PF vê crime em ação de Bolsonaro: o que acontece agora?
A instituição concluiu que chefe de Estado brasileiro infringiu a lei ao vazar dados sigilosos de investigação sobre urnas eletrônicas, mas disse que ele tem foro privilegiado e, por isso, decisão de imputá-lo deve ser autorizada pelo STF.
A Polícia Federal concluiu nesta quarta-feira (2/2) o inquérito que apurava o vazamento de documentos sigilosos de uma investigação sobre urnas eletrônicas pelo presidente Jair Bolsonaro (PL).
A instituição determinou que houve crime quando, em uma live em agosto de 2021, o presidente divulgou as informações privadas sobre o caso. A PF, porém, não indiciou o chefe de Estado, sob a justificativa de que ele tem foro privilegiado.
A delegada responsável pelo inquérito, Denisse Dias Rosas Ribeiro, afirmou que o crime cometido pelo presidente foi o de divulgação de segredo.
Segunda ela, Bolsonaro e o deputado Filipe Barros, que também participou da live investigada, tiveram "atuação direta, voluntária e consciente" na prática do crime de vazamento de dados sigilosos, pois, segundo ela, "na condição de funcionários públicos, revelaram conteúdo de inquérito policial que deveria permanecer em segredo até o fim das diligências".
No relatório final do inquérito, porém, Rosas Ribeiro afirmou que não poderia indiciar Bolsonaro ou Barros, já que os dois gozam de foro privilegiado.
"Deixou-se, entretanto, de promover o indiciamento de Filipe Barros Baptista de Toledo Ribeiro e de Jair Messias Bolsonaro em respeito ao posicionamento de parte dos excelentíssimos ministros do Supremo Tribunal Federal, que preconiza que pessoas com foro por prerrogativa de função na egrégia Corte só podem ser indiciadas mediante prévia autorização", diz o documento.
Nas mãos do STF
Segundo especialistas da área de direito penal, a PF não decretou o indiciamento porque a decisão de imputar o presidente deve ser antes autorizada pelo Supremo Tribunal Federal (STF).
"Nos últimos anos, o Supremo tem entendido que em casos que envolvem autoridades com prerrogativa de foro, o juízo de indiciamento não é do delegado, mas sim do próprio STF", afirma Davi Tangerino, professor adjunto de Direito Penal da UERJ (Universidade do Estado do Rio de Janeiro) e da FGV (Fundação Getúlio Vargas).
O relatório final da investigação feita pela Polícia Federal sobre o vazamento de informações sigilosas foi enviado na noite de terça-feira (01/02) ao ministro Alexandre de Moraes, do STF. O magistrado é o relator do caso e irá avaliar a possibilidade de indiciamento.
"Não caberá ao ministro Alexandre de Moraes, como juiz, fazer o indiciamento, mas sim autorizar ou não a PF a fazê-lo, superando a barreira imposta pela cláusula do foro privilegiado", explica o advogado criminal Carlos Nicodemos.
"O mais importante desse relatório da PF é a conclusão de que houve prática de crime. O indiciamento agora vai ser uma matéria cujo pontapé inicial será dado pelo ministro Alexandre de Moraes", diz ainda Tangerino.
O entendimento de que presidentes só podem ser indiciados pela Polícia Federal com autorização do próprio STF é baseado em precedentes anteriores.
Desde 2007, os ministros da corte têm determinado que a PF não tem competência para imputar autoridades com prerrogativa de foro privilegiado, como presidentes, vice-presidentes e membros do Congresso Nacional.
A única exceção aconteceu em 2018, quando o ministro Luís Roberto Barroso negou um pedido para anular o indiciamento do presidente Michel Temer no inquérito sobre o Decreto dos Portos.
Segundo Carlos Nicodemos, por tratarem-se de decisões no âmbito judicial a partir de posicionamentos institucionais do Supremo, os casos podem ter desfechos diferentes a depender de suas particularidades. "As decisões podem variar de acordo com o delito cometido ou o período da prática do delito", diz.
Próximos passos
A decisão da PF de não indiciar Bolsonaro e Barros, porém, não significa que o presidente e o deputado não possam ser imputados no futuro.
Além de ser analisada pelo STF, a conclusão do inquérito também será levadO para a Procuradoria-Geral da República (PGR), a quem cabe propor ou não uma denúncia sobre o caso contra Bolsonaro e Filipe Barros.
"A PGR tem três opções básicas: pode arquivar o caso, oferecer denúncia ou determinar mais diligências (levantamento de provas) para a polícia", explica Davi Tangerino.
O advogado também ressalta que a decisão da procuradoria independe do indiciamento de Bolsonaro e Barros pelo STF.
"O indiciamento é um ato formal de delegados de polícia, que na prática quer dizer apenas que na opinião daquela autoridade, o indiciado é o provável autor de um delito", diz o advogado e professor de Direito. "O Ministério Público não é obrigado a denunciar o indiciado, e pode até decidir por denunciar outra pessoa".
Caso a PGR decida por denunciar Bolsonaro ao STF, o Congresso Nacional terá de autorizar o prosseguimento do processo. Somente depois, o presidente é julgado pelo Supremo.
Se não houver autorização, o processo fica suspenso até o final do mandato do presidente.
O crime de vazamento de dados sigilosos está previsto no Artigo 325 do Código Penal brasileiro. Ali se estipula que a pena para esse tipo de delito é de 2 a 6 anos de prisão, mais multa.
Para os especialistas consultados, não é fácil prever a decisão da PGR, mas as provas contra Bolsonaro são fortes.
"O próprio presidente admite que compartilhou os documentos na live e, sem dúvidas, o arquivamento pela PGR passaria por alguma dificuldade", opina Davi Tangerino.
"Tecnicamente sobram elementos para denunciar tanto o presidente como o deputado Filipe Barros", diz Carlos Nicodemos. "Eu entendo, inclusive, que não há sequer necessidade de esperar o indiciamento pela Polícia Federal, pois o Ministério Público Federal já tem provas consolidadas pela PF para denunciá-los e deflagrar a ação penal."
Ausência em depoimento
Em seu relatório, a PF também discorre sobre a ausência do presidente Jair Bolsonaro em um depoimento sobre o caso marcado para Brasília na semana passada. Segundo a delegada Denisse Dias Rosas Ribeiro, a decisão do chefe de Estado de não comparecer "não trouxe prejuízo ao esclarecimento dos fatos".
O ministro Alexandre de Moraes, porém, enviou nesta quarta à PGR uma notícia-crime contra Bolsonaro por sua ausência no interrogatório.
A acusação encaminhada por Moraes foi feita na última sexta-feira (28/01) por um advogado, que diz que Bolsonaro descumpriu ordem judicial ao não comparecer. No despacho, o ministro do STF dá 15 dias para que a procuradoria se manifeste.
Segundo o advogado Carlos Nicodemos, o encaminhamento à PGR é de praxe e faz parte do andamento processual. "A notícia-crime veio de um terceiro e o magistrado a encaminhou a quem tem direito, já que não possui a função de investigação", diz.
Os especialistas ainda concordam que o não comparecimento do presidente não prejudica demasiadamente a investigação. "O interrogatório é um ato de defesa, mas mesmo sem ele os fatos permaneceram aferíveis e passíveis de avaliação pelas provas, conforme a própria PF já determinou", diz Davi Tangerino.
Em uma entrevista à Record TV na semana passada, o presidente afirmou que faltou ao depoimento na PF por orientação do AGU (advogado-geral da União), Bruno Bianco.
Bolsonaro disse ainda que o inquérito "sempre foi ostensivo". "Não tinha grau de sigilo nenhum. Passou a ter depois da minha live. Isso que nos surpreende", completou.
O caso
Em agosto de 2021, Bolsonaro divulgou durante uma live nas suas redes sociais uma série de documentos em que falava de supostos problemas no sistema eleitoral brasileiro.
O presidente divulgou links que continham os resultados de um inquérito sigiloso da Polícia Federal sobre a segurança das urnas eletrônicas. A investigação de 2018 apurava um ataque hacker no sistema do Tribunal Superior Eleitoral (TSE).
As informações sigilosas foram usadas por Bolsonaro para defender sua tese falsa de que as urnas eletrônicas são passíveis de invasão externa e que as eleições presidenciais em 2018 foram fraudadas.
Bolsonaro afirmou que as informações dos relatórios eram de interesse "para todos nós", e por isso optou por divulgá-las.
Em parecer divulgado no final de janeiro, a Advocacia-Geral da União (AGU) afirmou que o inquérito divulgado por Bolsonaro não estava sob sigilo no momento em que o presidente compartilhou os documentos nas redes sociais. O informe, porém, foi rejeitado pelo ministro Alexandre de Moraes, que intimou o presidente a depor.