PMs acusados de forjar provas para inocentar assassino voltam ao trabalho
Decisão do comando geral arquiva denúncias, restitui portes de arma e reintegra na corporação os PMs que teriam tentado livrar irmão de policial aposentado da condenação por matar jovem e aleijar namorada
Cinco policiais militares acusados por formação de quadrilha, roubo e falsa imputação de crime durante desdobramentos do caso que ficou conhecido como Crime do Morro do Boi - um dos mais polêmicos registrados na história policial do Paraná nos últimos anos - foram inocentados em processo disciplinar interno da Polícia Militar e mantidos no quadro da corporação. Quatro dos acusados tiveram seus portes de arma restituídos e foram colocados à disposição para retornarem ao serviço operacional. Apenas um deles não poderá gozar do benefício integral da decisão por estar fora da ativa.
Com exclusividade, o Terra obteve cópias da decisão do comando da PM do Paraná, definida em 11 de outubro e publicada na edição 206 do Boletim Geral da corporação. O comando geral da PM decidiu concordar com parecer da comissão processante que invocou o princípio jurídico in dubio pro reo - expressão em latim que significa que, na dúvida, a decisão deve ser favorável ao réu -, alegando que "a questão probatória se mostrou controvertida".
Os policiais absolvidos pelo conselho disciplinar da PM figuram como denunciados em processo que tramita sob sigilo na Justiça paranaense - ao lado de um delegado, de um policial civil aposentado e de um guarda municipal - como autores de uma farsa montada com o objetivo de livrar o principal acusado do crime, Juarez Ferreira Pinto, das acusações. Pinto, condenado em 2010 a 65 anos e cinco meses de prisão, é irmão do policial civil Altair Ferreira Pinto, um dos denunciados.
O Crime do Morro do Boi
Registrado no verão de 2009 na cidade litorânea de Matinhos, a 111 quilômetros de Curitiba, o Crime do Morro do Boi - como ficou conhecido em ampla repercussão nacional - resultou na morte de um estudante de direito de 22 anos e deixou paraplégica a namorada dele. Em férias, os namorados Osíris Del Corso e Monik Pegorari de Lima percorriam o Morro do Boi - uma elevação de 160 metros de altura, cortada por trilhas ecológicas e rodeada pelas praias Bela, Mansa, Brava e dos Amores - e, ao solicitar informações a um desconhecido sobre o caminho, foram rendidos e levados para uma gruta, sob a ameaça de uma arma.
O rapaz foi baleado ao tentar defender a namorada de um ataque sexual e morreu no local. Outro disparo atingiu a coluna de Monik. Até ser encontrada, a moça permaneceu ferida, sem conseguir se movimentar, durante aproximadamente 18 horas no interior da gruta, ao lado do corpo do namorado.
Juarez Ferreira Pinto foi preso quase 20 dias após o crime. Ele foi detido numa cidade vizinha, com base em retrato-falado feito com informações da vítima. Monik fez o reconhecimento e confirmou que ele era seria o autor do ataque.
Reviravolta
Em junho de 2009, Paulo Delci Unfried, acusado de invadir uma casa e violentar uma mulher, foi preso e confessou ser o autor dos disparos que mataram Osíris e atingiram Monik. Com ele, os policias encontraram a arma utilizada no crime. Exames de balística confirmaram que o disparo que causou a morte de Osíris foi realizado com a arma apreendida. Dias depois, no entanto, Unfried desmentiu a autoria e revelou que foi forçado a confessar. Em depoimento, ele confirmou que o revólver apreendido era seu, mas disse que havia emprestado para um amigo na semana em que ocorreu o crime. Por falta de provas, ele foi solto por decisão da Justiça.
Um ano após o crime, em fevereiro de 2010, Juarez Pinto foi condenado a pena de 65 anos e cinco meses. Ele foi sentenciado a 34 anos de prisão por latrocínio contra Osíris, 22 anos e oito meses por roubo qualificado e lesão corporal grave contra Monik e mais oito anos e nove meses por atentando violento ao pudor, praticado contra Monik.
Em junho de 2011, o Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado (Gaeco) prendeu cinco policiais militares, um delegado, um policial civil e um guarda municipal. Foram presos o delegado José Tadeu Bello - à época titular da delegacia de Matinhos -, os policiais militares Edison Pereira, Edmildo da Silva Mesquita, Paulo Roberto da Graça, Rodrigo Alves Barbosa e Renato Pereira da Silva, o policial civil aposentado Altair Ferreira Pinto, conhecido como "Taíco", e o guarda municipal da prefeitura de Matinhos, Marcelo de Mello.
Segundo o Ministério Público, as investigações do Gaeco demonstraram que os detidos montaram uma farsa na tentativa de inocentar Juarez Ferreira Pinto. De acordo com o MP, como a vítima do Crime do Morro do Boi reconheceu Juarez, em juízo, como o verdadeiro autor do delito, o irmão dele, o policial aposentado Taíco, com o auxílio de policiais militares do 9º Batalhão da PM em Paranaguá e do delegado de Polícia de Matinhos, teria elaborado e executado um plano para que Paulo Delci Unfried fosse preso de posse da arma usada no crime.
As investigações do Gaeco concluíram que o plano consistia em apresentar Unfried não só como o responsável pelo crime, como também autor de outros roubos ocorridos na região do litoral naquele período, os quais sabiam que a vítima não havia praticado. O grupo também teria atuado para manipular notícias em alguns veículos de comunicação do litoral paranaense e de Curitiba, na tentativa de confundir a opinião pública. Liberados após o período de prisão preventiva, todos os envolvidos foram denunciados à Justiça. O processo tramita em segredo de Justiça na Comarca de Matinhos e não há previsão para data de julgamento.
Trunfo
De imediato, a decisão do comando geral da PM não altera a ação que tramita sob sigilo na Justiça paranaense. A absolvição no conselho disciplinar da corporação, no entanto, é qualificada por advogados que atuam na defesa de policiais como "trunfo" para reverter, mais uma vez, a versão do crime. Membros do Gaeco que atuaram nas investigações estão convictos de que as provas e depoimentos apresentados à Justiça contêm elementos necessários para condenação do grupo.
O coordenador estadual do Gaeco, Leonir Batisti, preferiu não comentar a decisão administrativa da PM. "As investigações foram conduzidas com decência e dentro da legalidade, e os elementos probatórios foram apresentados à Justiça que acolheu a denúncia criminal", resumiu Batisti.
O criminalista Giordano Vilarinho Reinert, que defende um dos policiais denunciados, analisa que o julgamento do Crime do Morro do Boi "foi o maior erro judicial da história do Paraná". Para ele, a absolvição dos policiais no conselho disciplinar da PM foi embasada em depoimentos de testemunhas e na "absoluta falta de provas contra os policiais". Reinert diz que a decisão do comando geral será anexada ao processo. Ele acredita que a decisão deverá ser revertida em uma revisão criminal, após o trânsito em julgado do processo.
"Eu não sou advogado do Juarez, mas ele está preso inocentemente, condenado a 65 anos por um crime que não cometeu. O que ocorreu é que a polícia e o MP não quiseram voltar atrás, após a prisão do Juarez, para evitar constrangimentos. O julgamento foi muito rápido. O condenado era doente e não tinha condições de subir o Morro do Boi. Além disso, a arma encontrada com o Unfried era efetivamente de onde partiu os disparos. A condenação teve como base apenas o reconhecimento de uma pessoa que estava abalada emocionalmente. Foram omitidos depoimento da Monik onde ela afirmava que o autor teria sotaque do interior, característica do Unfried, que morava no interior do Paraná antes de se mudar para Matinhos. Ao lado da decisão da PM, esse dado deve ser extremamente importante na defesa dos policiais", conta o criminalista.
Contraponto
Procurada pelo Terra, a PM informou através de assessoria de imprensa que a corregedoria da corporação deveria se manifestar sobre o caso e prometeu divulgar uma nota na quinta-feira. Até o momento da publicação, porém, não houve retorno, apesar de vários contatos através de e-mail e telefonemas.
A nota foi divulgada apenas nesta sexta-feira, pela tarde. A corporação alegou que "o que foi comprovado pela Comissão Processante nomeada pelo Comandante-Geral da PMPR, foram algumas controvérsias nos depoimentos de algumas testemunhas ouvidas, pois verificou-se que os militares estaduais foram até o local dos fatos para averiguar uma situação repassada por um superior hierárquico" e que "não ficou comprovado terem os Acusados efetivamente apresentado Paulo Delci Unfried como suposto autor do Crime do Morro do Boi, segundo depoimentos prestados por ele e outras testemunhas (policiai civis e profissionais da imprensa local)".
Com relação à denúncia de tortura, "tal fato também não foi confirmado, pois além de inexistir Laudo de Exame de Lesões Corporais de Paulo Delci, foi colhido o depoimento do policial civil responsável pelo recebimento do detido no dia dos fatos, sendo declarado que não havia lesão em Paulo Delci e ainda não estava amedrontado".