Baleado em frente ao pai, centésimo PM morto no Rio simboliza descontrole no Estado e dor das famílias
O sargento Fábio José Cavalcante e Sá, de 39 anos, chegou por volta das 8h para visitar seus pais em São João de Meriti, na Baixada Fluminense, numa manhã ensolarada de sábado no Rio. Pouco depois, ele foi morto com um tiro de fuzil na cabeça na frente do pai, no que inicialmente foi noticiado como uma tentativa de assalto. A Polícia Civil investiga a hipótese de que o crime tenha sido uma execução.
Foi o centésimo assassinato de um policial militar no estado do Rio neste ano. É uma marca impressionante deum policial morto a cada 57 horas – pouco mais de dois dias. É a maior média desde 2006. No ano passado, por exemplo, o número de policiais mortos no estado passou de 100 só em novembro.
O segundo estado na lista é São Paulo, com 22 casos neste ano – menos de um quarto das vítimas no Rio, embora o estado tenha quase o triplo da população.
"Meu filho era uma pessoa ótima, não merecia isso. Morreu porque era policial. Os bandidos disseram 'mata logo que é polícia'", seu pai desabafou em entrevista ao jornal O Dia, pedindo para não ser identificado.
"Eles me mandaram calar a boca senão iam me matar também. Vi meu filho caído, fiquei doido. Estou com 70 anos, perdi metade de mim", diz o pai, que tem um segundo filho que também é policial militar.
O estado do Rio enfrenta uma grave crise financeira que tem resultado em cortes drásticos de várias áreas do orçamento. Na área de segurança, salários de policiais têm atrasado, como acontece com outros servidores, e falta verba para despesas básicas como coletes à prova de balas, munição e gasolina para viaturas.
A crise financeira vem acompanhada por um aumento generalizado de índices de criminalidade. Em julho, o governo federal anunciou o envio de tropas do Exército para reforçar a segurança no estado.
A escalada de violência contra policiais ficou marcada já no início do ano, com sete mortes ao longo dos sete primeiros dias de janeiro. A primeira delas, o assassinato do soldado André William de Oliveira no dia 1º de janeiro. No ritmo atual, o Rio poderá chegar a 158 mortes até o fim do ano - o maior número desde 1994, quando houve um recorde histórico de PMs mortos, com 227 vítimas. Em 2016, foram 146.
A maior parte das mortes, no entanto, não ocorre durante o serviço. Dos 3.083 policiais vitimados no RJ desde 1995, 2.465 – cerca de 80% – ocorreram durante as folgas dos agentes, de acordo com dados da polícia militar. Dos 100 mortos neste ano, 59 estavam fora do serviço.
Candidato a vereador, conhecido como 'Fabinho'
O sargento Cavalcante trabalhava como policial há mais de 15 anos, lotado no batalhão de Magé, na região metropolitana do Rio, onde morava com a mulher.
Ele fazia regularmente o trajeto de cerca de uma hora até São João de Meriti para ver os pais e o filho de 8 anos, que, de acordo com vizinhos, vive com os avós. Os vínculos com o local fizeram com que tentasse se eleger vereador no município em 2016, obtendo 1.090 votos (0,43%) na cidade pelo PR. Candidatou-se como "Fabinho" - apelido pelo qual era conhecido na vizinhança.
Quando o crime aconteceu, os tiros levaram o comerciante Alexandre Lucena a se trancar dentro de sua loja de bicicleta do outro lado da rua. "Foram muitos tiros. Não deu para contar", relata ele à BBC Brasil.
Pouco antes de morrer, conta Lucena, Fábio havia lhe dado bom dia com um aperto de mão, a caminho de casa para cumprimentar os pais, que têm uma loja de gesso e um bar de esquina no Largo do Guedes, em São João de Meriti.
"Ele era muito gente boa, muito querido no bairro. Um cara que ajudava os outros e não se aborrecia com ninguém. Sempre falava com todo mundo. Estou muito abalado", diz. "Mas o pior é para seu pai, que viu tudo. Tudo." Lucena afirma que o carro com os bandidos "já chegou baleando ele" e diz que não acredita ter se tratado de assalto.
A morte do sargento Cavalcante, o centésimo PM morto em de quase oito meses, "é um golpe a mais" nas fileiras da corporação, afirma o comandante-geral da PM, Wolney Dias.
O coronel demonstrou irritação com o foco na centésima vítima, emitindo uma nota intitulada "Não somos números. Somos cidadãos e heróis" e fazendo um "desabafo recheado de tristeza e revolta."
"Tristeza pela perda irreparável de cada companheiro que se vai, deixando para trás sonhos e o sofrimento da família e amigos. Revolta, pela omissão de grande parte da sociedade que se nega a discutir com profundidade um tema de tamanha relevância. Assim como todo cidadão, o policial é vítima da violência com uma desvantagem adicional: ao ser identificado como agente de segurança pública num assalto ou qualquer situação de confronto, será executado sumariamente", disse o coronel.
Mortes pela farda
De acordo com o coronel Robson Rodrigues, antropólogo e pesquisador do Laboratório de Estudos da Violência da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), estudos de vitimização de policiais indicam que as mortes ocorrem com mais frequência quando os policiais estão de folga, e nas áreas em que há mais homicídios no Rio - sobretudo a Baixada Fluminense e a zona norte da cidade.
De fato, neste ano mais de um quarto das mortes de policiais ocorreram na Baixada Fluminense - 27 do total de cem.
"O policial é tão vítima quanto a população", diz Rodrigues. "Ele sofre dos mesmos problemas da fragilização da segurança pública, que não está conseguindo nem proteger seus próprios agentes."
Quando estão em serviço, as mortes mais frequentes ocorrem entre os policiais atuando nas radiopatrulhas, chamados para verificar ocorrências. Já nos horários de folga, ele é mais vulnerável a assaltos que cidadãos comuns: "Pela própria condição de policial, ele tende a reagir, ou tem maiores chances de morrer quando é reconhecido", afirma Rodrigues.
Como exemplo, ele cita o caso da cabo Elisângela Bessa, morta com um tiro na cabeça ao ser assaltada quando voltava de carro para casa com o marido, em Coelho Neto, zona norte do Rio.
Tiro na cabeça a caminho de casa
Era madrugada e o casal tinha acabado de sair do ponto em Nilópolis, na Baixada, em que Bessa tinha uma barraquinha de batata frita, em frente à padaria da família. Ela foi a 96a PM morta no ano.
Seu irmão, Alexandre Bessa, bacharel em Direito, conta que ela costumava vender batatas entre 19h e 1h para complementar a renda - e vinha juntando dinheiro para comprar uma casa e parar de viver de aluguel.
"Foi um choque. Ela era muito trabalhadora, muito honesta, cuidava muito da mamãe. Era muito correta com o ramo dela no trabalho e com a família", diz ele, explicando que a irmã, que chama de Nana, nunca teve filho porque cuidava da mãe, que tinha problemas renais e cardíacos e morreu no fim do ano.
Ele acredita que ela foi morta por ser policial. "Acredito que ela foi reconhecida. Foi um tiro na cabeça, execução. E o menor que a matou ela fez isso porque sabe que não vai dar em nada. Vai ficar enfrentar uns seis meses de detenção e vai ser solto. Vai continuar matando destruindo que nem o diabo", diz ele, clamando por reformas para aprimorar a educação e um sistema que promova de fato a ressocialização de detentos. "Vai prender um moleque desses e vai mandar para a escolinha do crime? Vai sair pior."
'Quem matou Galvão? O sistema da polícia ou o tráfico?
No dia 21 de fevereiro, o soldado Michel de Lima Galvão foi morto com um tiro nas costas durante uma disputa com o tráfico na favela do Jacarezinho, onde integrava a Unidade de Polícia Pacificadora.
Sua morte fez voltar à tona um áudio que gravou em 2015 fazendo duras críticas às condições precárias de trabalho e à falta de segurança para os policiais. No áudio, que ele compartilhou entre policiais e acabou se espalhando, Michel dizia que o governo, e o projeto das UPPs, estava falido.
"Estão colocando a gente dentro do morro para morrer. A favela não é nossa casa. Ser policial não é ser guerrilheiro, não é confrontar em desvantagem numérica, em desvantagem logística, em desvantagem operacional", apelou, na época, aos companheiros de tropa.
No áudio, ele relatava ter pedido três colegas em menos de uma semana e apelava aos companheiros para que baixassem as armas por não terem condições de enfrentar os criminosos. "A gente tem que ter amor pela nossa vida", disse. "Não vamos querer dar uma de heróis. Não tem condições."
O pai de Michel, Sérgio Galvão, lembra que seu filho foi a julgamento por causa do áudio. Ele diz que Michel só não foi expulso da corporação porque foi comprovado que ele estava sob efeito de remédios psiquiátricos.
Agora é o pai quem está medicado. Diz que só consegue dormir com remédios e está de licença do trabalho por depressão.
Ele diz que a família está estraçalhada. "Éramos muito próximos, amigos, confidentes. Ele não precisava ter entrado para a polícia. Ele tinha muita experiência, foi sócio de uma pizzaria, teve uma lojinha em Nova Iguaçu... Mas era fissurado, queria ser polícia de qualquer maneira. E morreu pela polícia."
Galvão não se conforma com a morte do filho e nem com a versão de que teria sido morto por traficantes. Ele acredita que seu filho tenha sido morto por ter descoberto esquemas de corrupção na polícia, e por não querer se calar.
Em protesto, o pai fez um banner com a questão: "Quem matou Michel Galvão? O sistema ou o tráfico de drogas?" "Para mim, foi o sistema", resume o pai.
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