Professor diz que Bolsonaro dificulta combate a fake news
Em entrevista à DW Brasil, professor de Direito que estuda notícias falsas, afirma que a desinformação é um instrumento de poder
Na noite do último domingo (10), Bolsonaro compartilhou em suas redes sociais relatos distorcidos de uma conversa entre a repórter Constança Rezende, do jornal O Estado de S. Paulo, e uma pessoa não identificada. A postagem ainda conta com um áudio com trechos do diálogo.
Segundo escreveu Bolsonaro na publicação, a jornalista disse nessa conversa "querer arruinar a vida de Flávio Bolsonaro", senador pelo PSL e filho do presidente, bem como "buscar o impeachment do presidente Jair Bolsonaro". Os trechos audíveis do áudio, contudo, não correspondem com a descrição que o militar reformado faz das falas.
A Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji) e a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) divulgaram uma nota de repúdio à publicação do presidente.
Em entrevista à DW Brasil, Rais, que é advogado e coordenador do livro Fake News: a conexão entre a desinformação e o direito, destaca o poder das fake news e afirma que seu efeito é maior quando divulgadas por um presidente.
"Fake news são fruto de uma relação de poder. Se a informação é poder, a desinformação é muito mais", afirma.
Deutsche Welle: O que ocorre quando alguém num cargo como o de Bolsonaro propaga uma informação distorcida como a divulgada por ele neste domingo?
Diogo Rais: Neste caso, em que [a notícia falsa] pode ser enquadrada como calúnia, injúria ou difamação, tipos previstos no Código Penal, aplica-se a lei conforme o conteúdo. E, neste caso, a punição não é apenas para quem cria, mas também para quem divulga. Há uma diferença jurídica significativa entre o compartilhamento e a produção de fake news. E o impacto disso é muito maior quando ocorre com um presidente, que ajuda a definir o potencial ainda mais lesivo de uma notícia falsa. Mas, aqui, tem outra gravidade: há toda uma discussão sobre se a conta pessoal do presidente da República deveria ser distinta da profissional. E a resposta é não, porque o cargo é indissociável. Quem é presidente é presidente 24 horas por dia.
Quando se entra no Twitter de Jair Bolsonaro, por exemplo, fica claro que você não está em uma conta institucional como da Casa Civil, do Ministério da Saúde. A responsabilidade dele neste cargo exige mais cuidados que os adotados por outros cidadãos, porque ele representa o país - tanto internamente quanto externamente.
Um presidente tem vários assessores. E se o comentário em questão tiver sido feito por um deles?
Tudo o que é publicado nesta conta é de responsabilidade do presidente, já que ele usa a conta como pessoal ainda que manipulada por terceiros.
O Brasil deveria adotar leis contra fake news?
Pessoalmente, sou contra leis que proíbam e combatam fake news neste momento, porque a regulamentação de forma ampla e abstrata pode ser um veneno, e não um remédio. Hoje há 31 projetos tramitando sobre o tema na Câmara dos Deputados, que entram em dissonância direta com o princípio constitucional da liberdade de expressão. Isso não significa que o Estado não deva fazer nada, muito pelo contrário. Cabe ao poder público formular políticas públicas para melhor informar a população e, com isso, combater as fake news, e investir em educação digital em todos os níveis (fundamental, médio e universitário). Mas punir, criminalizar as fake news de forma simples, com dispositivos abstratos, é colocar toda a sociedade sob o crivo de verdade e mentira, que alguém vai controlar. O Estado seria este alguém, e isso é perigoso.
O que precisa ser feito é olhar para a indústria de fake news, e não para aquele senhor de idade que acreditou em uma história. Porque, no fundo, fake news é fruto de uma relação de poder. Se a informação é poder, a desinformação é muito mais, porque ela é capaz de fazer um indivíduo não acreditar na informação. As fake news envolvem diretamente uma relação de poder, seja este econômico, político e até social.
Essa questão da desinformação é uma calamidade mundial. Todos os países estão se preocupando com isso, as autoridades se engajando. A União Europeia, por exemplo, tem um conjunto de normas diretivas para que os Estados-membros se engajem no combate [às fake news]. E, no Brasil, o Estado está ajudando as fake news. Quando alguém em um cargo tão relevante como o de presidente, que deveria ser um exemplo a ser seguido, toma atitudes como estas [compartilha fake news], fica mais difícil a educação midiática e digital. Tanto Bolsonaro como Donald Trump estão fazendo um desserviço quando compartilham fake news. Essa prática mostra como estamos mergulhados no problema, a ponto de dois presidentes propagarem a desinformação. Mas, principalmente, mostra o quanto estamos longe da solução.
O grande desafio das fake news é que elas interferem na sua liberdade de escolha. Se eu souber como você pensa e manipular essa ideia, há uma grande chance de que você faça suas escolhas baseadas no que quero. As fake news atingem, assim, a vontade pessoal e coletiva das pessoas em níveis distintos, como a saúde (no caso dos pais que deixam de vacinar devido a notícias falsas sobre vacinas) ou das eleições. Os efeitos são nefastos em todos os ângulos, porque as fake news desorientam a sociedade.
Há alguma perspectiva de esse cenário melhorar?
Isso poderia ocorrer por meio do fortalecimento do usuário. Na Finlândia, houve todo um esforço para garantir a credibilidade da informação. As crianças passaram a fazer exercícios na escola e, depois, com os pais em casa. É um trabalho diário de checagem e rechecagem. Um estudo do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT) aponta que fake news têm 70% mais chance de serem disseminadas [viralizar] do que informações verdadeiras. E esta propagação se dá mais por seres humanos que por robôs, porque as pessoas buscam um viés de confirmação para suas ideias, para provarem que estavam certas. Também sou a favor da criação de autoridades multidisciplinares, com meios de fiscalização, controle e, principalmente, educação.