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Pessoas buscam 'salvação' na 'masculinidade extraordinária' de homens como Trump e Bolsonaro, diz historiadora dos EUA

Professora de Princeton, Joan Scott argumenta que 'brutalidade e vulgaridade' de líderes atraem eleitores em momentos de crise - mas que alternativa seriam figuras com 'senso suavizado de paternidade', que 'tomam conta de nós não pela força, mas pelo cuidado'.

5 jun 2019 - 09h56
(atualizado às 11h05)
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Para Joan Scott, 'habilidade de exercer um poder extraordinário é ainda entendida como um traço de masculinidade, particularmente uma masculinidade excepcional - mais forte e poderosa'
Para Joan Scott, 'habilidade de exercer um poder extraordinário é ainda entendida como um traço de masculinidade, particularmente uma masculinidade excepcional - mais forte e poderosa'
Foto: REUTERS/Carlos Barria / BBC News Brasil

Um mês antes da eleição, uma candidata à Presidência dos Estados Unidos tem uma gravação antiga vazada. Na fita, ela descreve seus métodos de sedução: "pegue os caras pelo pênis", comenta, satisfeita. "Quando você é uma estrela, eles te deixam fazer de tudo."

Se a situação fosse real, a campanha da candidata teria chegado ao fim, afirma a historiadora americana Joan Scott.

Pioneira em analisar a história pelo viés do gênero, Scott diz que uma mulher não seria perdoada por declarações como essas, que na boca de colegas homens tornam-se polêmicas passageiras.

A fala acima, por exemplo, foi feita pelo atual presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, nos bastidores de um programa de TV, anos antes de sua candidatura. "Agarre-as pela vagina", ele disse no vídeo divulgado em outubro de 2016. O material não impediu sua vitória um mês depois.

De acordo com a historiadora, que também é professora no Instituto de Estudos Avançados de Princeton e autora de livros sobre desigualdade de gênero e política, as mulheres são submetidas a um crivo muito mais minucioso - e duro - no jogo eleitoral. Para participar dele, explica, precisam alcançar um equilíbrio difícil entre força e feminilidade: não devem parecer muito agressivas e, portanto, masculinas, nem muito sensíveis e, logo, frágeis.

"Você não consegue imaginar uma figura como Hillary Clinton dizendo o mesmo tipo de coisas loucas que Trump diz, insultando pessoas. Ela seria desconsiderada como uma mulher histérica."

Mas é justamente a "brutalidade e vulgaridade" de figuras como Trump e Bolsonaro, continua Scott, que atraem os eleitores em tempos de crise. Segundo ela, busca-se na "masculinidade excepcional" exibida por esses líderes a solução de todos os problemas, como um pai que salvará o país do caos.

"E eles precisam colocar as mulheres em seu lugar para poder fazer isso, o que torna difícil para elas encontrar uma posição que exerça a mesma atração."

Soma-se a isso o entendimento de que liderança é uma característica masculina: homens seriam poderosos, governantes natos, já às mulheres restaria o papel de destinatários de seu amor e proteção.

"O problema aí é que, se uma mulher tenta exercer esse poder, ela é vista como anormal."

Leia abaixo os principais trechos da entrevista.

BBC News Brasil - Em um texto recente, a senhora falou sobre o "magnetismo animal" de Donald Trump e discutiu as razões pelas quais Hillary Clinton não foi eleita, entre elas o fato de ela ser mulher. Isso limitaria "as possibilidades de que parecesse atrativa [para o eleitorado]". Por que uma candidata não teria tanto "magnetismo" quanto Trump ou Jair Bolsonaro, no Brasil?

Joan Scott - Há um estereótipo de gênero, no qual os homens são os líderes, os governantes, e as figuras poderosas, e as mulheres são os destinatários passivos de sua proteção, amor ou de qualquer coisa que seja. É uma resposta psicológica profundamente enraizada para as questões de liderança, que sempre foi definida como [uma característica] masculina.

E apesar de termos tido mulheres líderes, como Angela Merkel, Margaret Thatcher e Indira Gandhi [primeira-ministra da Índia de 1966 a 1977], a habilidade de exercer um poder extraordinário é ainda entendida como um traço de masculinidade, particularmente uma masculinidade excepcional - mais forte e poderosa.

(...) Em tempos de crise e revolta na sociedade, as pessoas se voltam parafiguras de poder e masculinidade extraordinários em busca de salvação.

O problema aí é que, se uma mulher tenta exercer esse poder, ela é vista como anormal, não-feminina, masculina, em maneiras que são entendidas como perigosas. Porque a outra coisa que esses caras fazem é apelar para noções tradicionais de masculinidade e feminilidade.

Então, Bolsonaro fala para vocês que mulheres devem cuidar da casa; na Turquia, [o presidente Recep Tayyip] Erdogan diz que o papel principal da mulher é ter filhos, para salvar nosso futuro; Trump pensa nas mulheres com objetos de satisfação sexual. O que quer que nós sejamos, nos apresentar como poderosas é considerado anormal.

BBC News Brasil - Como fugir disso?

Joan Scott - A coisa interessante agora nos Estados Unidos é a forma como Nancy Pelosi [congressista democrata e presidente da Câmara dos Representantes dos EUA] está se recusando a deixar Trump colocá-la nessa posição. Muitas pessoas vão te dizer que a odeiam, porque querem retratá-la como anormal. Como o que fizeram na semana passada, quando divulgaram um vídeo dela em câmera lenta para que parecesse bêbada.

Isso é uma tentativa de mostrar que há algo errado, que ela não pode ser tão poderosa como parece ou capaz de resistir às ações de Trump. E Nancy diz o que pensa: "ele [o presidente] precisa ser interditado". Todas essas coisas são verdade, mas o fato de ela falar isso e ser considerada uma figura política poderosa está chateando Trump, está enlouquecendo-o.

O interessante é que ela usa vestidos, sempre se apresenta como uma mulher. Ela é uma mãe, uma avó e vai te dizer isso um milhão de vezes. Então ela está insistindo em sua "feminilidade normal", mesmo que exerça um poder extraordinário.

O que eles procuram, esses caras, é sua masculinidade excepcional como solução para todos os nossos problemas. E eles precisam colocar as mulheres em seu lugar para fazer isso, o que torna difícil para elas encontrar uma posição, em contraponto a essas ideias, que exerça a mesma atração.

As pessoas que respondem a Trump estão procurando exatamente por aquele tipo de figura paterna que tome conta de tudo. E a pergunta é: há uma mulher que possa fazer isso? Não sei o que seria necessário ou como funcionaria.

BBC News Brasil - Pensando no que a senhora escreveu sobre Hillary Clinton, uma possível líder precisaria assumir uma posição menos feminina, para que as pessoas a vissem como mais forte?

Joan Scott - Sim, e esse é o problema. Como fazer isso funcionar, de uma maneira que não desconsiderem você como anormal. Você não consegue imaginar uma figura como Hillary Clinton dizendo o mesmo tipo de coisas loucas que Trump diz, insultando pessoas. Ela seria desconsiderada como uma mulher histérica.

Então deve haver uma postura diferente e é isso que Nancy Pelosi está descobrindo. Agora, ela não está concorrendo à Presidência contra Trump, está numa posição diferente, ela é a presidente da Câmara dos Representantes. Trump está tentando fazer com que ela pareça louca, mas não consegue, porque ela está mantendo sua posição e não é ambivalente. Hillary Clinton sempre foi ambivalente sobre como se apresentar.

BBC News Brasil - Muito se fala sobre a ascensão de figuras como Trump, Bolsonaro e Modi, primeiro-ministro da Índia, em momentos de crise. Como você explica o fortalecimento de homens com perfil tão parecido?

Joan Scott - Para ser, talvez, muito simplista sobre o assunto: é a crise do capitalismo neoliberal. Os ricos estão ficando mais ricos, os pobres estão ficando mais pobres, as separações e divisões no mundo estão aumentando dramaticamente. Há hordas de imigrantes chegando aos países europeus das áreas de guerra do Oriente Médio e da África, e, nos Estados Unidos, de países pobres da América Latina. Você tem uma decepção geral com as expectativas que as pessoas tinham sobre a vida.

(...) Faz sentido o que está acontecendo. A época para a qual olhar são os anos 1930 na Europa e em todo mundo, quando havia uma crise econômica gigante e as pessoas que apareceram para solucionar o problema prometeram poderes extraordinários, quase mágicos, para conseguirem fazer isso. E esses poderes mágicos estavam amarrados a sua masculinidade.

(...) Há algo na vulgaridade e brutalidade dessas figuras que é atraente. As pessoas pensam "ah, eles sabem como mandar em todo mundo; eles vão terminar com o crime, com a corrupção". Mesmo no caso de Duterte, [presidente] nas Filipinas, que está matando todo mundo.

Há também o apelo do discurso nacionalista, de que são outros os responsáveis por nossos problemas, sejam eles imigrantes ou minorias étnicas. Trump é a promessa do retorno da supremacia branca desafiado por uma população crescente de não-brancos nos Estados Unidos.

Matteo Salvini, na Itália, e Nigel Farage, o cara do Brexit, em Londres, são a mesma coisa. Todos eles veem os imigrantes ou as minorias como o problema que precisa ser contido e trocam o enfoque das grandes forças capitalistas, dos empresários como eles, para esses "outros", que precisam ser mantidos fora do país. [Eles dizem]: "se conseguirmos purificar a nação, ficaremos melhor".

BBC News Brasil - No artigo citado acima, a senhora questiona como a democracia pode lidar com o grande apelo de figuras autoritárias - homens, na sua maioria. Faço a mesma pergunta: como a democracia pode manejar essa tendência?

Joan Scott - Uma coisa é procurar por outras alternativas que funcionaram. Na Europa, depois da Segunda Guerra Mundial, você teve algum apelo à democracia social, ao bem comum, a uma noção coletiva de necessidade e interesses. Tivemos [o presidente] Franklin D. Roosevelt nos Estados Unidos e o New Deal [série de programas implementados entre 1933 e 1937 nos EUA para recuperar e reformar a economia norte-americana], que eram a alternativa ao fascismo aqui. Você teve Martin Luther King como um objeto de enorme veneração, amor e respeito.

Existiram figuras que se tornaram a personificação da comunidade. Elas também eram poderosíssimas e, em muitos desses exemplos, paternais, mas é um tipo diferente de figura. Não é uma de hipermasculinidade, mas de....- eu quase quero dizer maternal -, de um senso suavizado de paternidade. Ainda podemos olhar para a figura masculina como capaz de tomar conta de nós, mas de um jeito diferente, não pela força ou violência, mas pelo cuidado.

Para substituir líderes mais autoritários, diz professora, precisaríamos pensar em figuras paternas "suavizadas", como Martin Luther King
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Foto: BBC News Brasil

Pense em Cárdenas, no México [Lázaro Cárdenas del Río, um dos presidentes mais populares do país (1934-1940) e responsável pela nacionalização do petróleo local] ou em Bolívar [Simón Bolívar, líder político venezuelano e um dos pioneiros na luta contra a colonização da região no século 19], na América Latina. Há momentos em que líderes fortes e admirados se apresentam, mas os amamos não porque eles são mais poderosos do que nós, mas porque representam algo comum a todos. E historicamente há exemplos disso.

BBC News Brasil - Então precisamos de um tipo diferente de pai?

Joan Scott - (Risos) Sim. Acho que isso é...Gandhi. Olhe para esses caras que conseguiram personificar um espírito comunal e nacional, mas de uma maneira muito diferente da dos atuais populistas de direita.

(...) Ou...Uma [figura] que eu gostaria de saber mais sobre é Angela Merkel, na Alemanha, porque por muito tempo ela foi bem sucedida.

Tenho certeza que havia pessoas que tiravam sarro dela ou a atacavam como uma mulher anormal, mas ela conseguiu ser forte e cuidadosa de uma forma diferente da de Margaret Thatcher, que era tão masculina quanto os homens de seu tempo. Ela e Ronald Reagan [presidente americano de 1981 a 1989 e contemporâneo de Thatcher] eram do mesmo tipo.

Se conseguíssemos pensar em como um líder pode personificar uma aspecto cuidadoso e comunal, então seria possível pensar em mulheres nesse papel.

BBC News Brasil - Essa seria minha próxima pergunta. Em um cenário de crise econômica e política, mas também de transformação nas funções de homens e mulheres, uma mulher poderia assumir essa liderança alternativa?

Joan Scott - Bom, acho que nesses momentos, a tendência é voltar-se para estereótipos, para o que sempre pareceu confortável - a heterossexualidade, "casamento é entre um homem e uma mulher", "família é o fundamento da ordem na sociedade" e todo o resto. É isso que esses caras também representam. Viktor Orbán [primeiro ministro], na Hungria, eliminou os estudos de gênero, como acho que Bolsonaro quer fazer no Brasil. Porque dizem que é um desafio ao jeito de Deus, ou ao jeito natural, segundo o qual a vida deveria ser organizada.

Nesses momentos de crise, as pessoas olham para os velhos jeitos de fazer as coisas, para o que sempre acreditaram, para o que foram criados a ver como mais seguro do que os desafios oferecidos pelo casamento gay e formas alternativas de sexualidade. O mundo agora está dividido entre as pessoas que pensam dessas novas maneiras e pessoas que querem se segurar aos velhos jeitos. E esses autoritários apelam para os velhos jeitos e tentam forçá-los sobre o resto de nós.

Uma outra pergunta para a qual não tenho resposta é: o que pode emergir do lado das novas formas de pensar sobre gênero, como uma solução para essas crises?

Porque estamos falando da política que migrou à direita, mas há uma população substancial, metade do mundo, provavelmente, e mais do que metade dos Estados Unidos, que não acredita nessas ideias. Uma parte da população que não elegeu Trump e faria qualquer coisa para encontrar uma alternativa. E a pergunta é: por que não estamos recebendo uma outra política vindo desse lado? O que aconteceu com a esquerda? Como ela perdeu sua conexão com a maneira como o mundo estava mudando?

BBC News Brasil - Por que momentos de crise despertam essa necessidade de figuras paternas? Ou sempre precisamos disso?

Joan Scott - Não, acho que é especialmente em momentos de crise. Quando as coisas estão incertas, ninguém sabe o que vai acontecer e todas as formas como achamos que a vida deveria ser organizada parecem estar caindo aos pedaços. A crise traz a necessidade dessa figura.

BBC News Brasil - A esquerda precisa entender essa necessidade de um pai para pensar estratégias futuras?

Joan Scott - Acho que sim. É difícil prever quem pode se apresentar, ele ou talvez ela, para preencher essa necessidade. Mas acho que são momentos de crise que causam esse desejo por figuras poderosas que vão tomar conta de nós, nos guiar para fora do deserto.

Alguém escreveu um artigo interesse não há muito tempo, acho que foi Michelle Goldberg, no [jornal] The New York Times, uma colunista. Ela disse que uma das fontes de apoio de Trump tem a ver com as pessoas imaginando que, se fossem ricas, seriam como ele. De novo, é uma identificação psicológica, não explicitamente consciente ou racional, que diz "se eu estivesse no comando, é isso que eu faria". De um lado, quero que ele tome conta de mim, do outro, me identifico com ele. Ele está mandando nas pessoas, gritando, cuidando da gente do jeito como eu cuidaria. É uma fantasia de identificação com seu poder.

BBC News Brasil - Uma mulher seria capaz de causar essa identificação? Se ela encontrasse uma forma de ser forte e feminina, como Nancy Pelosi, o eleitorado poderia aceitá-la ou ela seria automaticamente repelida?

Joan Scott - Há duas partes nisso: uma é a mulher descobrir como se apresentar como ela mesma; a outra é saber como resistir aos ataques. E essas duas coisas precisam andar juntas.

Quando a candidata socialista Ségolène Royal concorreu à Presidência da França, ela não conseguiu descobrir como uni-las. Sempre usava roupas chiques e toda vez que a atacavam, tentava desmenti-los - "não, eu sou realmente uma mulher normal!" - , em vez de ignorá-los. Então essas são duas partes são: primeiro, [é necessário] uma mulher que tenha as características e o carisma para gerar uma resposta amorosa do eleitorado, e, segundo, [que saiba] combater os ataques inevitáveis, que tentarão retratá-la como "anormal". Ou ela será retratada como muito feminina, porque mulheres não conseguem liderar, ou como muito masculina e, logo, perigosamente desconectada com o que significa ser americano ou brasileiro.

São esses dois elementos que uma mulher precisaria negociar. É uma pergunta aberta. Pode ser que haja alguém aí. Como historiadora, odeio dizer que depende inteiramente de um indivíduo, mas pode ser o caso. Se surgir alguém que tenha a combinação certa dessas coisas, pode funcionar.

BBC News Brasil - Mas o cenário em si é injusto, não? Porque uma resposta errada de uma mulher pode acabar com sua candidatura, enquanto falas polêmicas de homens não os tiraram da disputa.

Joan Scott - Você consegue imaginar? Até se um negro fizesse isso [seria complicado]. Se Obama fosse flagrado pagando uma atriz pornô para não falar nada sobre dormir com ele, estaria fora da campanha em um minuto [Trump foi acusado disso]. É apenas esse cara [Trump] que consegue passar incólume.

Lembre-se da campanha de Hillary Clinton, quando ela tentou parecer confiante e começou a beber uísque. E todos diziam: "olhem como ela é durona". Mas aí algo aconteceu e eles falaram que ela estava sendo muito masculina. Então houve outra coisa, ela chorou e aquilo a derrubou. Não importava o que ela fizesse, ela era sempre muito durona ou muito fraca.

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