter um aeroporto de porte sob seu comando, na medida que o governo privatizou os aeroportos. Na primeira leva, Guarulhos, Viracopos, Brasília, a Odebrecht perdeu os três. Ela queria muito o de Campinas, mas perdeu. Entrou com o recurso contra o consórcio vencedor Triunfo/UTC, entrou tentando derrubar na Anac (Agência Nacional de Aviação Civil)", diz Palocci.
Como a presidência da Anac àquela altura era uma nomeação de Palocci, a empresa teria pedido a ele que intercedesse a seu favor, o que o ex-ministro nega ter feito. Ele, no entanto, não tardou em arrumar uma solução administrativa que beneficiasse a Odebrecht, em 2013, com a anuência de Dilma.
"Eu fui à presidente Dilma e ela disse que eles deviam ficar calmos que em uma próxima licitação ela cuidaria desse assunto. Retiraram o recurso que tinham na Anac e foram beneficiados na licitação do Galeão. Como foram beneficiados? Houve uma cláusula nessa licitação que impedia o vencedor da licitação de Cumbica de participar da licitação do Galeão", diz.
Ele reforça: "(A cláusula) foi colocada por solicitação da Odebrecht. E eu tive participação nisso".
Dilma não se pronunciou até a publicação deste texto.
4. Petrobras, corrupção e campanhas
Segundo o ex-ministro, a maior parte das doações da Odebrecht para as campanhas petistas - principalmente as presidenciais - era feita em caixa 1. "Mas o Caixa 1 muitas vezes originário de atitudes e contratos ilícitos."
Questionado por Moro sobre "contratos que geraram crédito" - ou seja, aqueles nos quais a empreiteira pagava um percentual em propina -, Palocci diz que foram "diversos". Mas fez questão de citar uma estatal. "Os da Petrobras, quase todos geraram crédito."
O esquema, diz, funcionava da seguinte forma: após as diretorias serem nomeadas, foi desenvolvida "uma relação de intenso financiamento partidário, de políticos, pessoas, empresas".
"Na diretoria de Serviços, o PT; na diretoria Internacional, o PMDB, e na diretoria de Abastecimento, o PP", detalha. "Esse foi um ilícito crescente na Petrobras, até porque as obras cresceram muito e com elas, os ilícitos."
O ex-ministro relata ter conversado com Lula sobre "essas relações". E deu exemplos:
"Quando o presidente foi reeleito, em 2007 ele me chamou no Palácio da Alvorada e me falou: 'Soube que na área de serviços e de abastecimento tá havendo muita corrupção'. Eu falei: 'É verdade'. Ele falou: 'E o que que é isso?'. Eu falei: 'É aquilo que foi destinado pra esses diretores: operar para o PT de um lado e para o PP de outro'.
Palocci afirma que Lula disse ter pensado em "tomar providência". "Mas logo após veio o pré-sal, e o pré-sal pôs o governo em uma atitude frenética em relação à Petrobras (...). E aí as coisas continuaram correndo do jeito que eram."
O petista diz que a Odebrecht sempre doou para suas campanhas pessoais, e confessa que muitas vezes de forma ilegal.
"Até antes de vir aqui chequei no TSE pra ver se tinha alguma doação legal no meu nome e não tinha. Se não tinha doação legal eu lhe garanto que teve doação ilegal, porque a Odebrecht não deixaria de doar para uma campanha minha."
Ele conta ter feito pedidos à empreiteira para as campanhas presidenciais.
"Normalmente não foi no período em que eu era ministro, porque eu pedi antes de eu ser ministro, em 2002, e em 2006 eu já não era mais ministro. Mas no período em que eu fui ministro eu tive uma relação fluida com eles também. Não escondo isso não", afirma.
"Eu dizia a eles: 'contribuam com a campanha do presidente Lula, ou da presidente Dilma. E eles falavam 'estamos pensando em um valor de R$ 50 milhões', e eu falava 'pode ser', e mais tarde voltava lá e falava 'quem sabe um valor de R$ 60 milhões'."
5. Terreno do Instituto Lula e apartamento em São Bernardo do Campo
Palocci fala ainda sobre as suspeitas de que, em troca de vantagens em contratos da Petrobras, a Odebrecht teria comprado um terreno, que deveria sediar um museu do Instituto, e uma cobertura em São Bernardo do Campo, ao lado do apartamento em que o presidente vive com a família.
De acordo com o ex-ministro, a negociação envolvendo o terreno aconteceu ainda em 2010, no último ano do petista na Presidência, motivo pelo qual a área não poderia ser doada a Lula legalmente. Havia uma urgência para conseguir um lugar onde ele pudesse guardar o acervo presidencial.
Palocci diz ter sido contrário ao modo como a situação foi conduzida.
"Na época eu não estava entendendo a pressa. Eu sugeri ao Marcelo (Odebrecht): 'compre o terreno, quando o instituto for instalado, você doa o prédio'. Não é ilegal doar um prédio. Ou pelo menos fica com uma aparência mais legal. Desculpa, doutor, eu não estava de santo, não. Eu só estava querendo... nosso ilícito com a Odebrecht já estava muito grande naquele momento. Essa compra não precisava ser um ilícito. Ou pelo menos (seria) um ilícito travestido de lícito", diz.
Em seu depoimento na condição de delator, Marcelo confirmou que a Odebrecht comprou o terreno.
A transferência do Instituto Lula para o local jamais se concretizou porque, de acordo com o ex-ministro, ele convenceu o ex-presidente de que a transação seria um risco muito grande:
"Mas no conjunto, considerando a pessoa do presidente Lula, o governo, a Odebrecht, o Instituto Lula, aquilo era um ilícito grave, uma fratura exposta. Era um convite à investigação", diz Palocci.
Um dos artífices ideia do terreno, que ele qualificada de "trapalhada", foi José Carlos Bumlai.
Segundo o ex-ministro, também coube ao pecuarista a negociação para a compra da cobertura vizinha à de Lula, em São Bernardo. O imóvel seria importante para acomodar os seguranças e pertences do petista. No esquema narrado por Palocci, um primo de Bumlai ficou responsável por comprar o imóvel contando com algum tipo de compensação do Instituto Lula.
Para Palocci, Lula "agia com pouco cuidado em relação a isso".
"Perguntei: 'presidente, do que se trata esse apartamento? Eu nunca ouvi falar dele'. E ele me explicou que era um apartamento que a segurança do presidente tinha alugado e que ele gostou daquele apartamento, que para ele que tinha cinco filhos ficava melhor e ele estava pensando em comprar esse apartamento. Foi essa a informação que ele me deu apenas. Eu falei com ele sobre a conversa com o Bumlai do Instituto e disse que não queria fazer desse jeito."
A BBC Brasil não conseguiu contato com a defesa de Bumlai. Em depoimento à Justiça, ele falou anteriormente que tratou da instalação do Instituto Lula em 2010 diretamente com Marcelo Odebrecht.
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