Arrastão ostentação: suspeitos no RJ expõem cotidiano na web
"Mó 'responsa', meu 'Face' tá passando na TV", escreve o adolescente J.A., morador da Vila Kennedy (zona norte do Rio de Janeiro), para seus 3 mil seguidores no Facebook. Em minutos, ele comemora mais de 200 curtidas e elogios, tudo graças à reportagem que o mostrava entre os suspeitos dos arrastões no último domingo em praias cariocas. "Os 'moleque' estão roubando a cena na Globo!", "'Nóis' passou na Record também".
Um de seus vizinhos, seguido por mais de 5 mil pessoas, publica uma selfie sem camisa, com o peito coberto por cinco correntes douradas sobrepostas. "Zona Sul é minha vitrine, lá escolho o meu 'maciço'", diz, usando gíria comum na região para colares de ouro.
Avessos a entrevistas, mas animados com o alcance midiático dos assaltos, os jovens suspeitos de promover arrastões vêm transformando redes sociais em janelas para seu cotidiano em locais que ocupam o topo das estatísticas de violência no Rio – como Penha, Jacarezinho e Manguinhos.
Em seus perfis e grupos de discussão, eles compartilham fotos de jornais com flagrantes de assaltos ("aceita que dói menos"), imagens aéreas da correria em praias ("olha eu ali de branco") e registros caseiros de fuzis, carabinas e drogas ("hoje a noite vai ser pesada"). As fotos são tiradas com celulares, em lajes ou pequenos cômodos localizados no eixo mais pobre da cidade, a dezenas de quilômetros da orla.
A distância não é só física: em Ipanema, um dos principais alvos dos arrastões, a renda mensal por morador é de R$ 6 mil e 60% das pessoas têm ensino superior completo, segundo o Atlas Brasil, da ONU. Já no Jacarezinho, de onde vêm muitos dos jovens, a renda per capita não chega a R$ 440 e só 1 em cada 100 moradores completa a faculdade.
De origem desconhecida, a frase "Enquanto não houver justiça para os pobres, não haverá paz para os ricos" se repete em dezenas de perfis ligados aos arrastões.
‘Direito de ir e vir’
À BBC Brasil, em nota, a Polícia Militar fluminense disse que 80 pessoas foram apreendidas na orla da Zona Sul e levadas a delegacias ou abrigos no fim de semana. Depois dos últimos arrastões, o governador do Estado, Luiz Fernando Pezão, e seu secretário de Segurança Pública, José Mariano Beltrame, defenderam que "jovens suspeitos" sejam impedidos de chegar às praias – contrariando o Ministério Público do RJ, que recomenda apreensões apenas em casos de flagrantes.
"Se tiver um ônibus com adolescentes que não pagaram passagem, que estão descalços, de bermuda, sem documento, leva pra delegacia e os pais vêm buscar", disse Pezão, prometendo tolerância zero a arrastões. De acordo com Beltrame, "a polícia vai agir de maneira que a população tenha o seu direito de ir e vir garantido".
Mas para Michel Misse, diretor do Núcleo de Estudos em Cidadania, Conflito e Violência Urbana da UFRJ (Necvu), o principal risco dos arrastões é justamente uma ameaça ao direito de ir e vir – só que da população mais pobre. "Entre 6% e 10% dos moradores de favelas se envolvem com algum tipo de crime. A esmagadora maioria não tem nada a ver com ladrões ou tráfico", diz o professor, que pesquisa violência há 35 anos.
"O efeito de uma abordagem generalista nos ônibus, sem inteligência policial, será mais uma vez a criminalização de pessoas que já vivem privadas do direito à cidadania", afirma. "E a polícia carioca nunca esteve preocupada em distinguir entre pobres e bandidos."
"Não se trata de racismo, mas de vulnerabilidade", diz Beltrame. "Como um jovem sai de Nova Iguaçu, a 30 km de distância da praia, sem dinheiro para comer, beber, pagar a passagem, só de bermuda?", indagou em entrevista coletiva.
Coretos, ouro e celulares
Presente em classes sociais distintas – do "champanhe que pisca" nos camarotes de casas noturnas de luxo ao funk de MC Guimé nas aberturas de novelas –, a moda da ostentação também está na raiz dos tumultos registrados em praias cariocas. Na disputa por status, quem aparece no Facebook com mais correntes de ouro, pilhas de notas de R$ 50 e R$ 100, celulares (iPhones e Moto G) ou bicicletas ganha título de "patrão", novos seguidores e prestígio nos "coretos".
O termo se refere à autodenominação de diferentes "bondes" ou grupos de adolescentes que se reúnem para praticar furtos em áreas ricas. As descrições dos coretos trazem referências a crimes previstos no Código Penal. As mais frequentes aparecem na internet como hashtags: #155 (furto) e #157 (roubo).
De acordo com policiais, os coretos seriam parte do núcleo armado do tráfico e seus integrantes teriam autorização para praticar roubos na Zona Sul. Entre os principais alvos dos coretos estariam bicicletas, que depois seriam vendidas em sites de compras.
Para Misse, da UFRJ, a ousadia das postagens tem a ver com a invisibilidade desses jovens na sociedade. "Quanto maiores as diferenças sociais, maior a demanda por reconhecimento", diz. "A repercussão dos assaltos alimenta a sensação de saída do anonimato, eles experimentam deixar de ser invisíveis e encontram ali algum grau de reconhecimento. Para alguns, isso é sedutor."
Em abril deste ano, uma mulher teve seu cordão arrancado por um adolescente durante entrevista ao vivo sobre insegurança para um jornal da TV Globo. Agora, em fotos de capa no Facebook e como pano de fundo de vídeos de funk no YouTube, as imagens do assalto transmitido em tempo real são celebradas pelos jovens como o primeiro grande feito midiático dos membros dos coretos.
"Indo dar uma roubada"
S.L., que vive no Engenho da Rainha e se apresenta como membro do "coreto do Jacaré", tem no topo de seu perfil no Facebook uma foto caseira de quatro fuzis e uma carabina enfeitados com cordões de ouro. Em 19 de setembro, publicou uma foto em que aparece de costas, com uma arma na cintura e a legenda "Indo 'dá' uma roubada."
Tão frequentes quanto as menções ao crime são frases com declarações apaixonadas à namorada ("foi muito bom passar a segunda-feira ao lado do amor da minha vida") e vídeos familiares, como o da festa de aniversário da sobrinha.
Em uma postagem de julho deste ano, lamentou ter perdido o emprego e anunciou sua volta à facção Comando Vermelho. "Tô 'boladão', acabei de se mandado embora do trabalho. O único jeito é virar ladrão 157 de novo. Vai morrer polícia, milícia, ADA (sigla da facção Amigos dos Amigos) e TCP (Terceiro Comando Puro)", escreveu.
A conversa de S.L. com um companheiro de "coreto" expõe o vocabulário específico empregado pela maioria desses jovens na web. "Pprt sem ffk tlgd" ("Papo reto, sem fofoca, tá ligado?"). "Slc sem nrz tmj " ("Cê é louco, sem neurose, ‘tamo’ junto").
Rock in Rio
A Delegacia de Repressão a Crimes de Informática do Rio abriu inquérito para apurar atos de apologia a crimes pelas redes sociais e indícios de participação efetiva em arrastões. Segundo a delegacia, mesmo menores de idade serão autuados por "fato análogo" a esses tipos de crimes. A quebra de sigilo dos perfis dos jovens suspeitos está sendo avaliada pelo Ministério Público.
Desde a eclosão dos arrastões, o Facebook vem apagando páginas ligadas a coretos (como a "Coreto eo Injeta", que reunia algumas das postagens mais violentas do grupo). A rede afirma que analisa "denúncias de linguagem ameaçadora para identificar potenciais danos à segurança pessoal" e remove "ameaças reais de danos físicos a indivíduos". A maioria dos perfis de apologia ao crime, entretanto, continua no ar.
Embalados por vídeos de funk proibido ("Estalei um maciço lá na praia do Leblon / 15 grama no pingente e mais 30 no cordão" e "Bagulho é doido, com ‘nóis’ não tem ‘caô’, Copacabana, Leblon ou Arpoador), eles agora preveem lucros a partir de um público distinto dos banhistas. "Nóis é o trem, os 'roqueiro' é o trilho e 'nóis' passa por cima", diz um dos adolescentes. "Kkkkk ,tô ficando rico com o Rock in Rio!".