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Política

2024: annus horribilis?

9 mar 2024 - 06h10
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Dizem os sábios que é sempre necessário buscar o lado positivo dos fatos. E assim deve ser também quando se observa o cenário internacional. Mas quando se trata de pensar em paz e prosperidade mundiais em 2024 o esforço tem que ser ainda maior. Há no horizonte uma quantidade simultânea de instabilidades que não se têm comparação desde a primeira metade da década de 90 do século passado. Uma desordem. Em 2024 um terço da população mundial vai às urnas em 50 países. Destaque para Índia, México, Indonésia, Rússia, União Europeia, Venezuela, África do Sul e claro, Estados Unidos. Duas guerras com consequências regionais continuam com cenários de aumento de violência durante o ano: a russo-ucraniana e Israel contra Hamas, em Gaza. Além disso, uma série de conflitos menores estão ganhando proporção justamente porque não se identifica - na realidade da política internacional - as referências de poder que determinam a ordem internacional.

O problema começa com as eleições norte-americanas. O resultado da escolha dos cidadãos naquele país determinará o futuro de 8 bilhões de pessoas. Até o momento, tudo indica que será uma eleição polarizada a ser decidida por algumas dezenas de milhares de votos em alguns Estados que trocam de orientação política de tempos em tempos, os swing states. O sistema eleitoral norte-americano está diante de uma crise de credibilidade na qual transferência pacífica de poder em um processo justo foi colocado em dúvida. O risco do lado perdedor questionar a vitória alheia não é pequeno. É justamente a incerteza sobre o resultado das eleições americanas que abre espaço para todo o tipo de aventura política mundo afora.

Enquanto os norte-americanos não se organizam internamente para depois definir se pretendem continuar sendo a polícia do mundo, o promotor dos valores universais e o líder do comércio global - oportunistas tomaram a dianteira em todas as regiões do mundo.

A fragilidade do Estado como garantidor do interesse público já está presente em um terço de todos os países do mundo, seja por modelos autocráticos ou regimes aliados a organizações criminosas transnacionais, ou os dois simultaneamente. O número crescente de países tomados pela corrupção endêmica criou um hiato entre um modelo de regras entre Estados nacionais que garantia a segurança e um outro modelo violento e criminoso de relações e interesses. Há vários casos emblemáticos que ganharamdestaque nos últimos meses e que, em 2024, tendem a gerar mais instabilidade e espaço para os oportunistas. Se os conflitos entre Rússia-Ucrânia e Israel-Hamas não fossem o suficiente, vejamos o abandono da Armênia que ainda tinha a Rússia para conter os avanços do Azerbaijão no enclave de Nagorno-Kharabak. Uma limpeza étnica foi realizada sob o silêncio do mundo. Ou observe-se os exercícios de retórica da Venezuela para a ocupação do Essequibo, colocando a Guiana em Estado de alerta e toda a região do norte do contente Sul-americano e Caribe em tensão. Ou ainda, o movimento audacioso da Etiópia ao reconhecer o noroeste somaliano como país independente, a Somalilândia, dando-lhe acesso ao Oceano Índico, bem ao lado do estreito de Bab el Mandeb, ali mesmo no sul do Mar Vermelho, onde os Huthies iemenitas estão atacando navios mercantes norte americanos e de aliados. Mesmo local onde se verifica ruptura de cabos submarinos de informação que hoje conectam o mundo. E tudo isso sem detalhar as tensões crescentes entre Sérvios e Kosovares nos Balcãs; as recentes tensões fronteiriças entre Guatemala e Belize; a guerra civil em Myianmar contra a minoria muçulmana dos Rohingya; a crise institucional no Paquistão após a queda do Presidente Imran Khan, e porque não dizer da sistemática movimentação da China Popular em torno de Taiwan que muitos analistas apostam que em menos de 5 anos voltará a fazer parte da China continental.

Se todas as tensões acumuladas não encontram fóruns ou parceiros dispostos a intermediar ou determinar soluções de acomodação entre as partes, estão dadas as condições para cada um agir de acordo com a sua conveniência tomando riscos que há poucos anos não tomariam. E aí entra mais um componente de instabilidade nos conflitos dentro e entre os Estados mundo afora: a desinformação causada pelo uso indevido de Inteligência Artificial e a segurança cibernética. O mau uso da Inteligência Artificial tem efeito direto e imediato no comportamento social e na agitação das massas. A insegurança cibernética já se tornou um verdadeiro tormento para governos e empresas privadas. Em 2022, 83% das maiores empresas do mundo sofreram algum tipo de invasão em seus bancos de dados. Governos não têm sido capazes de conter a entrada de invasores em seus sistemas oficiais. Com quase 3 bilhões de pessoas participando de eleições em 2024/2025 - a segurança da informação passou a ser vital para a estabilidade mundial.

Tempos estranhos. O diagnóstico de instabilidade para 2024 seria apenas resultado de um mundo onde bilhões de pessoas têm acesso a todo o tipo de informação (e desinformação) em tempo real e em quantidade incomparável? Talvez. Mas quando muita gente tem acesso à informação instantânea sobre tudo e todos e constata que a estabilidade econômica está escassa e a mobilidade social restrita, a frustração cresce e pode colocar os sistemas políticos constituídos em colapso. Um cenário onde os Estados -Nação deixam de ter controle sobre vastas áreas de seus territórios já se configura realidade. Seja por obra da contravenção e da violência, seja porque milhões de indivíduos não mais fazem parte das economias nacionais oficiais embora estejam presencialmente em determinada geografia. Podem estar conectados a atividades econômicas em outras paragens. E a segurança de cada um não mais depende do país em que se encontra, mas a determinadas áreas em diferentes pontos do mundo em que ainda há monopólio da força de um determinado Estado. Em outras palavras, uma espécie de Idade Média pós-moderna com bolsões de civilização em que fora de suas muradas está a barbárie. E todos conectados em redes - onde qualquer um pode ser produtor de conteúdo - e cuja segurança da informação não está mais garantida. 2024: admirável e amedrontador.

Annus horribillis: é uma expressão do latim "ano horrível" - utilizada pela primeira vez em 1891 em uma publicação anglicana que fazia referência à definição de dogmas pela igreja católica ocorrida em 1870. O termo ganhou destaque em 1992 quando a Rainha da Inglaterra, Elizabeth II, em seu famoso discurso, se referiu ao período em que comemorava os 40 anos de sua ascensão ao trono (Jubileu de Rubi) - marcado por turbulências como separações de três dos seus quatro filhos; além de um incêndio no Castelo de Windsor. Novamente, a expressão foi utilizada mundialmente em 2020 - ano que marcou a COVID-19 e seus desdobramentos.

Estadão
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