Rebelião em Manaus: a disputa interna de facção criminosa que levou ao massacre em presídios
Divisão dentro da Família do Norte, principal quadrilha da Região Norte, ameaça levar violência para as ruas em disputa por território.
Presídios superlotados, proliferação de grupos criminosos e disputas constantes entre eles.
Esse é o cenário enfrentado por Estados das regiões Norte e Nordeste - uma dinâmica que, entre outros processos violentos, tem causado massacres em presídios como o ocorrido entre domingo e segunda-feira em Manaus.
Pelo menos 40 detentos foram encontrados mortos em quatro unidades do sistema prisional na cidade na segunda, número que se soma a outros 15 mortos em um presídio da capital amazonense no domingo.
Segundo a gestão do governador Wilson Lima (PSC), as mortes foram motivadas por uma disputa interna entre duas lideranças da facção criminosa Família do Norte (FDN), ruptura que pode causar novos homicídios em presídios e nas ruas.
De acordo com o governo, presos ligados a Zé Roberto da Compensa, um dos chefes do grupo, teriam atacado detentos próximos a João Pinto Carioca, o João Branco. Os dois eram considerados os principais comandantes da quadrilha.
A FDN é tida como a terceira maior facção criminosa do país, atrás do paulista Primeiro Comando da Capital (PCC) e do carioca Comando Vermelho (CV).
Ela foi criada em 2006 para conter a tentativa do PCC de controlar o comércio de drogas na Região Norte.
Para o tráfico, a área é estratégica por dois motivos: serve como escoamento de drogas para a Europa e é uma rota de transporte de drogas produzidas em países vizinhos, como Colômbia e Peru.
O crescimento desse mercado em Manaus fortaleceu a FDN e a fez buscar novas formas de organização e poder.
Raízes da disputa
Os integrantes perceberam isso em 2006, quando presos perigosos foram transferidos de Manaus para presídios federais, onde conheceram as lideranças de outras facções. Quando voltaram para a capital amazonense, criaram a FDN para se contrapor à presença do PCC na região.
Segundo Ítalo Lima, pesquisador do Laboratório de Estudos da Violência UFC e estudioso da história da FDN, a sigla inicialmente foi formada por grandes traficantes que já atuavam na região e outros criminosos tidos como perigosos.
Hoje, ela tem forte influência na tríplice fronteira entre Brasil, Peru e Colômbia, onde agencia produtores e as chamadas "mulas" para transportar a droga para o Brasil.
Em novembro de 2015, o grupo foi o alvo da Operação La Muralha, da Polícia Federal. Descobriu-se que a quadrilha movimentava milhões de reais transportando drogas pelo rio Solimões e seus afluentes.
Parte desses carregamentos abastece outros Estados do Norte e do Nordeste - depois, a droga é vendida nas rua por outras quadrilhas.
"As mulas são o elo mais fraco dessa cadeia", diz Luiz Fábio Paiva, professor de sociologia e pesquisador do Laboratório de Estudos da Violência da Universidade Federal do Ceará (UFC). "Normalmente são eles as pessoas presas, apresentadas como grandes traficantes, mas altamente descartáveis para a facção."
Por outro lado, depois da descoberta da rota pelo Solimões, a facção diversificou suas formas de transportar a mercadoria, segundo Paiva. "A gente verifica que essas rotas são alteradas e adaptadas à medida que são descobertas pela polícia", diz.
Além do Amazonas e outros Estados do Norte, a FDN também atua no Ceará, embora sua influência tenha diminuído nos últimos meses, segundo especialistas em segurança pública.
Consórcio do crime
Em janeiro de 2017, a Família do Norte protagonizou o primeiro de uma série de massacres em presídios da região. Ao menos 56 presos ligados ao PCC foram mortos no Complexo Penitenciário Anísio Jobim (Compaj), em Manaus. Os mortos eram ligados ao PCC e foram assassinados por membros da FDN.
Dias depois, em Nísia Floresta, região metropolitana de Natal, veio a vingança: ao menos 26 detentos da facção potiguar Sindicato do Crime foram assassinados por integrantes do PCC.
O Sindicato do Crime era aliado da Família da Norte em uma espécie de consórcio de facções contrárias à atuação do PCC. No grupo, além da FDN e dos potiguares, estavam a paraibana Okaida e o Comando Vermelho, do Rio de Janeiro.
Desde o início da década passada, o PCC decidiu expandir sua área de atuação e passou a fornecer drogas no atacado para grupos menores venderem nas capitais. A sigla já foi aliada do Comando Vermelho, mas, em algum momento entre 2015 e 2016, essa parceria se tornou rivalidade. Os massacres nos presídios ocorreram depois dessa cisão.
Posteriormente, o consórcio do Comando Vermelho com grupos do Norte e do Nordeste funcionou como alternativa à atuação dos paulistas no atacado da droga.
Além da disputa pelo controle do tráfico, as facções locais também cresceram em oposição às regras de condutas ditadas pelo PCC para os próprios integrantes.
Na Paraíba, por exemplo, um dos motores do crescimento da Okaida foi sua política de filiar menores de idade - o PCC evita "batizá-los", segundo agentes de segurança. No Rio Grande do Norte, o Sindicato do Crime surgiu depois que criminosos questionaram a obrigação do PCC local de submeter decisões a chefes em São Paulo.
Alianças frágeis
Já no Amazonas, aparentemente, a aliança entre FDN e Comando Vermelho também se rompeu nos últimos meses, segundo declarações recentes do próprio governo.
"Hoje, em Manaus, há uma disputa violenta entre Comando Vermelho e Família do Norte pelo controle de alguns bairros", explica o sociólogo Ítalo Lima.
"Essas alianças são tramas que existem há décadas, mas são muito frágeis. Em questão de meses, há uma reviravolta e toda a configuração das facções se altera", diz Lima.
O massacre dessa semana em unidades prisionais ocorre supostamente por uma nova ruptura, dessa vez dentro da própria FDN.
"Essa nova configuração da Família do Norte, que está sendo gestada nesse momento, pode ter repercussão nas ruas de Manaus e provavelmente em outros Estados", diz Lima.
Presídios lotados
Além da violência nas ruas, os conflitos entre as facções ocorrem em presídios superlotados, onde há denúncias de insalubridade e violações de direitos humanos.
Segundo o Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (Infopen), as prisões do Amazonas são as mais lotadas do país.
No levantamento mais recente divulgado, com dados relativos a 2016, o Estado tinha uma população carcerária de 11.390 pessoas para apenas 2.554 vagas - uma taxa de ocupação de 484%.
Desse total, 64% eram presos provisórios - ou seja, eles sequer haviam sido julgados.
Para Bruno Paes Manso, pesquisador do Núcleo de Estudos da Violência da USP e um dos autores do livro A Guerra: a ascensão do PCC e o mundo do crime no Brasil (Ed. Todavia), a superlotação dos presídios ajudou as facções.
"Basta ver como o crime passou a ver os presídios como estratégicos", explica. "Quando o presídio é lotado, não tem funcionários suficientes, comida e condições mínimas para manter os presos, os próprios detentos passam a se autogerenciar e a criar lideranças. A superlotação foi fundamental para o crescimento das facções", diz.
Nesta terça, o Ministério Público do Amazonas fez 23 recomendações "urgentes" ao governo estadual para tratar a crise prisional, entre elas a transferência de presos, melhorias estruturais das casas de detenção, controle usando drones no entorno dos presídios e intensificação de revistas.
O que diz o governo
Segundo o governo do Amazonas, os mandantes do massacre já foram identificados e serão levados para presídios federais.
Como resposta às ocorrências, o governo afirmou que vai "adotar medidas disciplinares nos presídios".
O governo de Wilson Lima destacou também o envio da Força-tarefa de Intervenção Penitenciária, resultado de uma conversa com o ministro da Justiça e Segurança Pública, Sergio Moro, e reflexo de "um problema que é nacional: o dos presídios", de acordo com uma nota enviada à imprensa.