Paulo Gustavo: o que a ciência diz sobre a asma, citada erroneamente como 'comorbidade' do ator
Ao contrário do que se imaginava no início da pandemia, a doença crônica marcada por crises de falta de ar não é fator de risco para o agravamento da covid-19. Morte de humorista reacendeu a discussão e levantou muitas dúvidas sobre a questão.
Durante a apresentação da final do programa Big Brother Brasil, na TV Globo, na noite da terça-feira (04/05), o apresentador Tiago Leifert precisou dar a notícia da morte de Paulo Gustavo por complicações da covid-19. A morte havia sido anunciada minutos antes.
Numa conversa com os participantes, o jornalista comentou que o ator e comediante tinha "comorbidades".
Durante a tarde de terça, quando as notícias sobre o estado de saúde do artista não eram animadoras, essa informação já havia sido negada pela atriz Tatá Werneck, uma das melhores amigas de Gustavo, em postagens nas redes sociais:
"Paulo não tem comorbidades! Teve asma há 10 anos e nunca mais teve crise. Enxerguem a realidade! Parem de negar a gravidade desse vírus", escreveu.
As informações desencontradas confundiram ainda mais pessoas com asma e seus familiares, que ficaram assustados com um eventual risco aumentado de desenvolver formas graves da covid-19.
"Recebo uma ligação atrás da outra. Eu tento sempre acalmar os pacientes e passo as orientações baseadas nas evidências científicas", conta o pneumologista Guilherme Freire Garcia, da Santa Casa de Belo Horizonte.
Pelo que se sabe até o momento, a asma não representa um fator de risco para a covid-19.
"De forma geral, em comparação com o resto da população, os portadores da enfermidade não têm mais chance de pegar o coronavírus, desenvolver as formas graves da infecção, ir para a terapia intensiva ou morrer", responde Garcia, que também integra o Comitê de Asma da Sociedade Brasileira de Pneumologia e Tisiologia (SBPT).
Um aparente contrassenso
No início da pandemia, durante o primeiro semestre de 2020, pneumologistas e imunologistas acreditavam que a covid-19 poderia ser mais grave e até potencialmente fatal nos asmáticos.
A suspeita baseava-se no fato de que outros vírus causadores de infecções respiratórias, como o rinovírus (resfriado) e o influenza (gripe), costumam ser mais preocupantes e complicados nesses indivíduos.
Logo, não era estranho imaginar que o coronavírus também pudesse causar mais estragos nos pulmões dos portadores dessa condição crônica.
Mas, contrariando todas as expectativas, os estudos científicos não encontraram essa relação, para surpresa dos próprios especialistas.
"Desde as primeiras pesquisas, observamos que a taxa de pacientes com asma leve e moderada sob controle que precisaram ser internados em razão da covid-19 não era superior ao restante da população", detalha o imunoalergologista Pedro Giavina-Bianchi, coordenador do Departamento Científico de Asma da Associação Brasileira de Alergia e Imunologia (Asbai).
"Isso nos permite afirmar, portanto, que o asmático não é considerado grupo de risco para a covid-19", completa o especialista, que também é professor da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo.
Pelo que se sabe até agora, a maior probabilidade de agravamento só acontece mesmo nos pacientes com os quadros mais sérios, em que nem o melhor tratamento disponível consegue conter as crises de falta de ar.
Para acabar com as dúvidas, a Asbai, a SBPT e a Associação Médica Brasileira se reuniram e publicaram em fevereiro de 2021 um documento com orientações e informações para seus pacientes durante a pandemia.
"Nos estudos que avaliaram a gravidade da covid-19, o diagnóstico de asma em geral não foi associado a piores desfechos, independentemente da idade, obesidade ou outras comorbidades de alto risco. Não houve diferença significativa no tempo de internação hospitalar, necessidade e tempo de intubação, traqueostomia, readmissão hospitalar ou mortalidade entre pacientes com e sem asma. Portanto, no momento, não existem evidências de piores desfechos clínicos relacionados à covid-19 no asmático leve a moderado com a doença controlada", ratificam os autores.
Pelas poucas informações disponíveis, o humorista Paulo Gustavo provavelmente tinha, no máximo, um quadro leve de asma, que estava controlado há tempos.
Portanto, essa enfermidade não serviria para explicar a evolução ou sua morte em decorrência da infecção com o coronavírus.
Uma conjunção de fatores
Além de não encontrarem um risco elevado na grande maioria dos asmáticos, os cientistas fizeram uma descoberta ainda mais curiosa: a doença crônica poderia até ser um fator protetor contra a covid-19.
Mas como explicar esse achado surpreendente?
Embora ainda sejam necessários mais estudos para esclarecer a questão de vez, há pelo menos duas prováveis hipóteses.
Primeiro, os quadros de asma relacionados às alergias, em que ácaros, pelos de animais e outros produtos funcionam como gatilhos para as crises, estão relacionados a uma menor presença do receptor ECA-2 na superfície das células pulmonares.
E é justamente esse o receptor usado pelo coronavírus para invadir as células e iniciar a infecção — sem ele, portanto, o agente viral certamente vai encontrar mais dificuldades.
A segunda teoria aponta para a ação de alguns dos remédios utilizados no tratamento da enfermidade.
"Na situação específica desses pacientes, o uso de medicamentos da classe dos corticoides também poderia ter algum papel que ainda precisa ser melhor esclarecido neste contexto", aponta Bianchi.
Que fique claro: o fato de ter asma pode até eventualmente representar uma proteção extra contra a covid-19, mas isso não significa que essas pessoas estão livres das medidas preventivas, como o uso de máscaras, o distanciamento físico, a lavagem das mãos e o cuidado com a circulação de ar pelo ambiente.
"Quem tem asma apresenta o mesmo risco de pegar o coronavírus de um indivíduo sem a doença. Portanto, é preciso se cuidar", arremata o médico.
E a precaução maior tem outro efeito colateral positivo: todas essas medidas também ajudam a evitar quadros de gripe e resfriados.
E isso, por sua vez, se reverte num menor risco de crises e complicações por essas outras doenças infecciosas.
E a vacinação?
Outro ponto de confusão constante é a imunização contra a covid-19.
Afinal, quem tem asma faz parte do público-alvo para receber as doses ou não?
De acordo com as últimas diretrizes do Ministério da Saúde, por enquanto a vacina só estará disponível para aqueles com quadro mais grave da doença.
Os demais, que apresentam graus leves e moderados, precisarão esperar mais um pouco em razão da escassez de doses e da urgência em resguardar outros grupos que correm mais perigo.
"Vale salientar que os pacientes que integram o público-alvo não precisam ficar com medo de tomar a vacina. As pesquisas não encontraram riscos de reações alérgicas neste grupo", indica Garcia.
E isso vale inclusive para aqueles que fazem uso contínuo de remédios da classe dos corticoides ou dos imunobiológicos.
Se você tem histórico de alergias graves e constantes e está com alguma dúvida, converse com seu médico para que ele possa passar uma orientação individualizada para o seu caso.
Continuidade das terapias
Bianchi lembra que, apesar de todas as limitações da pandemia, é essencial que os asmáticos sigam o tratamento à risca.
"Independentemente de qualquer outro quatro associado, a asma ainda mata sete brasileiros todos os dias", calcula.
"Além disso, muitos dos sintomas da doença, como tosse, falta de ar e dor no peito, podem ser confundidos com os sinais da covid-19 e isso dificulta o diagnóstico", acrescenta.
Para piorar, as crises de falta de ar costumam exigir idas ao pronto-socorro — locais que, na atual conjuntura, representam um altíssimo risco de infecção pelo coronavírus.
Diante de tudo isso, é ainda mais importante continuar tomando os remédios, segundo a orientação do médico que acompanha o caso.
Pelas últimas estimativas, essa enfermidade crônica atinge cerca de 12% dos brasileiros (ou cerca de 24 milhões de pessoas no país).
Curiosamente, o Dia Mundial da Asma foi comemorado na quarta (05/05), um dia após a morte de Paulo Gustavo. A data chama a atenção para a necessidade do diagnóstico e do tratamento corretos da doença.
E, de acordo com Garcia, a situação dos portadores melhorou muito recentemente.
"Nos últimos 15 anos, com a evolução terapêutica e a disponibilização de remédios gratuitos pelo Programa Farmácia Popular, conseguimos diminuir o número de pacientes com quadros graves de asma que necessitavam de internação em mais de 50%", calcula.
E tudo indica que mais avanços devem ocorrer num futuro próximo.
"Estamos propondo algumas mudanças no protocolo nacional de tratamento da asma, que deve incluir novas medicações para os casos mais graves", finaliza o pneumologista.