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Política

Abranches: 'Bolsonaro tirou todas as máscaras da campanha'

Para o cientista político e escritor, as bandeiras defendidas eram 'incompatíveis' com o atual presidente, que agora se aproxima do Centrão

15 ago 2020 - 05h10
(atualizado às 09h33)
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Eleito com um discurso antissistema e contra a corrupção e prometendo um governo liberal na economia, o presidente Jair Bolsonaro vê suas principais bandeiras postas em xeque em pouco mais de um ano e meio de mandato. Seu "superministro" Sérgio Moro deixou o governo acusando-o de não ter uma agenda anticorrupção; na Economia, Paulo Guedes enfrenta a "debandada" de secretários, que dizem que o governo não é liberal de verdade; e, após uma relação tumultuada com o Congresso, aproximou-se do Centrão.

Presidente Jair Bolsonaro no Palácio da Alvorada, em Brasília
13/05/2020
REUTERS/Adriano Machado
Presidente Jair Bolsonaro no Palácio da Alvorada, em Brasília 13/05/2020 REUTERS/Adriano Machado
Foto: Reuters

Para o cientista político e escritor Sérgio Abranches, o governo Bolsonaro "finalmente tirou todas as máscaras que usou na campanha". Em entrevista ao Estadão, Abranches afirma que, em meio às mudanças, o presidente deixa de lado o "Bolsonaro de campanha". "Ele nunca demonstrou aptidão para a política não tradicional".

Abranches, que cunhou o termo "presidencialismo de coalizão" nos anos 80, vê Bolsonaro em uma aliança com a ala mais fisiológica do Congresso, o Centrão. Mas, segundo ele, nem essa aproximação vai melhorar a relação do presidente o Legislativo. "Atender a responsabilidade fiscal e o fisiologismo do Centrão ao mesmo tempo é incompatível".

O sociólogo lança este mês o livro "O tempo dos governantes incidentais" (Companhia das Letras). A obra trata da ascensão de governos à direita no mundo nos últimos anos. Para ele, a postura negacionista de líderes como Bolsonaro durante a pandemia do coronavírus pode afetar a onda conservadora no Brasil e no mundo. "A pandemia mostra uma tendência de redução do apelo da extrema-direita". Abaixo, os principais trechos da entrevista.

Episódios como a "debandada" do Ministério da Economia, a saída de Sérgio Moro e a aproximação de Bolsonaro com o Centrão põem em xeque seu discurso eleitoral?

O governo finalmente tirou todas as máscaras que usou na campanha. Bolsonaro nunca contribuiu para qualquer tipo de reforço na legislação anticorrupção, nunca foi contra a política fisiológica tradicional e nunca demonstrou aptidão para a política não tradicional. Ele montou um Bolsonaro de campanha que agradou muita gente, mas agora tirou a máscara. Com isso, ele teve que fazer ajustes no governo para conseguir o quer. (Aquelas bandeiras) eram incompatíveis com Bolsonaro.

O presidente teve uma relação tumultuada com o Congresso e agora está próximo do Centrão. É uma postura bem diferente do início do mandato.

Ele se deu conta que a ideia de que poderia governar sem uma aliança era inviável. Ele não se aproximou do Congresso, mas da parte mais fisiológica do Centrão. Deu mais espaço para determinadas lideranças, com isso o Centrão se fragmentou, se dividiu. Bolsonaro está com o Centrão minoritário. No Brasil, estas alianças, por não serem feitas em termos programáticos e sim fisiológicos, não são compromissos de apoio integral. São compromissos de examinar com boa vontade o que o governo aprova em troca do que eles querem.

Bolsonaro é o presidente com mais vetos derrubados pelo Congresso. O senhor vê alguma chance de a relação com o Legislativo melhorar com essa aliança com o Centrão?

Acho pouco provável. O contexto está cheio de armadilhas, como ultrapassar o teto de gastos, a volta de impostos. De um lado, ele é refém do Centrão fisiológico. Do outro, precisa atender o que setores responsáveis do ponto de vista fiscal querem. Atender a responsabilidade fiscal e o fisiologismo do Centrão ao mesmo tempo é incompatível. Ou resolve isso perdendo apoio do Centrão, ou desses setores do mercado. Não há solução conciliatória. Uma coalizão tem vocação majoritária e é negociada em bases mais transparentes. Estas alianças de Bolsonaro têm implícitas um acordo de preservação de impunidade e de imunidade que faz com que seja mais uma aliança de cumplicidade para fazer coisas avançarem e outras não, do que uma coalizão de governo. Não há um desejo do Bolsonaro de se comprometer integralmente com a sua base de apoio. Ele já tentou e enfrentou descontentamento por não cumprir o prometido.

Acha possível a abertura de um processo de impeachment contra Bolsonaro?

Bolsonaro, do ponto de vista da Constituição e da lei do impeachment que está valendo, já cometeu numerosos crimes de responsabilidade. Base para impeachment não falta. Não é uma questão jurídica, portanto. É política. Do ponto de vista político, o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, descarta toda a farta evidência de crimes de responsabilidade na pandemia e de desde o início do mandato. Politicamente, não vê razão. Como depende da decisão do presidente da Câmara receber ou não o impeachment, acho que as chances são pequenas. Para se precaver, ele (Bolsonaro) se aproximou do Centrão. Tem número suficiente para não passar um impeachment ou mesmo para levar uma denúncia à Justiça comum.

Como a tensão PGR x Lava Jato impacta o governo?

A Lava Jato, com todos seus defeitos, revelou um enorme sistema de corrupção político-empresarial no Brasil que passava por todos os partidos. Portanto, uma parte desse grupo que apoia Bolsonaro no Congresso está nessas investigações. Quem sabe que é culpado quer desmontar a Lava Jato. Quem tem consciência limpa tem ressentimento por parte dos investigadores. Do ponto de vista político, pensando tanto no Congresso, quanto em Bolsonaro e seus familiares, há interesse em se desmontar a operação. Não de corrigir excessos ou punir eventuais erros, mas de desmontar mesmo, paralisar. A PGR está conseguindo isso claramente.

As mudanças de postura e na estrutura do governo podem afetar a base de apoio popular do presidente?

O auxílio emergencial durante a pandemia produziu algum alívio, mas esta é outra armadilha que ele terá que desarmar. Ele não tem recursos fiscais para manter o mesmo nível de transferência de renda para não criar decepção e frustração quando o auxílio emergencial acabar. A sustentação desse apoio tem a ver com apoio material. Pode ser um grande problema no futuro, por isso ele quer "furar" o teto (de gastos). Não sabemos se esse apoio material pode se transformar em voto, por exemplo. O cenário é especial, é impossível fazer qualquer previsão nesse sentido.

Diversos países tiveram ascensão da extrema-direita numa onda conservadora. Como a pandemia impacta este contexto político?

A pandemia faz uma interrupção no processo histórico. Há possibilidade de ruptura nas tendências que vinham. A chegada da extrema-direita ao poder nasce da frustração com o passado e com presente em clima de insegurança e de certeza. Um medo que torna as pessoas vulneráveis a discursos extremistas, de que os outros são culpados, que a culpa é de imigrantes, de que vamos ficar só entre nós, brancos. Quando vem a pandemia e todos se tornam negacionistas, isso vira um sentimento de que eles prometeram algo e não entregaram.

O que isso significa na prática?

A pandemia corta a tendência de crescimento e reforça a tendência de redução do apelo de extrema-direita. (O ex-ministro do Interior da Itália) Matteo Salvini se deu mal, (o presidente dos Estados Unidos) Donald Trump está desesperado tentando manter a possibilidade de se reeleger. A ascensão da direita veio com o descrédito da social-democracia. Com a pandemia, (o premiê britânico) Boris Johnson diz que quem salvou a vida dele (que contraiu coronavírus) foi o National Health Service, que os conservadores tentam acabar. No Brasil, valoriza-se o Sistema Único de Saúde. Há uma revalorização do legado social-democrático.

Estadão
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