Ataque de Bolsonaro a mulheres enfraquece luta por igualdade
Ainda que a diferença de tratamento entre gêneros não seja algo novo, ofensas do atual governo marcam retrocesso no País
“Ela queria um furo. Ela queria dar um furo a qualquer preço contra mim”, disse o presidente Jair Bolsonaro aos risos, há pouco mais de duas semanas, referindo-se a jornalista da Folha de S.Paulo Patrícia Campos Mello. A frase machista e com conotação sexual repercutiu entre seus apoiadores, que partiram para as redes sociais com agressões verbais ainda mais ofensivas à repórter.
Na última semana, outra jornalista voltou a ser alvo de ataques do presidente. Vera Magalhães, editora e colunista do Estado de S.Paulo, foi chamada de mentirosa em entrevista na entrada do Palácio da Alvorada e durante uma transmissão ao vivo na página do Facebook do presidente da República. A fala de Bolsonaro também gerou reações violentas de seus seguidores contra ela.
“As frases são sempre de conteúdo misógino, sexista e machista. Essa coisa de dar o furo, que é um termo utilizado para descrever o trabalho de todo jornalista, virou algo com conotação sexual e sempre voltado à mulher, num contexto chulo, grotesco e que foi vocalizado pelo presidente da República, tanto contra a Patrícia, quanto contra mim”, conta Vera Magalhães ao Terra.
Para a jornalista, a intensidade da violência e os insultos utilizados contra mulheres são diferentes dos que seriam voltados aos homens. “Não se vê esse tipo de ataque com jornalistas homens, por mais que as matérias deles incomodem. É algo muito voltado para mulheres”.
Incentivo do governo
Diante de uma sociedade patriarcal, dizeres sexistas estão enraizados em sua estrutura e acabam sendo reproduzidos e naturalizados, conforme explica a comunicadora social e especialista em neurociência, Gabriela Rodrigues, que criou o Guia da Linguagem Não Sexista na Publicidade.
“Assim como o machismo, outros comportamentos preconceituosos interligados, como racismo, homofobia e estereótipos de beleza que originam a gordofobia, têm origem estrutural, ou seja, que acontecem há um bom tempo e contaminaram a estrutura social em que vivemos”, diz.
Ainda que a diferença de tratamento entre gêneros não seja algo novo, as ofensas do atual governo estão cada vez mais enviesadas com relação às mulheres.
“[O machismo] não é algo inédito para mim. No governo do PT cheguei a ser muito atacada e usavam sempre meu marido para me atingir. Não é uma exclusividade do bolsonarismo”, relembra Vera. “Mas a coisa ganhou uma outra escala, uma outra dimensão e uma virulência muito maiores neste governo. Porque passou a ser autorizada pelo próprio presidente e pelos filhos dele. Quando eles praticam, seus seguidores se sentem mais encorajados a fazerem o mesmo”.
Além dela e de Campos Mello, outras colegas de profissão como Míriam Leitão e Constança Rezende também já tiveram suas intimidades invadidas por apoiadores do governo que ultrapassaram os limites do debate, valendo-se de ameaças e ofensas contra elas, após serem proferidas pelo próprio Bolsonaro.
Os insultos não se restringem apenas à imprensa - categoria duramente criticada pelo presidente. Casos que ganharam destaque internacional, como os que envolveram a ambientalista sueca Greta Thunberg, chamada de “pirralha”, e Brigitte Macron, mulher do presidente da França Emmanuel Macron, que teve a beleza questionada por Bolsonaro, ilustram a conduta adotado por ele e apoiada por seus eleitores.
O comportamento enfraquece o debate e luta pela igualdade de gênero. “Diante do conservadorismo do atual governo, há um retrocesso do ponto de vista de linguagem. Uma esfera social que trabalha para construir o futuro do País ocupada, em sua maioria, por homens brancos, héterossexuais e cis tende a estar fixada ao passado”, observa Rodrigues.
Exemplos
Frases que desqualificam a estética ou com conotação sexual são encontradas aos montes nos comentários de publicações feitas pelas jornalistas atacadas. Contudo, o preconceito nem sempre vem de forma tão explícita.
Um estudo realizado pela Babbel, uma empresa de educação alemã, foi divulgado na semana em que é comemorado o Dia Internacional da Mulher para destacar o machismo e sexismo expressado verbalmente no dia a dia.
Com o nome de “The patriarchal rooted in languages”, a pesquisa feita em 12 países analisou tendências linguísticas – tanto na literatura acadêmica quanto na imprensa e redes sociais – e mostrou, diante do contexto língua e gênero, a existência de certos padrões de frases e termos ainda muito repetidos mundo afora.
“Em todas elas, a mulher não é a dona e protagonista de sua própria vida. Ela é sempre colocada como um sujeito à mercê do homem”, afirma Camila Rocha Irmer, linguista da Babbel.
Camila Irmer chama a atenção para um exemplo simples: “Você já reparou que o termo mal-amada, por exemplo, é usado apenas no feminino? Como se somente a mulher necessitasse de afeto para ser feliz. O termo também pressupõe que uma vida amorosa mal sucedida interfere em tudo o que a mulher faz. Um homem mal-humorado, por sua vez, parece poder ter mil razões para tal. Isso porque ele é o dono do próprio estado emocional – e nunca um mal-amado”, pontua.
Para que a mudança no discurso aconteça, é necessário entender que existe um erro e refletir sobre o que o motiva. "Quando a pessoa entende e percebe o que fala, está pronto e pronta pra começar a mudar o que foi catagorizado de maneira errada e passa a buscar a maneira correta de falar e agir", orienta a especialista em neurociência.
“Até agora, a história humana foi predominantemente escrita por homens. E ela reflete muito o poder que os homens sempre tiveram. Essas frases surgiram em um tempo em que mulheres eram vistas como um instrumento do poder masculino e como seres inferiores a eles. O reconhecimento de que isso não é mais válido nos dias de hoje se faz necessário. Precisamos nos conscientizar de que a importância de um indivíduo não deve estar relacionada ao seu gênero. Um dos processos fundamentais nessa reavaliação de atitudes é a linguagem – uma ferramenta poderosa para essa transformação”, finaliza Irmer.
Frases machistas mais usadas no Brasil
Confira os termos mais utilizados pelos brasileiros, segundo a pesquisa “The patriarchal rooted in languages”.
- Como uma mulher tão bonita como você está solteira?
Obviamente, essa frase implica que apenas mulheres feias ficam solteiras – como se a opinião dos homens sobre estética feminina tivesse o poder de decidir seu status civil. Nem os próprios homens saem ganhando com esta frase, já que ela comunica que eles são tão fúteis ao ponto de basearem suas escolhas apenas em aparências.
- Mulher tem de se dar ao respeito
Esta afirmação significa que mulher que se preze tem de se portar e se vestir de uma certa maneira para ser respeitada por homens. Caso contrário, ela corre o risco de ser considerada vulgar e não digna de respeito – o que acaba justificando assédios e até estupros. “A frase é muito usada para tentar transferir a culpa de ações como essas, inclusive as criminosas, minimizando a responsabilidade de quem realmente cometeu a agressão. É bom lembrar que essa cultura de culpabilização da mulher é tão forte que também é reproduzida por mulheres”, diz Irmer.
- Comporte-se como uma mocinha
Esta frase geralmente é usada para ensinar "boas maneiras" a meninas. “Comportar-se como uma mocinha” significa ser obediente, quieta e graciosa, implicando que qualquer outro comportamento fora desse escopo não é adequado e deve ser condenado.
- Mal-amada
O termo, que é usado apenas para mulheres, pretende “descrever” a atitude de uma mulher usando uma suposta causa – falta de afeto masculino. Contudo, quando o mal-humorado é um homem, ele é o dono do próprio estado emocional/ atitude – e nunca um mal-amado. Já a expressão “mal-amada” sugere que um homem, ou a falta dele, teria o poder de moldar a personalidade feminina.
- Mulher de malandro
A expressão normaliza a violência doméstica ao subestimar um assunto sério. Usar o termo, que se refere à mulher que apanha mas não larga o marido, é colocar na vítima a responsabilidade pela violência sofrida, absolvendo o agressor. Chamar alguém de "mulher de malandro" é ignorar os motivos que a fazem ficar em uma relação abusiva: falta de condições econômicas para criar as crianças sozinha, falta de apoio das pessoas ao redor, medo de ser assassinada pelo marido, etc. Quando está presa em uma relação abusiva, muitas vezes nunca consegue se libertar porque o abusador a humilha e a diminui até aniquilar a força e a autoestima necessárias para que consigam sair da relação.