Bolsonaristas disseminam no Telegram teoria de fraude na urna
O teor das mensagens pede que os seguidores "não aceitem passivamente" o resultado da eleição e instiguem as Forças Armadas a atuar em caso
Grupos bolsonaristas no Telegram têm espalhado, sem provas, mensagens sobre um suposto processo de fraude eleitoral em curso para impedir a reeleição de Jair Bolsonaro (PL) no primeiro turno. Segundo especialistas em monitoramento de redes sociais, o movimento se assemelha ao episódio em que o então presidente americano, Donald Trump, acusou o Partido Democrata de manipular o resultado das urnas para eleger Joe Biden. Parte da retórica já é usada no Brasil por Bolsonaro e por integrantes do governo.
A narrativa envolve negar os resultados de pesquisas eleitorais e dizer que há um conluio do PT de Luiz Inácio Lula da Silva com o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) para eleger seus candidatos ao Palácio do Planalto e aos governos e Legislativos estaduais.
Levantamento feito a pedido do Estadão pelo Laboratório de Humanidades Digitais da Universidade Federal da Bahia (LABHD/UFBA), em parceria com a Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e o InternetLab, mostra que, nos últimos 90 dias, uma em cada quatro mensagens (26%) sobre eleições em grupos bolsonaristas no Telegram cita termos relacionados à fraude eleitoral - o principal assunto mencionado ao falar sobre o pleito no Brasil.
Ao todo foram 56,7 mil mensagens compartilhadas de janeiro a 20 de setembro deste ano nos 185 grupos e 524 canais (que funcionam como listas de transmissão) monitorados. Foram registradas menções a fraude em 164 grupos e 293 canais. Os dados exibem, ainda, viés de crescimento dos disparos desde junho até alcançar um pico diário em setembro. Em agosto, por exemplo, foram 7.892 mensagens e neste mês já são 5.734. Procurado, o Telegram não respondeu.
FORÇAS ARMADAS
O teor das mensagens pede que os seguidores "não aceitem passivamente" o resultado da eleição e instiguem as Forças Armadas a atuar em caso de derrota de Bolsonaro. Usuários afirmam que o atual presidente vai vencer Lula com mais de 60% dos votos válidos. Pesquisas eleitorais, no entanto, mostram que o petista está à frente, com possibilidade de ser eleito no primeiro turno.
"Não somos os seguidores de Trump. Eles que não se atrevam a roubar os votos do presidente Bolsonaro, que já está reeleito no primeiro turno", diz uma mensagem, em circulação em um grupo com mais de 60 mil membros no Telegram. O texto afirma que, se o presidente do TSE, Alexandre de Moraes, disser em rede nacional que Bolsonaro não saiu vencedor no dia 2 de outubro, ele terá de morar em Cuba.
No domingo passado, o presidente reverberou discurso semelhante. "Eu digo: se eu tiver menos de 60% dos votos, algo de anormal aconteceu no TSE, tendo em vista, obviamente, o 'Datapovo'", afirmou Bolsonaro, em Londres, durante visita ao funeral da rainha Elizabeth II. No dia seguinte, o ministro das Comunicações, Fábio Faria, contestou a credibilidade do Ipec (ex-Ibope) e disse que "a população vai cobrar o fechamento desse instituto".
ALERTA
A movimentação preocupa analistas. "Há uma tônica presente de construção da desconfiança do sistema eleitoral e a associação com uma fraude deliberada para retirar Bolsonaro do poder. Isso pode ser usado para mobilizar as pessoas a repetirem o Capitólio", disse Paulo Fonseca, doutor em Sociologia e pesquisador do LABHD/UFBA.
Na invasão à sede do Legislativo americano, em Washington, no dia 6 de janeiro de 2021, cinco pessoas morreram. A retórica de fraude, sem provas, perdura nos EUA e mantém o domínio de Trump sobre seu partido para eventual candidatura em 2024.
A antropóloga Isabela Kalil, pesquisadora do Observatório da Extrema Direita, disse que Bolsonaro segue a mesma cartilha. "Trump já dava sinais disso (discurso de fraude antes das eleições) e não foi uma surpresa o reforço. Bolsonaro faz o mesmo quando, por exemplo, convoca os embaixadores para uma reunião sobre as urnas eletrônicas." Ela citou três condições que podem viabilizar um processo agressivo contra o voto: a autorização do chefe de Estado, a atuação de forças de segurança e a disposição de grupos extremistas para se engajar nesses eventos, sendo esta última a mais imprevisível.