'Perdão pelo vacilo': policiais obrigam jovens a pedir desculpas em vídeo após ofensas à corporação nas redes sociais
#SalaSocial Imagens são amplamente divulgadas em páginas policiais e chegam a acumular milhões de visualizações; BBC Brasil levantou casos em ao menos oito Estados brasileiros.
"Meu nome é Roberta (nome fictício) e eu estou aqui para pedir perdão à briosa Polícia Militar de Macapá. Eu escrevi no meu Face que matava polícia, mas eu não mato nem minha fome."
Em um vídeo publicado no YouTube, a adolescente, que teve a identidade preservada, pede clemência por ter se identificado como "matadora de polícia" e publicado uma foto segurando uma pistola no Facebook.
O "perdão pelo vacilo", apelido pelo qual são chamados esses vídeos nas redes sociais, virou piada na internet e foi visualizado milhões de vezes após ser divulgado em páginas policiais. A garota foi perseguida e excluiu todos os seus perfis pessoais.
A BBC Brasil identificou dezenas de casos como esses em ao menos oito Estados brasileiros. Após identificar pessoas que publicam ofensas contra policiais nas redes sociais, grupos as denunciam até que sejam encontradas e façam um pedido público de desculpas.
Os responsáveis pela publicação dos "perdões" se identificam, em sua maioria, como policiais. Alguns deles até aparecem nos vídeos. Eles usam o argumento de que a prática serve de exemplo para que outras pessoas não cometam o mesmo erro.
O advogado Ariel de Castro Alves, do Conselho Estadual de Direitos Humanos de São Paulo, diz que os autores dos vídeos com ameaças aos policiais podem responder a crimes, como injúria, calúnia ou difamação. "Em alguns casos, também há condutas de incitação ou apologia ao crime", afirma.
Por outro lado, o advogado avalia que os policiais atuam como justiceiros ao cobrar um perdão público dos infratores.
"Essas atuações configuram crimes de constrangimento ilegal, ameaça, abuso de autoridade e, dependendo da gravidade, até a tortura (crime hediondo). Sendo a vítima um adolescente, além desses crimes da legislação penal, podem, os policiais envolvidos, responder pelo crime previsto no Estatuto da Criança e do Adolescente de submeter criança ou adolescente a vexame ou constrangimento."
14 anos
Com as mãos trêmulas, uma mulher segura diversas folhas de sulfite enquanto pede desculpas à polícia paulista. Ela não gravou nenhum vídeo contra a corporação. Também não cometeu nenhum crime. O "perdão pelo vacilo" é em nome de seu filho de 14 anos, que gravou um vídeo cantando um funk com ofensas aos policiais.
"Peço que vocês revejam essa situação porque eu trabalho, cuido do meu filho e, infelizmente, algumas coisas a gente é sempre a última a saber. Nós já fomos para a delegacia e aqui está o B.O., Compromisso de responsabilidade que ele (filho) vai responder pelo erro dele. Isso serviu como uma lição para nunca mais fazer isso", diz a mãe, com a voz embargada.
Na música que rendeu mais de 4,5 milhões de visualizações no YouTube, o garoto faz graves insultos principalmente os policiais de Santa Bárbara D'Oeste, no interior do Estado.
"Esses caras já tão tirando, tão querendo pagar de macho. Andam num carro adesivado escrito polícia, pilantra fardado", diz um trecho da letra. "Se tentar, então nóis (sic) derruba o Águia, explode o batalhão", ameaça em outro verso de seu funk.
Depois de ser identificado e prestar depoimento à polícia, o adolescente aparece cabisbaixo ao lado de sua mãe, segurando uma plaquinha de arrependimento. E pede desculpas.
"Eu queria falar que eu não estou sendo obrigado a pedir perdão a todos os policiais do Estado. Foi uma letra, (que fiz) num momento de bobeira meu. Eu não sei o que eu tinha na cabeça. Queria pedir desculpas a todos os fardados que estão nas ruas ganhando um salário para proteger a gente", disse o rapaz.
Procurada pela reportagem, a Secretaria da Segurança Pública de São Paulo informou que uma investigação apontou que a filmagem do adolescente e sua mãe "foi feita de forma espontânea, inclusive com documento assinado pela mãe do jovem confirmando o fato".
A pasta afirmou ainda que "não tolera desvios de conduta de seus integrantes" e "conta com uma rigorosa Corregedoria, à disposição da população para formalização de eventuais queixas a respeito da atuação de qualquer policial para a devida apuração".
Mudança de postura
Em Pernambuco, um homem subiu no capô de um carro da polícia e tirou uma foto sem camisa, com as mãos para o alto, em tom de deboche. O rapaz foi identificado. Ele gravou um "perdão pelo vacilo".
"Quero pedir desculpas à turma do 11º Batalhão da Polícia Militar de Pernambuco pela foto que eu tirei em cima da viatura. Estou profundamente arrependido", diz o homem, de joelhos.
Em outro vídeo, o pedido de desculpas foi além de uma declaração. Dois jovens que fizeram uma filmagem ameaçando jogar uma bomba na base da Polícia Militar foram obrigados a se beijar.
"Agora dá um beijo. Mas não é para dar beijinho bitoca não", orienta o homem que faz a filmagem enquanto os amigos obedecem a ordem.
A reportagem da BBC Brasil não conseguiu conversar com nenhuma das pessoas que aparecem nos vídeos encontrados na internet. A maior parte das publicações nas redes são feitas por perfis falsos e as pessoas que pedem perdão geralmente excluem seus suas páginas após serem expostas.
A maioria das pessoas identificadas pela reportagem nos vídeos de perdão é adolescente.
Um deles aparece arrumando seu chinelo ao lado de um carro da Polícia Militar de Minas Gerais. O garoto recebe orientações sobre o que falar enquanto grava a mensagem.
"Eu sou um vacilão, um trouxa, que não poderia ter feito isso. Que ninguém faça isso, pois isso é ato de cuzão, de trouxa que fica afrontando polícia, que não vai te levar a nada isso", diz.
Na sequência, o policial ainda chama a atenção do garoto para que ele enfatize que as desculpas são principalmente aos policiais de Ribeirão das Neves. Ele, que aparenta estar sendo coagido a pedir desculpas, obedece e orienta para que não cometam o mesmo erro que ele.
A Polícia Militar de Minas Gerais informou que o vídeo foi encaminhado à Corregedoria. O órgão disse ainda que "tem instruído aos policiais militares acerca da conduta correta a ser adotada de acordo com os cadernos doutrinários emanados pela corporação, bem como aqueles em que há ordenamento jurídico-administrativo que trata sobre o assunto".
Um carro preto da Polícia Militar de Goiás entra no lava-rápido. Ao se aproximar do cinegrafista amador, os vidros pretos descem: "Eae, galera do zapzap! Primeira vez no banco da frente", diz um jovem, que segura um cigarro na mão enquanto faz piada com a situação.
No banco do carona, seu amigo apenas ri e faz sinal de positivo. As imagens circularam em grupos de WhatsApp da região e os rapazes logo foram identificados pela polícia.
"Senhores policiais da Rotam, do CPE (Companhia de Policiamento Especializado), os homens de preto, me desculpem. (...) E a todos os policiais do Estado de Goiás pela tremenda besteira que eu fiz. Estou muito arrependido", disse o rapaz que dirigia o carro.
O jovem que estava no banco do carona também pediu desculpas, se disse arrependido e que isso nunca mais vai acontecer. Sobrou até para o garoto que não aparece, mas filmou toda a ação.
"Eu fui errado em pegar o celular e filmar. Sei que nós não podíamos fazer isso. Mas nós fizemos uma coisa errada, muito errada."