Partidos preparam reação contra reserva de recursos para candidatos negros
Aplicação da regra nas eleições deste ano será decidida pelo STF a partir de 25/09. Presidentes de partidos questionaram Luís Roberto Barroso, do TSE, sobre como aplicar regra já este ano.
Partidos políticos preparam à regra que prevê distribuição igual de dinheiro e tempo de TV entre candidatos brancos e negros já nas eleições municipais deste ano.
O assunto foi discutido em reuniões de dirigentes partidários e advogados eleitorais ao longo da penúltima semana de setembro. Ainda não se sabe se a decisão será tomada por meio de uma ação no Supremo Tribunal Federal (STF) ou por meio do Congresso Nacional.
De acordo com fontes ouvidas pela BBC News Brasil sob condição de anonimato, mais de uma dúzia de partidos está disposta a participar da iniciativa — da direita à esquerda.
A regra da distribuição igualitária dos recursos foi criada pelos ministros do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) no fim de agosto, em resposta a uma consulta formulada pela deputada federal Benedita da Silva (PT-RJ) e pelo Instituto Educafro.
Na decisão original do TSE, os partidos deveriam garantir a divisão proporcional dos recursos do Fundo Eleitoral e do Fundo Partidário, e também do tempo de TV, entre candidatos negros (pretos e pardos) e brancos — mas a regra só valeria para as eleições 2022.
Não se trata de cotas de candidatos, como já acontece com o percentual mínimo de 30% de mulheres, mas apenas de garantir a divisão proporcional dos recursos.
No entanto, no dia 10 de setembro, o ministro Ricardo Lewandowski decidiu de forma monocrática (individual) que a regra deverá valer já nas eleições municipais deste ano, o que gerou descontentamento entre os partidos.
Uma das propostas em discussão entre os partidos é aprovar no Congresso um projeto de decreto legislativo (PDL) para sustar a decisão de Lewandowski.
Os ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) começarão a decidir nesta sexta-feira (25/9) se mantém ou não a decisão do ministro. A votação será em plenário virtual. Neste caso, não há discussão verbal do assunto e os ministros têm até sete dias para votar, sem necessidade de fazê-lo no mesmo dia.
Presidentes de vários partidos reclamaram da antecipação da regra para 2020 durante uma reunião com o presidente do TSE, ministro Luís Roberto Barroso, no dia 22 de setembro. Alguns dos dirigentes cobraram mais informações sobre como deveria ser feita a divisão de recursos.
Em resposta aos partidos, Ricardo Lewandowski apresentou esclarecimentos sobre como deve ser feita a divisão de recursos. Candidatos negros e brancos devem ser beneficiados igualmente dentro de cada gênero (homens e mulheres), e não de forma global. A medida visa a proteger as candidaturas femininas, evitando a concentração de recursos nos candidatos homens.
Tema divide chefes de partidos
A decisão de aplicar a reserva de recursos a candidatos negros já em 2020 divide os presidentes de partidos políticos consultados pela BBC News Brasil.
Presidente do Republicanos, o deputado federal Marcos Pereira (SP) diz que a legenda foi pega de surpresa pela decisão de Lewandowski. "Não dá tempo para organizar para essa (eleição)", disse ele à BBC News Brasil, por mensagem de texto. "Vai ser uma confusão se for para (aplicar) este ano", disse ele, que é também vice-presidente da Câmara dos Deputados.
Pereira diz que há também uma preocupação com fraudes — candidatos que se autodeclarem negros, mesmo sem ser. "Como controlar a eleição em mais 5,5 mil municípios?", questionou ele.
Carlos Siqueira é presidente nacional do PSB. Ele diz que o partido já vai distribuir os recursos de forma proporcional entre candidatos negros e brancos — mas diz que, idealmente, a decisão teria sido tomada com mais antecedência.
"No mérito, a decisão é perfeita. E, no caso do PSB, nós já tratamos as candidaturas de negros como candidaturas que devem ser prestigiadas. Então, não há nenhum problema. A única coisa que eu acho é que o TSE devia ter tomado essa decisão com a antecedência necessária para permitir uma organização melhor dos partidos", diz ele.
"O Parlamento só pode mudar a lei eleitoral obedecendo o princípio da anualidade, de mudar um ano antes. E o próprio Supremo tem acórdãos em que manda que as decisões judiciais (sobre matéria eleitoral) obedeçam também ao princípio da anualidade", diz Siqueira à BBC News Brasil.
Outros chefes de partidos defendem a decisão de Lewandowski.
"Nós do PDT não entraremos no Supremo (contra a reserva de recursos em 2020). Nós achamos a medida justa. Isso é o pagamento de uma dívida histórica da sociedade. Em segundo lugar, não há reserva de valor, há igualdade na distribuição de valor, por autodefinição. É como numa universidade, você se autodeclara negro ou pardo, e aí tem direito", diz Carlos Lupi, presidente nacional do PDT.
Segundo ele, um levantamento preliminar do partido indica que 45% dos candidatos do PDT são negros ou pardos.
O MDB é o partido com o maior número de prefeitos do país. Segundo o presidente da sigla, o deputado federal Baleia Rossi (SP), o partido não deve ter dificuldade para cumprir a decisão do TSE já nestas eleições.
"Nós estamos preparados já, por meio do MDB Afro, para valorizar as candidaturas de negros no MDB", diz ele à BBC News Brasil. O núcleo, ligado ao movimento negro, foi reativado no partido recentemente.
"Você tem, claro, a dificuldade de vir de última hora uma decisão, mas nós estamos aqui nos preparando, inclusive aguardando o MDB Afro fazer as indicações dos candidatos que representam o movimento", disse Baleia Rossi.
Benedita: projetos para regulamentar tema já estão prontos
Autora da consulta ao TSE, Benedita da Silva responde às críticas dos presidentes de partidos dizendo que há projetos parados no Congresso regulamentando a distribuição igualitária dos recursos — bastaria dar urgência e aprovar um dos projetos.
"Eu tenho uma solução para eles, que acham que tem que regulamentar. Nós temos projetos lá na Casa (Câmara), que não entraram na reforma política que foi feita. É só pedir urgência no projeto, que a gente pode ter ele aprovado, regulamentado. E aí pode funcionar, atendendo à decisão do Supremo", disse ela à BBC News Brasil.
Benedita da Silva assevera que fazer ou não a distribuição proporcional dos recursos é uma decisão política dos partidos.
"Isso (divisão proporcional) dará muito fôlego para as candidaturas negras que são colocadas e ficam no meio do caminho. Você não tem recursos suficientes, acaba não tendo apoio suficiente. Não aparecem no programa de TV (das legendas). (...) A gente acompanha isso há anos, né? A dificuldade que tem para a comunidade negra sair candidata, porque a maioria é pobre, não tem recursos próprios e nem defende causas que pudessem interessar ao poder econômico", diz ela.
"A gente não pode compactuar com o que está errado, né? O que foi estabelecido no TSE foi justamente que essa distribuição de recursos e de tempo de rádio e TV (que privilegia candidatos brancos) é inconstitucional. E se dá muito por conta do racismo institucional dos próprios partidos. Isso tem de ser remediado desde logo", diz Irapuã Santana, doutor em direito pela UERJ e um dos autores da consulta ao TSE.
"Então, esse tipo de argumento é querer continuar no erro. E diz muito sobre de que lado estão esses partidos na luta contra o racismo", acrescenta.
"Se a população negra não participa ativamente do processo eleitoral, existe um déficit democrático aí, que precisa ser corrigido. Não estamos pedindo nada demais, apenas que haja um financiamento proporcional ao número de candidatos, e que essa corrida seja mais justa. Que todos partam do mesmo ponto de partida, com uns mais privilegiados que outros", diz Irapuã Santana.
Nas eleições de 2018, onegros (pretos e pardos) continuaram subrepresentados em relação aos brancos em número de candidatos.
Cerca de 53% das pessoas que disputaram algum cargo eram brancas, embora este grupo represente apenas 44% da população brasileira. Enquanto isso, os negros, que são 55% dos brasileiros, somaram 46% dos candidatos.
Um estudo do Instituto Brasileiro de Geografia Estatística (IBGE) também mostrou que os partidos políticos privilegiaram os candidatos brancos na hora de dividir os recursos.
Medida pode acabar sendo inócua, alerta cientista político
Apesar da gravidade da questão, especialistas consultados pela BBC News Brasil veem problemas na decisão de Ricardo Lewandowski de aplicar a reserva de recursos já em 2020 — a medida pode acabar se mostrando ineficaz.
Flávio Britto é advogado especializado em direito eleitoral. Segundo ele, há a possibilidade de que a aplicação da reserva de recursos já em 2020 resulte em fraudes eleitorais — a exemplo das candidaturas laranjas de mulheres em 2018, criadas pelos partidos apenas para atingir a cota de 30%.
Além disso, diz Britto, é preciso que os partidos tenham algum tempo para decidir como farão para cumprir a decisão da Justiça Eleitoral. Ele faz uma analogia com o artigo 16 da Constituição de 1988, segundo o qual as leis que mudem as regras do jogo eleitoral devem ser aprovadas pelo menos um ano antes de entrar em vigor.
"É difícil estimar qual vai ser o impacto dessa medida", diz o cientista político Bruno Carazza, autor de um livro sobre a influência do dinheiro nas eleições.
"Teoricamente, essa medida (destinar recursos para mulheres e negros) equilibra o jogo, porque tira poder dos partidos, dos dirigentes, em favor dessas maiorias minorizadas", diz ele.
"Qual é o problema? Nas últimas eleições, os partidos cumpriram a regra (sobre candidatas mulheres) concentrando recursos nas mulheres que eram próximas aos líderes dos partidos. Houve concentração muito grande. O MDB, por exemplo, destinou recursos para a ex-mulher do (senador pelo Pará) Jader Barbalho; para a filha do (ex-deputado pelo Rio) Eduardo Cunha; para a esposa do (ex-senador por Rondônia) Valdir Raupp", exemplifica ele.
"Então, na verdade não democratizou nada. O risco de isso se perpetuar com a reserva de recursos para negros existe também", pontua Carazza. "Eu fico imaginando que o partido de Bolsonaro em 2022 possa gastar boa parte da cota dos negros na campanha do (deputado federal pelo Rio) Hélio Bolsonaro", diz Carazza, que é professor do Ibmec e da Fundação Dom Cabral.
"Criar a regra, por si só, não garante que você vá aumentar as chances de mulheres, pretos e pardos. Porque não há nenhuma regra de governança sobre a distribuição do dinheiro", diz.