Sobreviventes das balas perdidas: relatos mostram trauma das vítimas da violência no Rio
Além da violência, demora nos processos judiciais e calvário psicológico fazem parte do cotidiano de moradores das regiões mais pobres da capital fluminense.
Era um feriado ensolarado no Rio. Os irmãos Pedro e João (nomes fictícios), de 10 e 12 anos, haviam acabado de passar o dia na praia com sua mãe em Ipanema, desfrutando da orla a mais de uma hora de sua casa, em uma comunidade em Guadalupe, no extremo norte da cidade.
Na volta para casa, a van que os trouxe da zona sul chegou ao ponto perto de casa junto com um caveirão (veículo blindado do Batalhão de Operações Especiais da Polícia Militar) - precipitando uma chuva de tiros dos "meninos" contra a polícia, lembra a mãe, referindo-se aos integrantes do tráfico local.
"Os tiros passaram pela lataria, furaram o banco, pegaram no ombro do João e vazaram para o Pedro. Foi um tiro só que atingiu os dois", conta Gabriela (nome fictício), lembrando o desespero de ver os dois filhos ensanguentados.
O ferimento de Pedro foi mais grave. A bala entrou pelas costas e saiu pela virilha. Ele saiu da van segurando uma parte do intestino. Precisou fazer uma colostomia e hoje usa uma bolsa.
Sobreviventes, os dois irmãos são parte de uma estatística invisível de pessoas feridas por bala perdida no Rio - e que tem impactos físicos e psicológicos duradouros.
O Estado não contabiliza casos de balas perdidas. Não há uma medida precisa de quantas pessoas morrem em incidentes do tipo, nem de quantas conseguem sobreviver aos tiroteios diários que acometem sobretudo nas regiões mais pobres.
A BBC News Brasil conversou com sobreviventes de balas perdidas sobre as marcas deixadas pelos ferimentos no longo prazo. Eles e suas famílias relatam o penoso processo de recuperação, o calvário para obter indenizações na Justiça e a ruptura representada em suas trajetórias pela irrupção da violência.
'Mamãe ficou desesperada'
"Tia, tomei um tiro!" Pedro está com sua mãe na fila do Hemorio e esse é o seu jeito de explicar à reportagem por que está ali, realizando exames no centro de hematologia do Estado para uma cirurgia, a terceira após ser atingido.
"Eu e o meu irmão. A mamãe ficou desesperada", conta, abraçando a mãe.
Falante, o menino conta o que ocorreu com uma leveza desconcertante, lembrando o sangue espirrando do braço do irmão, a chegada ao hospital, os vômitos, os médicos chutando a porta no caminho para a sala de cirurgia, a lâmina que viu antes da operação.
"Aí acordei, minha mãe do meu lado, e eu na cama. Fim!"
Ele brinca enquanto espera seu nome ser chamado para o exame, e lamenta estar perdendo aula naquela terça-feira porque era dia de educação física, quando joga futebol e basquete.
"Ele faz tudo o que não pode", diz a mãe, referindo-se às limitações impostas pela colostomia a um menino de 10 anos. Pedro mostra a bolsa transparente fixada rente à barriga sem rodeios, ao lado da cicatriz deixada pelo tiro. Ele vai fazer uma cirurgia para reconstruir o intestino e poder deixar de utilizar o objeto. Até lá, ele tem várias restrições alimentares e não deveria correr - mas não para quieto.
"Ele é muito positivo. É um guerreiro. Foi o que me deu força diante de tudo", diz Gabriela.
Vidas alteradas
Gabriela largou o emprego de gerente de uma lanchonete para cuidar do filho. Ela diz que "tudo relacionado à colostomia é caro", sobretudo as bolsas. Ele utiliza aproximadamente 35 por mês, e só consegue obter cerca de metade delas na rede pública, mas recorre às redes sociais para pedir ajuda financeira e comprar as demais.
A família se informou com advogados para saber se poderia pedir algum tipo de indenização, mas concluiu que não valia a pena entrar na Justiça, porque os tiros que atingiram seus dois filhos haviam partido de traficantes.
Quando a família se mudou da Paraíba para o Rio, há cerca de 15 anos, a região de Guadalupe era dominada por milícias. Depois, foi invadida pelo tráfico, e os confrontos se tornaram frequentes.
"O foco é na parte baixa da comunidade. Quando passa o caveirão, eles dão tiro. Acham que vai atingir policial, mas acabam atingindo inocente. Tem uns que nem sabem dar tiro direito. Pega em quem estiver passando", diz, sem planos de se mudar apesar da violência. "A bala perdida infelizmente não é mais perdida, é achada. A gente não tem o que fazer. Está perigoso em todo lugar."
Pedro diz que não sente medo de tomar outro tiro. "Porque em lugar nenhum a gente está seguro mesmo", diz o menino. "Então, a qualquer dia a gente pode tomar tiro, se machucar feio ou até morrer."
A mãe foi com ele a uma psicóloga e foi orientada a sempre deixar que ele conte o que aconteceu, a embarcar no assunto com ele, sem evitar o tema.
"E aí ele vai falando o que ele lembra, que ele está na van e que é muito ruim levar tiro, e que está escrito na Bíblia que a gente está no mundo para sofrer, sentir dor e morrer. Ele diz, 'eu estou aqui só para sofrer e sentir dor.' Você não tem noção de como é ruim ouvir isso do seu filho", diz Gabriela.
Mais tiroteios apesar da intervenção
A intervenção federal na área de segurança pública no Rio acaba de completar quatro meses. De acordo com balanço do Observatório da Intervenção, grupo de especialistas criado para monitorar suas ações, o número de tiroteios no Estado teve aumento de 36% no período.
Nos quatro meses antes do decreto do presidente Michel Temer, o Rio havia tido 2.355 tiroteios, conforme medição do aplicativo Fogo Cruzado. Já nos últimos quatro meses, foram 3.210 episódios.
Pesquisa realizada pelo Instituto Datafolha em parceria com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública no fim de março indicou que 92% dos moradores do Rio têm medo de ser vítimas ou terem um parente vítima de bala perdida - e que 8% já teriam sido vítimas ou tiveram um familiar atingido, o que equivale a 415 mil cidadãos.
Na mesma pesquisa, 76% da população disse apoiar a intervenção, mas 69% disseram achar que a presença do Exército "não fez diferença alguma" na segurança da cidade.
O tiroteio que vitimou João e Pedro reflete a recente escalada de violência no Rio e a explosão de casos de tiroteios provocados por disputas de territórios entre facções criminosas e grupos milicianos, o aumento de incursões policiais em favelas e o declínio das UPPs.
Mas as balas perdidas são um problema antigo no Rio, como bem sabe Josicleide Urbano da Silva. Há 11 anos, ela viveu desespero semelhante ao de Gabriela, vendo seus dois filhos baleados de uma só vez dentro de casa, no Complexo do Alemão.
Assim como Gabriela, ela também foi questionada se seus filhos tinham "envolvimento com o tráfico" ao chegar no hospital.
Trajetórias interrompidas
Foi em 2007, mas Josicleide, hoje com 50 anos, relembra os detalhes com vividez. Vitória, de 3 anos, e Ivo, de 17, estavam sozinhos em casa quando um confronto entre policiais e traficantes começou. Ivo falou para a caçula se deitar no chão e continuou de pé no fogão, fazendo almoço para os dois.
Josicleide saiu às pressas do trabalho ao ser alertada do confronto pelo marido, conseguiu furar os bloqueios impostos pelo tiroteio e, ao entrar em casa, viu a filha "sentadinha no chão", atingida por estilhaços de bala na perna e na orelha, e o filho desmaiado, com um pano amarrado pela irmã onde estava sangrando. "A bala perfurou o braço e atravessou para o lado, rasgando as costas dele", conta.
O pior, entretanto, veio depois. Policiais acusaram Ivo de trocar tiros com a polícia e, do hospital, o levaram algemado para o Instituto Padre Severino. Ele passou oito noites preso no centro para menores infratores.
Dois meses depois, ele foi absolvido e inocentado pela Vara da Infância e Juventude do Estado do Rio e recebeu uma moção de desagravo do Conselho Estadual de Defesa da Criança e do Adolescente do Estado do Rio de Janeiro, um pedido oficial de desculpas por ter sido vitimizado fisicamente e "ainda acusado ilegalmente e injustamente da prática de ato infracional de associação para o tráfico de drogas".
Mas Josicleide conta que o episódio interrompeu totalmente a trajetória do filho, que era estudante, trabalhava como jardineiro e sonhava em ir para o Exército. Após sua detenção, seu alistamento não foi aceito e ele viu os sonhos irem por água abaixo. Hoje, trabalha como mototaxista.
"Saiu foto dele no jornal, falando para o mundo todo que ele era traficante do Alemão. Depois veio o pedido de desculpas, mas mesmo assim não o aceitaram no Exército. Sabiam o que tinha acontecido. Trataram ele muito mal quando ele foi se apresentar. Ele foi muito humilhado", conta.
Josicleide fez tratamento com uma psicóloga e até hoje toma remédio para dormir. Ela diz que a filha, hoje com 16 anos, ainda tem tremores quando há tiroteio. Já Ivo mudou totalmente.
"Eu acho que ele ficou meio revoltado, meio rebelde. Não gosta que ninguém fale do assunto. Não deixa ninguém tocar no braço dele (onde foi baleado). Quando ele saiu do Padre Severino passou um mês tomando remédio. Depois não teve mais nenhum tipo de tratamento porque não quer."
A família entrou com uma ação indenizatória contra o Estado, mas o processo foi arquivado. "A gente queria que o Estado pagasse pelo erro que cometeu. Todo mundo não tem que pagar pelos seus erros? Com os pobres é assim."
Defasagens no atendimento
O psiquiatra William Berger, professor adjunto da UFRJ e pesquisador do Laboratório Integrado de Pesquisas sobre Stress (Linpes), diz que o trauma de ser atingido por uma bala perdida na infância ou juventude pode ser "devastador" para a formação do indivíduo.
"Ela pode crescer uma criança muito mais insegura, irritada, temerosa, com medo de ir para o colégio, de sair de casa, podendo ocasionar por exemplo evasão escolar", afirma. "Quanto mais precoce, maior a tendência de comprometer um indivíduo que sobreviveu a um trauma desses", diz.
Berger acompanha de perto os efeitos da violência no Rio no Ambulatório de Violência Urbana do Instituto de Psiquiatria da UFRJ, que há quinze anos presta atendimento médico e psicoterápico gratuito a vítimas.
"Antes de eu começar a atender a essa população, eu achava que a situação não era tão ruim assim, que mídia pegava os piores casos e isso impressionava muito a opinião pública", lembra. "Hoje, posso dizer que os casos são muito piores do aparece na TV. Só tendo contato é que temos alguma dimensão do que essas pessoas passam no dia a dia", diz.
O ambulatório atende a pessoas que sofreram diversos tipo de violência, de balas perdidas a assaltos com sequestro-relâmpago, estupros ou tiroteios no meio de uma sala de aula com crianças.
Tais eventos podem gerar uma série de transtornos mentais, como depressão, transtornos de ansiedade e síndrome do pânico. Mas a sequela mais grave, considera, são os casos de transtorno de estresse pós-traumático, patologia que começou a ser descrita em situações de guerra, estudada em veteranos da Guerra do Vietnã, e que aparece em cidades com altos índices de violência, e de tiroteios sem hora nem lugar para acontecer, como o Rio.
"O transtorno de estresse pós-traumático (TEPT) é muito incapacitante. Gera um sofrimento enorme para o portador. Leva a prejuízos econômicos grandes, tanto pela perda da produtividade quanto por problemas de saúde, e produz sintomas como dores abdominais, taquicardia, irritabilidade, tremores e até diarreia", explica.
Berger diz que casos de TEPT são subdiagnosticados porque os pacientes têm dificuldade de falar sobre a doença. "É preciso que os médicos procurem ativamente, perguntem sobre traumas sofridos, porque os pacientes não vão falar espontaneamente. Pelo contrário, ele vai esconder para não ter que lembrar daquilo que é tão sofrido para ele", afirma.
Apesar do quadro crítico de violência urbana no Brasil, um atendimento médico especializado está longe de ser uma realidade na rede de saúde pública, diz a psicóloga Edinilsa Ramos de Souza, do departamento de Estudos de Violência e Saúde da Escola Nacional de Saúde Pública (Ensp), da Fiocruz.
"Nossos profissionais ainda estão muito pouco capacitados para lidar com violência urbana. Esse tema entra pouco na graduação de medicina e enfermagem. E sabemos que é uma questão complexa, de múltiplos fatores, na qual os profissionais têm que atuar em rede com outros setores da sociedade", afirma.
Responsabilização do Estado
Apesar da urgência do tratamento das sequelas físicas e mentais de sobreviventes de ferimentos por arma de fogo, o tempo dos processos indenizatórios na Justiça segue o mesmo ritmo moroso de ações judiciais em outras áreas.
De acordo com o defensor público Daniel Lozoya, do Núcleo de Defesa dos Direitos Humanos da Defensoria Pública do Estado do Rio (NUDEDH), os casos de balas perdidas são tão recorrentes que há jurisprudência determinando que o Estado tem responsabilidade cível sobre casos de homicídio ou lesão corporal resultantes de operações policiais - mesmo que o disparo não tenha partido da polícia ou em casos nos quais não se descubra de onde partiu.
O fundamento é que o Estado está assumindo riscos ao ir para o confronto em locais densamente povoados. Além disso, há o entendimento de que, se a polícia está agindo em benefício da sociedade, mas lesa um terceiro, é razoável que a sociedade assuma esse encargo. Isso vale apenas para terceiros não envolvidos no confronto, frisa Lozoya.
No entanto, como os processos contra o Estado são muito demorados, com recursos até a última instância, muitas vezes a saída mais realista é entrar em um acordo.
"Nos acordos, é feito o pagamento de indenização com muito mais celeridade. Alguns casos conseguimos resolver em meses. Agora tem demorado mais, já que o Estado está em crise, mas ainda assim é incomparável com o tempo de um processo", afirma.
Indenização 20 anos depois
A jovem Camila Lima é um caso emblemático de demora de um processo quando não se opta por um acordo. O seu caso completará 20 anos em setembro - e ela finalmente obteve uma vitória no Superior Tribunal de Justiça (STJ), em Brasília.
Camila tinha 12 anos quando foi baleada ao sair da escola em Vila Isabel, na zona norte do Rio, atingida em uma troca de tiros entre seguranças privados e bandidos que assaltaram uma joalheria. A bala atingiu sua 6ª e sua 7ª vértebras, e ela ficou tetraplégica.
De acordo com a decisão do STJ, as empresas envolvidas no processo devem indenizar Camila em R$ 450 mil por danos morais e R$ 450 mil por danos estéticos, além de manter uma pensão alimentar vitalícia de um salário mínimo por mês. São elas a Drogarias Pacheco, a Sendas e o restaurante Petisco da Vila, à época responsáveis pela contratação dos seguranças.
Apesar da vitória, seu advogado, João Tancredo, afirma que deve demorar até que ela receba de fato a indenização - já que o STJ ainda precisa avaliar os embargos de declaração apresentados pela defesa, e depois virão as longas discussões sobre como executar a sentença e aplicar a correção monetária sobre a indenização.
"Na maioria dos casos, os processos são um segundo martírio. As pessoas vivem um sofrimento duplo. Há o mal em si, e há o mal que o Estado causa com essa morosidade da Justiça", diz o advogado, responsável por uma ampla gama de ações de indenização em casos emblemáticos, como o do pedreiro Amarildo, o do morador de rua Rafael Braga, preso nos protestos de 2013, e o da vereadora Marielle Franco e seu motorista, Anderson Gomes.
"Há um número enorme de vítimas que não procuram indenização porque não têm consciência do direito que têm. Isso é muito triste. É muito doentio uma sociedade achar que só tem obrigações, e não exercer o direito da cidadania", considera.
O caso de Camila foi amplamente noticiado na época e causou grande comoção social. Vinte anos depois, ela acha que o problema se banalizou.
"Naquela época, casos de bala perdida não eram tão comuns. Agora, está virando rotina. Crianças baleadas, pessoas que morrem ou ficam com sequelas graves. Isso abala a família toda. E é só mais uma vítima, só mais um caso. O Estado não faz nada. É lamentável o ponto a que chegamos", afirma.