"Era uma rebelião como qualquer outra", diz juiz que negociou no Carandiru
De acordo com ele, o resultado de 111 mortes foi surpreendente: "não havia precedente como esse. Para mim foi uma lição."
O desembargador e ex-juiz corregedor Ivo de Almeida disse em seu depoimento no segundo dia do julgamento do Carandiru que jamais imaginou que a invasão da Polícia Militar (PM) na Casa de Detenção de São Paulo, em 2 de outubro de 1992 - para conter uma briga entre presos -, terminasse com um saldo de 111 mortes. Na ocasião, ele foi um dos três juízes-corregedores que acompanharam as negociações do lado de fora do Pavilhão 9, antes da invasão policial. O ex-juiz foi a primeira testemunha ouvida nesta terça-feira no Fórum da Barra Funda, zona oeste de São Paulo.
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"Não esperava uma situação dessas. Fui em dezenas, centenas de situações semelhantes. Não imaginava um desdobramento dessa grandeza. (...) Era uma rebelião como qualquer outra", relatou. Almeida foi convocado pela defesa dos 26 réus - todos PMs - que estão sendo julgados por 15 mortes no episódio conhecido como massacre do Carandiru para prestar depoimento à Justiça.
Almeida disse que chegou cerca de uma hora e meia depois do início da briga entre presos e que participou de uma reunião informal com o comandante da tropa, Coronel Ubiratan Guimarães, com o também juiz Fernando Antonio Torres Garcia, com Ismael Pedrosa, diretor da Casa de Detenção, e com o secretário-adjunto de Segurança Pública Antonio Filardi Diniz. "Não dava para conversar com os presos. Eles montaram uma barricada na entrada do Pavilhão 9 e não tínhamos acesso a eles. O Pedrosa já tinha tentado uma negociação. Ele era muito cuidadoso, uma autoridade muito responsável e respeitada pelos presos. Nosso objetivo não era esse e não havia precedentes para o que aconteceu. A tropa mudou a forma de agir depois disso. Para mim foi uma lição", disse ele.
Ao todo, 111 detentos do Carandiru morreram após a polícia invadir o pavilhão 9, depois de uma briga entre dois presos dar início ao tumulto. Devido ao número de réus, o júri foi dividido por etapas, de acordo com o número de mortes ocorridas em cada pavimento: pelo menos outros três julgamentos devem ocorrer no decorrer deste ano.
Nesta etapa, 26 dos 84 policiais militares denunciados por homicídio são julgados, acusados de participar das mortes de 15 presos no segundo pavimento. Como já se passaram mais de 20 anos da ocorrência dos fatos, ao menos cinco réus já morreram, sendo que 79 policiais militares que atuaram naquele dia sentarão no banco dos réus para responder pelos homicídios.
Tensão
O desembargador lembra de ter visto fogo na entrada do pavilhão, provocado em uma barricada para impedir a entrada dos policiais. "Também lembro claramente de eles (os presos) atirarem armas brancas pela janela. Ele contou ao juiz José Augusto Nardy Marzagão que não presenciou presos sendo mortos, mas diz ter ouvido alguns tiros.
"Havia um helicóptero sobrevoando o pavilhão e o barulho era muito grande. Deu para ouvir tiros, mas não percebi rajadas de metralhadoras. Como os tiros foram no interior do presídio, nem tudo podia ser ouvido. Se (a rebelião) desencadeia por todo o presídio, era imprevisível (o que poderia acontecer). A detenção era um mundo", afirmou.
Ele lembrou ainda que após a saída dos primeiros presos, a situação parecia de aparente normalidade. Almeida contou que viu detentos deixarem o local queimados, no início da invasão. "Quando eu fui embora, a situação era, entre aspas, normal".
Outras testemunhas
Também serão ouvidos nesta terça-feira, os juízes corregedores Luiz Augusto San Juan França e Fernando Antonio Torres Garcia. Na sequência estão previstos os depoimentos do ex-governador de São Paulo, Luiz Antonio Fleury Filho e do ex-secretário de Segurança Pública, Pedro Franco de Campos.
Entre as testemunhas convocadas pela defesa dos réus estão também os coronéis da Polícia Militar Reinaldo Pinheiro da Silva e Luiz Gonzaga de Oliveira, além da juíza Sueli Zeraik Armani de Menezes.
O júri é formado por seis homens e uma mulher, que decidirão se absolvem ou condenam os acusados. O julgamento acontece no Fórum Criminal da Barra Funda, na zona oeste de São Paulo, e pode durar até a próxima semana.
Julgamento
Passados 20 anos do episódio que terminou com 111 presos mortos no Pavilhão 9 da Casa de Detenção de São Paulo, em outubro de 1992, 26 policiais militares serão julgados pelo caso que ficou conhecido como Massacre do Carandiru.
Pelo menos 79 PMs acusados de envolvimento nas mortes aguardam julgamento. O único que recebeu a sentença foi o coronel da Polícia Militar Ubiratan Guimarães, que coordenava a operação no dia do massacre, mas teve sua pena de 632 anos de prisão anulada em 2006, sete meses antes de ser assassinado.
Em 2 de outubro de 1992, uma briga entre presos da Casa de Detenção de São Paulo - o Carandiru - deu início a um tumulto no Pavilhão 9, que culminou com a invasão da Polícia Militar e a morte de 111 detentos. Entre as versões para o início da briga está a disputa por um varal ou pelo controle de drogas no presídio por dois grupos rivais. Ex-funcionários da Casa de Detenção afirmam que a situação ficou incontrolável e por isso a presença da PM se tornou imprescindível.
A defesa afirma que os policiais militares foram hostilizados e que os presos estavam armados. Já os detentos garantem que atiraram todas as armas brancas pela janela das celas assim que perceberam a invasão. Do total de mortos, 102 presos foram baleados e outros nove morreram em decorrência de ferimentos provocados por armas brancas. De acordo com o relatório da Polícia Militar, 22 policiais ficaram feridos. Nenhum deles a bala.