Justiça reapresenta vídeos com 3 depoimentos do massacre do Carandiru
Dois ex-detentos e o diretor de segurança do Carandiru, ouvidos no julgamento dos primeiros 26 PMs, em abril, tiveram os depoimentos reprisados
Com o desmembramento do julgamento do "massacre do Carandiru" em pelo menos cinco etapas, a Justiça de São Paulo decidiu utilizar vídeos com a gravação do depoimento de testemunhas, colhidos em abril, nesta segunda fase do julgamento, em que 26 policiais militares, acusados por 73 das 111 mortes ocorridas naquela data, são julgados. Com isso, os sete jurados que compõem o conselho de sentença vão acompanhar os depoimentos dos ex-detentos Antonio Carlos Dias e Marco Antonio de Moura e do ex-diretor de segurança, Moacir dos Santos, em sessões consecutivas de vídeo.
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Esta é a segunda etapa do julgamento, que começou em abril com a condenação de 23 policiais militares - todos integrantes do 1º Batalhão de Choque (a Rota - Rondas Ostensivas Tobias Aguiar). Eles receberam uma pena de 156 anos de prisão, em regime fechado, por conta de 13 das 15 mortes ocorridas no primeiro andar do prédio. Todos recorrem da sentença em liberdade.
Nessa primeira etapa, os policiais receberam a pena mínima para cada homicídio, que é de seis anos, somada a mais seis anos por impossibilitarem a defesa das vítimas. Os 12 anos foram multiplicados pelas 13 mortes para se chegar ao resultado final da sentença. Na ocasião, o júri ainda absolveu três PMs denunciados: Roberto Alberto da Silva, Eduardo Espósito e Maurício Marchese Rodrigues, seguindo recomendação do próprio Ministério Público. A justificativa é que eles não atuaram no 1º andar do pavilhão com a tropa.
Dias afirmou que os presos mortos na Casa de Detenção de São Paulo, em 2 de outubro de 1992, não estavam armados e foram assassinados de forma aleatória pela Polícia Militar. Segundo ele, a briga entre dois detentos que originou o tumulto teria sido controlada pela administração da prisão, mas a polícia "surpreendeu todo mundo" ao decidir invadir o local, atirando contra os presos. "Só não voltou ao normal porque a polícia entrou na cadeia", disse.
"Eu vi uma montanha de corpos, todos caídos, alguns agonizando. (...) Fizeram um corredor (entre duas filas de PMs) e nos mandaram descer. Fomos brutalmente espancados. Qualquer descuido, eles matavam. Muitos morreram assim: só de olhar (para os policiais)", afirmou o sobrevivente, que relatou ainda ter visto policiais com facas e pedaços de pau. Muitos teriam sido esfaqueados ao passar por esse corredor.
Dias cumpria pena por roubo na ocasião - a vítima foi ferida a tiro - e teve o nariz quebrado durante o tumulto, segundo ele, após levar uma paulada de um policial, quando ia até o pátio do presídio, ordenado pela PM.
O ex-detento relatou ainda que deveria ter cumprido cerca de um ano e oito meses de prisão, mas foi "esquecido" pela Justiça no Carandiru e acabou ficando cinco anos na Casa de Detenção. Para o sobrevivente, o número de vítimas foi bem maior que o divulgado pelo governo do Estado, na época, comandado por Luiz Antônio Fleury Filho.
"Tem um detalhe que poucas pessoas viram. Eu vi, porque depois fui para o 5º andar, vários corpos em cima de uma caçamba. (...) Só os corpos que eu vi entre o segundo andar e o pátio já dava 100 pessoas. Muita gente não tinha visita, não tinha família. Tinha muitos nessa condição. Eu acredito que, no mínimo, morreu o dobro do que eles falaram. Eu estive lá, eu presenciei", afirmou. "Eu acredito que quem não tinha visita, era 'indigente', foi descartado como lixo", disse.
'Deus cria, a Rota mata'
Outro ex-sobrevivente, Marco Antonio de Moura, afirmou à Justiça que tem fresco na memória o que ocorreu no dia 2 de outubro de 1992. "Passaram 21 anos. Para mim foi como se fosse ontem", disse ele, que levou um tiro no pé na ocasião. De acordo com o sobrevivente, os policiais já entraram no presídio atirando contra os presos. "Quando deixamos o pavilhão, para ir para o pátio, eles gritavam: 'Deus cria, a Rota mata. Viva o Choque'".
Moura estava no segundo pavimento do pavilhão 9, onde o processo relata que 15 detentos morreram. O ex-detento afirma que não se tratava de uma rebelião e que a intervenção da polícia era desnecessária. "Não era rebelião. Era um acerto de contas entre bandidos", afirmou.
Moura, que foi preso por roubo (simulando estar armado) e respondeu por uma tentativa de homicídio (que foi arquivada por falta de provas), contou como levou o tiro no pé. "Havia umas 30 pessoas dentro da minha cela. Na correria, começou a entrar um monte de gente. Em um determinado momento, o policial pôs a cara no guichê (espécie de janelinha na porta da cela) e foi muito disparo", disse ele. Entre as rajadas de metralhadoras em seu andar, ele disse que o que mais ouvia eram gritos de "pelo amor de Deus".
Perguntado pelo juiz se reconheceria algum policial que participou da operação, ele foi direto. "Não tenho vontade de olhar para a cara de nenhum deles. Só lembro que tinha um de olho azul". O detento disse ainda se recordar que tiros foram disparados por policiais que estavam sobre um helicóptero, que sobrevoava o pavilhão. "Eu dei sorte. Eu ia subir no telhado. Mas se tivesse subido, teria morrido".
'Não respeitaram nem o Ubiratan'
Moacir dos Santos era diretor da divisão de disciplina do Carandiru no dia do "massacre". Em seu depoimento à Justiça ele afirma que a tropa não cumpriu o que havia sido combinado com os funcionários e autoridades e que ela não respeitou nem mesmo o coronel Ubiratan Guimarães, comandante da operação.
"O Choque trouxe a Rota e colocou para dentro, junto com o Gate (Grupo de Ações Táticas Especiais), os Bombeiros. Avisamos que quem estava no pátio não estava na briga. Quando abriu o portão, o que foi combinado foi por terra. Entraram e metralharam. Não deixaram nem a gente socorrer (as vítimas). Não respeitaram nem o Ubiratan. Puxei o (Ismael) Pedrosa - diretor da Detenção - para ele não ir para dentro junto", disse ele. "Quando viu que não tinha jeito, ele entrou também", afirmou o diretor sobre a postura de Ubiratan na ação. Santos era considerado o número 2 na hierarquia do presídio, apenas abaixo de Pedrosa, que foi assassinado a tiros em 2005, em Taubaté, no interior de São Paulo.
Santos lembrou que, no momento da briga que resultou em uma agitação entre os presos, estava almoçando. Foi chamado até o local para fazer o encaminhamento dos feridos. "Eles (os presos) nos avisaram que era uma briga entre eles e que não queriam funcionários lá. Disseram que acertariam entre eles. Estávamos em uns 10 funcionários dialogando com os presos para acalmar a situação e não havia reféns. Conosco não fizeram nenhuma maldade", lembrou.
Santos conta que os presos montaram barricadas no térreo, para impedir a invasão da polícia. Foi colocado fogo na entrada da galeria. "Logo na entrada, um tubo de TV acertou o Ubiratan. Ele não ficou lá nem dois minutos. Um preso foi queimado, ficou sem pele, próximo a ele. Só foi retirado às 23h. O Ubiratan foi retirado prontamente".
O diretor de segurança do Carandiru disse ainda que era favorável à invasão da PM, e que os policiais da tropa de Choque estavam habituados a entrar no Carandiru quando ocorriam tumultos sem reféns, mas atribui ao acionamento da Rota a atitude de iniciar o massacre - termo que ele considera adequado para descrever o episódio.
"A invasão era inevitável. Todo mundo (autoridades e diretores) entendia que era preciso invadir. (...) Mas qualquer um sabia que se colocasse a Rota lá não daria certo", afirmou. Segundo Santos, os policiais que ficaram do lado de fora do pavilhão 9 impediram a entrada de civis para tentar amenizar a situação e "comemoravam como se fosse um gol" os disparos ouvidos.
Relembre o caso
Em 2 de outubro de 1992, uma briga entre presos da Casa de Detenção de São Paulo - o Carandiru - deu início a um tumulto no Pavilhão 9, que culminou com a invasão da Polícia Militar e a morte de 111 detentos. Os policiais são acusados de disparar contra presos que estariam desarmados. A perícia constatou que vários deles receberam tiros pelas costas e na cabeça.
Entre as versões para o início da briga está a disputa por um varal ou pelo controle de drogas no presídio por dois grupos rivais. Ex-funcionários da Casa de Detenção afirmam que a situação ficou incontrolável e por isso a presença da PM se tornou imprescindível.
A defesa afirma que os policiais militares foram hostilizados e que os presos estavam armados. Já os detentos garantem que atiraram todas as armas brancas pela janela das celas assim que perceberam a invasão. Do total de mortos, 102 presos foram baleados e outros nove morreram em decorrência de ferimentos provocados por armas brancas. De acordo com o relatório da Polícia Militar, 22 policiais ficaram feridos.