Humanos se adaptam a diferentes ambientes, diz psicanalista
- Fabiano Rampazzo
Os conceitos de "bom" e "ruim" são relativos quando falamos do deslocamento de uma pessoa para um habitat oposto àquele que ela sempre esteve acostumada. Da mesma forma que um jornalista de classe média pode estranhar a dura realidade de uma favela, um morador da favela pode estranhar a dura realidade de um ambiente mais acessível, com mais luxo e mordomias.
"A principio diz-se que é melhor caviar do que pão com manteiga, mas tem gente vai achar horrorosa a idéia de comer ovas de peixe", comenta o psicanalista Jorge Forbes, presidente do Instituto da Psicanálise Lacaniana e Diretor da Clínica de psicanálise do Centro do Genoma Humano da Universidade de São Paulo (Usp).
Seria normal uma pessoa de fora se incomodar com o cheiro, a cor, o tato do cotidiano de vida em uma favela? E é normal, um dia depois, esta mesma pessoa estar amplamente ambientada àquilo tudo? Essas e outras questões foram tratadas e respondidas pelo Dr. Forbes, na entrevista abaixo, concedida ao Terra.
Terra - O ser humano tem facilidade ou dificuldade para adaptar-se a novas situações?
Jorge Forbes - O ser humano é essencialmente desadaptado ao mundo. Não existe um único habitat que lhe seja absolutamente natural. Se existisse, só poderíamos viver em uma determinada composição. Há outros seres vivos que, estes sim, só conseguem viver sob determinada temperatura e pressão atmosférica - se são removidos desta situação eles morrem. Já os seres humanos têm uma capacidade tremenda de se adaptar a diferentes lugares e situações sem que isso provoque um conflito com a sua civilização. Isso é extremamente paradoxal pois, como não tenho local específico para mim, todos os lugares podem potencialmente ser meus. É exatamente por ser, na essência, desadaptado ao mundo que o ser humano torna-se capaz de se adaptar a diferentes habitats e situações. Num primeiro momento, claro, ele se sente mal, há uma comparação imediata: "antes era bom, agora está ruim". Quando é mencionado o incômodo por um cheiro diferente naquela casa, a presença de ratos, o lençol, isso é fruto de um estranhamento decorrente da comparação com o que você tinha antes. Mas se você não recusa esse primeiro momento, você invariavelmente vai se adaptar. Todo esse estranhamento pode ser superado se não há medo. O medo é o inibidor da curiosidade, é uma recusa frente ao novo. Se vencermos o medo, abrimos um novo horizonte.
Algumas pessoas têm maior facilidade para se adaptar a uma abrupta mudança de ambiente?
Sim. Algumas pessoas se realizam mais frente ao novo, às descobertas. Outras se apegam mais ao que sempre estiveram acostumadas. Jornalistas, atores, psicanalistas e cientistas desempenham profissões em que a curiosidade tem mais importância do que a conformidade. Já aquelas pessoas que desempenham profissões mais burocráticas, que se baseiam em cumprir protocolos e procedimentos, vão encontrar maior dificuldade para se ambientar a um espaço diferente daquele a que estavam acostumadas. A maioria das pessoas e profissões prefere o prazer da segurança, demora mais tempo para se adaptar e, naturalmente, sofre mais quando ocorre uma mudança. Agora, uma adaptação em apenas um dia é possível, mas raro de ocorrer. Qualquer adaptação que ocorra em um dia pode ser considerada bem rápida.
Qual é o peso da necessidade nessa capacidade de adaptação?
A necessidade tem um peso muito grande nisso tudo, ela é a mãe da invenção. Ela existe quando você não tem mais para quem se queixar. Ou você faz ou você faz. Ninguém vai mudar as coisas ali, você tem que reinventar seu mundo e a necessidade tem ali um fator fundamental. Ninguém passa uma semana dentro de uma favela por mero esporte, ninguém come larvas no meio da selva porque acha gostoso. É a necessidade do cumprimento do dever, de uma missão, a necessidade da sobrevivência que ajuda ou possibilita isso tudo.
Um morador da favela teria as mesmas dificuldades e/ou facilidades de se adaptar a um ambiente e vida mais luxuosos?
Provavelmente. Ele também estranharia, se incomodaria pela modificação daquilo a que ele está acostumado. A princípio, diz-se que é melhor caviar do que pão com manteiga, mas tem gente vai achar horrorosa a idéia de comer ovas de peixe. Não existe uma coisa fixa. Se fosse assim, rico seria feliz e pobre, infeliz. Mas pesquisas mostram que o nível de infelicidade entre os ricos é muito grande. Não quero que isso pareça como um aplacador das injustiças sociais, uma idéia de que o pobre pode viver na miséria porque ele é feliz. Claro que temos que distribuir melhor a riqueza e uma coisa não justifica nem ameniza a outra, mas distribuir melhor a riqueza não significa distribuir melhor a felicidade.
Semana na favela
Formado por 16 comunidades e com 132 mil pessoas, o Complexo da Maré, maior favela do Rio de Janeiro, foi apontado pelo Instituto Econômico de Pesquisa Aplicada (Ipea) como um dos pontos de maior letalidade policial. Em outras palavras, a região encabeça a lista dos bairros em que a polícia mais mata na cidade. O Terra entrou na favela e, por uma semana, cruzou com traficantes armados com fuzis, conversou com moradores da favela e ouviu relatos dos sobreviventes da violência. De volta a São Paulo, o repórter Fabiano Rampazzo entrevistou pesquisadores, psicólogos, sociólogos e policiais, e entrou em contato com associações, institutos, orgãos do Governo e Secretarias do Rio de Janeiro. Foram mais de 90 entrevistas para este especial de reportagens dividido em sete partes, como os sete dias da semana, sobre esta região que coleciona medo, contrastes, histórias, mortes, sonhos, vida.