Piloto que levou Jango ao exílio luta por reconhecimento
Hernani Fittipaldi foi preso, colocado na reserva, teve o brevê confiscado e o salário cortado por se manter fiel ao presidente deposto pelos militares
Aos 93 anos, a memória do coronel Hernani Fittipaldi já não é mais tão confiável. Entre uma olhada e outra pela janela de seu apartamento, de onde observa o movimento dos aviões no aeroporto de Brasília, o aviador, um dos fundadores do antigo Ministério da Aeronáutica, tem lampejos daquele 1º de abril de 1964, quando decolou com o avião presidencial transportando o então presidente João Goulart com destino ao exílio.
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Jango estava no Rio de Janeiro, onde recebeu as primeiras informações de que o general Olympio Mourão Filho iniciara a movimentação das tropas de Juiz de Fora em direção à capital fluminense. Por volta das 10h, o presidente decidiu voltar para Brasília para procurar apoio do Congresso Nacional. Chegou à capital em um voo comercial da Varig.
Em conversa com o Terra, Fittipaldi lembra que na tarde daquele dia 1º recebeu um telefonema. Era Jango em pessoa. Com a voz calma, o presidente disse que precisava deixar Brasília e ir ao Rio Grande do Sul. “Cumpri uma ordem do presidente. Não havia a menor condição de não cumprir a ordem de um presidente, especialmente quando ele era um amigo meu”, relata. O então major da Aeronáutica desligou o telefone e apenas disse à mulher que talvez não volatria.
"Jango veio em um avião da Varig do Rio até Brasília. Só que o voo, também da Varig (que o levaria a Porto Alegre) não saía - os militares já o tinham proibido. Às 19h, encostou um avião da FAB (Força Aérea Brasileira) e eu disse ao Jango: ‘Olha, se o senhor quiser ir para Porto Alegre, vamos passar para um avião da FAB, pois esse (da Varig) não vai decolar’. Jango esperou cinco minutos e passou para o C-47. Ouviu o noticiário no rádio sobre a deposição e aí decolamos”, conta Fittipaldi.
Gaúcho de Uruguaiana, Hernani chegou a estudar com Jango no ginásio. Foi essa relação, somada à confiança que Getúlio Vargas, de quem foi ajudante de ordens, sempre depositou no piloto, que fez João Goulart convidar Fittipaldi para ser o piloto oficial da Presidência. Durante aquele voo entre Brasília e Rio de Janeiro, no entanto, apesar da proximidade, os dois não trocaram uma palavra sequer.
"Ele não falou nada na viagem, estava tentando dormir. Tinha outras pessoas no avião, mas o momento era de tristeza e abatimento. Era um presidente que estava sendo deposto. Sobre o que poderíamos conversar? Não tinha clima para nada”, lembra o piloto.
O cunhado de Jango, Leonel Brizola, era governador do Rio Grande do Sul à época. Ao aterrissar em Porto Alegre, a tripulação descobriu que um tenente ainda leal ao governo comandava o grupo que fez a guarda regulamentar do avião presidencial. Fittipaldi lembra de uma conversa que Jango, Brizola e sete generais tiveram na casa de Ladário Pereira Teles, comandante do 3º Exército.
“O Brizola ainda tentou convencer o Jango a resistir. Disse para reestabelecer o governo a partir do Rio Grande do Sul, nomeando o Ladário ministro da Guerra e o próprio Brizola ministro da Justiça. Foi uma confusão, mas o Jango não abria a boca, não falou nada. Ele não queria resistir para não criar uma guerra civil”, diz Fittipaldi.
Às 11h45 do dia 2 de abril, a bordo do C-47, Jango partiu de Porto Alegre para São Borja, sua cidade natal, onde o aguardavam a primeira-dama Tereza Goulart e os filhos. Vinte e quatro horas depois, desta vez sob comando de seu piloto particular, Manoel Soares Leães, morto em 2001, Jango partiu para Montevidéu.
Prisão
No retorno a Brasília, logo que pousou o C-47 da FAB, Hernani Fittipaldi teve o avião cercado por militares, foi preso e um Inquérito Policial Militar foi imediatamente instaurado contra ele. Após ser interrogado por dezenas de militares, o piloto foi levado para o porão de um navio prisão, o Custódio de Mello, fundeado na Baía de Guanabara, no Rio de Janeiro. Dias depois, ainda sem uma confirmação oficial dos militares sobre o paradeiro do aviador, a Aeronáutica enfim telefonou para a família Fittipaldi e os informou que deveriam desocupar o imóvel funcional em que viviam em dois dias.
“Foi o momento de maior desespero. Não tínhamos qualquer notícia dele e, de repente, sem sequer falar o que tinha acontecido com meu pai, nos expulsaram de nossa casa”, conta Lúcia Fittipaldi, a filha mais velha, que tinha 16 anos em 1964.
No curso do inquérito e ao longo dos quase seis meses que passou na prisão, Fittipaldi foi cassado, colocado na reserva, teve o brevê de piloto confiscado e o salário cortado. "Apesar de ser da mesma turma de Rui Moreira Lima (outro aviador perseguido pela ditadura), até hoje não tenho a patente de brigadeiro", conta.
Essa aliás, é a maior mágoa de Fittipaldi. Em seu escritório, ele guarda um certificado do qual se orgulha. Ao lado de outros 40 oficiais, seu retrato é apontado como membro do primeiro grupo de militares do então novo Ministério da Aeronáutica. Antes de 1941, havia apenas a aviação militar, que pertencia ao Exército, e a aviação naval, ligada à Marinha. Sobre a mesa, a estátua de uma águia, entregue pelo ministério há dois anos, também faz referência ao título. No entanto, a patente de brigadeiro, que lhe seria justa, não foi devolvida.
Segundo Lúcia, Fittipaldi recebeu inúmeros convites para atuar na aviação comercial e até na Força Aérea de outros países, como nos Estados Unidos, mas ele não pôde assumir nenhum deles em virtude da cassação de seu brevê. "O último voo de meu pai foi aquele em que levou Jango para o exílio. Ele sofreu muito por não poder voar", conta a filha.