Vítima de ex-padre suspeito de abuso acusa igreja de omissão
“Falar é quebrar a proteção do pedófilo”. Esta fala de uma vítima de abuso sexual infantil resume o desfecho da operação Silêncio dos Inocentes, deflagrada na semana passada na cidade de Caçapava do Sul, no Rio Grande do Sul, que culminou com a prisão de um suspeito cometer abusos contra crianças e adolescentes por décadas impunemente. João Marcos Porto Maciel, conhecido com Dom Marcos, é um ex-padre expulso de duas igrejas, mas não pelas suspeitas de pedofilia, apesar de denúncias terem sido encaminhadas à igreja católica. Marcelo Ribeiro cessou o silêncio de décadas no livro “Sem Medo de Falar - Relato de Uma Vítima de Pedofilia”, publicação que originou a investigação policial.
Conhecido como maestro, Dom Marcos dava aulas de música e comandava corais de crianças. Em Minas Gerais, onde teriam ocorrido os abusos contra Ribeiro, ele chegou a receber uma menção honrosa pelo trabalho com o coral de crianças. Mas seu comportamento nunca foi muito ortodoxo, sempre foi visto como uma personalidade megalomaníaca. Ele foi excomungado da igreja católica em 2009 e depois expulso da igreja anglicana em 2011, mas os motivos não teriam sido as denúncias de pedofilia. Em 2012 ele fundou a própria igreja na cidade de Caçapava do Sul, a Ordem de Santa Cecilia, onde atendia crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade social, mesmo sem alvarás necessários.
Com a publicação do livro de Marcelo Ribeiro, no começo de 2014, o Ministério Público pediu que a Polícia Civil investigasse o caso. Até então, as autoridades não tinham registro de nenhuma denúncia contra Dom Marcos. A primeira ocorrência contra ele foi registrada em agosto de 2014, quando um menor de idade disse ter sido agredido, mas só veio a relatar os abusos sexuais após a prisão do ex-padre na semana passada. Durante as investigações a polícia levantou relatos supostos abusos, sendo que quatro deles teriam prescrito porque ocorreram há muito tempo.
“Me questiono porque ninguém nunca falou nada, perguntei para o adolescente porque não procurou ajuda quando apanhou de relho quando foi na delegacia todo machucado”, disse a coordenadora do Conselho Tutelar de Caçapava do Sul, Claudia Fernandes, dizendo que as denúncias só chegaram neste ano. ”Nas duas primeiras vistorias, eles não abriram a porta... procuramos os meios de comunicação e o judiciário, e quando eles viram que estava na mídia, resolveram nos deixar entrar. Mas não consideramos isso uma vistoria, porque não tinha mais o elemento surpresa. Encontramos dois adolescentes, pegamos os dados dos que já tinham passado por lá para ajudar o delegado com a investigação, e ouvimos o relato de um adolescente de 17 anos”, explica.
Segundo ela, o adolescente tinha registrado queixa de agressão após uma surra de relho que teria levado de Dom Marcos. “Mas essa denúncia não nos foi encaminhada, nos trabalhamos por meio de denúncia”, justifica. Na conversa que teve com o jovem, ele relatou os abusos sexuais. “Ele falou do abuso exatamente como era. Que todos os dias depois do banho tinha a reza no quarto do Dom Marcos, que quando ele se aproximava fazia a mesma coisa, beijava na boca e tocava na genitália”, conta Claudia, dizendo que o adolescente, desde os 6 anos de idade, é abrigado por diferentes famílias e abrigos.
O mosteiro foi interditado porque mesmo depois da prisão de Dom Marcos, as aulas de música continuaram. Os pais das crianças que frequentavam o local foi avisados de que caso não impedissem que seus filhos, seriam responsabilizados judicialmente.
Dom Marcos deve ser indiciado pelos crimes de estupro de vulnerável, prescrição ilegal de drogas (porque dopava vítimas), curandeirismo e racismo, uma vez que existem relatos de que praticava castigos mais severos contra crianças negras.
Leia a entrevista concedida por Marcelo Ribeiro ao Terra sobre o que viveu ao lado de Dom Marcos.
Terra - Quando você sofreu abusos, que idade você tinha quando aconteceram?
Marcelo Ribeiro - Eu entrei para o coral da Igreja Católica de Diamantina (MG) quando tinha 9 anos, na sua criação pelo Arcebispo Dom Geraldo Sigaud e Irmão João Marcos (que mais tarde viria a se chamar Dom Marcos). A disciplina imposta era baseada em castigos físicos, pressão psicológica e obediência pelo medo. Quando tinha entre os 11 e 12 anos, numa viagem do coral, ficamos todos dormindo no mesmo ambiente, e nesta noite acordei com ele na minha cama, e mesmo sem entendimento do que havia ocorrido me foi imposto o silêncio. Depois disso ele se aproximou mais no dia a dia, me colocando em atividades mais importantes, e foi me seduzindo com beijos, carícias e elogios, que culminaram com o abuso sexual ordenado. Fazendo o que ele pedia, e que se tornaram esporádicos. Aos 15 anos fui morar com ele na cidade de Novo Hamburgo (na região metropolitana de Porto Alegre), para criação do coral pelo Bispo Dom Sinésio Bohn e pelo Irmão João Marcos, e os abusos se tornaram diários vivendo sob o mesmo teto. Pouco mais de um ano depois consegui cessar os abusos.
Terra - Você já tinha tentado denunciá-lo?
Marcelo Ribeiro - Em 2010, consciente de que ele continuava sua vida de abusador, denunciei, através de carta, para Dom Geraldo Lyrio Rocha, presidente à época da CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil), com cópias para Dom Sinéio Bohn, Dom Irineu Silvio Wilges, Dom Lourenzo Baldisseri (Núncio Apostólico) e Papa Bento XVI. Mas só recebi uma resposta da CNBB acusando o recebimento e informando o encaminhamento à Assessoria Jurídica. Nenhuma atitude ou solicitação relativa ao caso me foi demonstrada.
Terra - Foi difícil relatar o que você passou depois de tanto tempo e ter que recontar essa história várias vezes após a publicação do livro?
Marcelo Ribeiro - Somente aos 42 anos de idade, em 2007, falei pela primeira vez sobre os abusos, com minha mulher, que foi solidária, compreensiva e de extrema consciência da bondade. À medida que fui narrando e lembrando cada detalhe, fui me conscientizando da necessidade de falar. Entendi que falar é quebrar a proteção do pedófilo. Sabendo que meu crime estava prescrito e que a Igreja Católica nada faria, vi a possibilidade de através de um livro com minha memórias, multiplicar o poder do falar, ajudando a sociedade a prevenir, e com possibilidade de encorajar outras vítimas deste abusador ou de outros a participar deste movimento. Por isso o título “Sem Medo de Falar”. Repetir essa história várias vezes é certamente multiplicador do objetivo.
Terra - Você precisou de tratamento ou algum tipo de ajuda para conseguir lidar com o trauma?
Marcelo Ribeiro - O acolhimento de minha mulher foi muito marcante e muito curativo no meu processo pessoal. Trabalhei muito o autoconhecimento para reconhecer as sequelas que carrego. O livro também foi muito importante no processo, bem como todos os eventos a partir dele. Tenho consciência que há um longo caminho a percorrer.
Terra - Porque você acha que Dom Marcos ficou tanto tempo impune?
Marcelo Ribeiro - Porque João Marcos foi protegido durante toda sua vida pela Igreja Católica. Os bispos o apoiavam na criação dos corais. Em Novo Hamburgo foi ordenado padre e em Caçapava do Sul ele teve apoio para criar um mosteiro, que, enquanto ainda era católico, exigia do vocacionado que fosse "preferencialmente jovem virgem que não tenha tido experiências sexuais com mulheres", isso publicado na internet. Onde se encaixa isso? Em todas as cidades que ele passou havia denúncias informais e mesmo assim os bispos nada fizeram.
Terra - Porque você acha que apesar de ele ter sido expulso de duas igrejas isso nunca foi levado para as autoridades?
Marcelo Ribeiro - Ao que me consta ele não foi expulso de duas igrejas pelas denúncias de abusos sexual contra crianças e adolescentes. Pelas informações que tenho, a excomunhão católica foi motivada pela carta de alguns ex-monges que relataram sacrifício de animais e trabalhos de magia. E no caso da excomunhão anglicana foi alegada megalomania do expulsado. A igreja Católica não só foi omissa, mas, no meu ponto de vista, culpada por esses abusos ocorridos em mais de 50 anos de vida religiosa. Foi, e é omissa por livre arbítrio, confirmado por denúncias em todo o mundo.
Terra - A prisão dele dá algum tipo de alívio?
Marcelo Ribeiro - A prisão dele dá um choque de realidade na sociedade para um assunto sobre o qual ninguém quer falar, mas que está presente e precisa ser debatido. Ela mostra que existem alguns tópicos na lei que precisam ser melhorados. O primeiro e mais importante é uma mudança legal para que o crime de abuso sexual de menor e adolescente, para que não prescreva, por ser um crime formador de trauma e no qual é necessário que a vítima vença suas etapas para denunciar. Se não existisse prescrição, eu poderia ter denunciado em 2007 e a lei teria protegido quantas crianças deste abusador em sete anos? Outro tópico importante é transformar em crime hediondo.
Terra - Com base na sua experiência, que dicas você daria aos pais para que identifiquem um possível abusador?
Marcelo Ribeiro -
Penso que quem precisa identificar e reconhecer um possível abusador é a criança, pois ela é o alvo. No livro busco informar estas características e principalmente explicar porque a criança não fala, não conta do abuso. A partir deste pensamento, o debate na sociedade é importante para definir como e quando essas informações devem entrar no currículo escolar. O primeiro passo é a sociedade reconhecer que o abusador está muito próximo, e é urgente a necessidade de proteção das crianças.
O Terra entrou em contato com a CNBB para ouvir sobre as denúncias de omissão em relação aos casos de abuso supostamente cometidos por Dom Marcos, mas a entidade não respondeu as solicitações.