Bolsonaro usa 'tática de distração' com tanques e ataque a eleições, diz especialista em Forças Armadas
Para Vinicius de Carvalho, do King's College London, Bolsonaro faz 'barulho' para desviar a atenção de problemas fundamentais do país. Mas, para ele, 'tática' alimenta fissuras nas Forças Armadas que podem gerar 'aventuras' golpistas.
O desfile de veículos militares na Esplanada dos Ministérios, realizado no mesmo dia previsto para a votação da PEC do Voto Impresso no Congresso Nacional, é uma "tática de distração" de Jair Bolsonaro para mobilizar sua base eleitoral e retirar o foco dos principais problemas do país, avalia Vinicius Mariano de Carvalho, diretor do Brazil Institute da universidade King's College London, no Reino Unido.
Especialista em Defesa e Forças Armadas, Carvalho também é pesquisador do Centro de Estudos Estratégicos da Marinha brasileira, além de ter sido oficial técnico temporário no Exército Brasileiro.
Para ele, mais do que seguir uma estratégia de longo prazo, com um objetivo específico, Bolsonaro governa provocando "barulho" e direcionando a atenção da imprensa e das autoridades de um tema polêmico para o outro.
Com isso, seu governo é poupado de escrutínio sobre questões essenciais, como saúde, educação, redução da pobreza e gestão econômica.
"O que estamos vendo são explosões de ações que desviam a atenção daquilo que deve ser olhado. Em um momento, tudo é voltado para cloroquina, em outro momento, tudo é voltado para voto eletrônico. Acho que o que há por trás é uma tática de distração com esses tipos de ações", disse Carvalho em entrevista à BBC News Brasil.
"Se a PEC do Voto Impresso for derrubada, outra questão vai ser levantada para causar desconforto na condução do trato republicano e para mobilizar as forças que sustentam o presidente da República."
Na manhã desta terça (10/08), Bolsonaro assistiu à passagem de cerca de 30 veículos de guerra pela Esplanada dos Ministérios, em Brasília, e recebeu convite para participar de um exercício militar da Marinha em Formosa, Goiás.
O exercício militar ocorre desde 1988, mas o uso de um desfile de tanques para a entrega do convite é inusitado e foi visto por parlamentares como uma tentativa de intimidação do Congresso Nacional.
Para Vinicius de Carvalho, o episódio evidencia "a imaturidade democrática" do Brasil como um todo e das Forças Armadas em particular, ao reforçar a percepção de que Exército, Marinha e Aeronáutica são atores políticos.
"Levar adiante essa atividade, especialmente se não foi ordem do próprio presidente, mas sim uma iniciativa das Forças Armadas, acaba reafirmando o que tem sido dito, de que as Forças Armadas estão atuando politicamente", disse.
Segundo Carvalho, essa dúvida sobre o papel das Forças Armadas alimenta fissuras e quebras de hierarquia na instituição, que podem levar a "aventuras" golpistas.
"É bom lembrar que, em 1964, quem iniciou o golpe militar foi um general de três estrelas em Juiz de Fora. Ele pôs as tropas na rua e ativou o que ficou conhecido como o golpe", recorda. "Ou seja, o grande problema é quando essa estrutura Forças Armadas perde a coesão, quando essas fissuras se acentuam, fraturando uma instituição que depende fortemente de hierarquia."
Leia os principais trechos da entrevista:
BBC News Brasil - Qual o impacto político desse desfile de tanques pela Esplanada no dia previsto para a votação da PEC do Voto Impresso no Congresso?
Vinicius Mariano de Carvalho - O que nesse caso é importante dizer é que um ato como esse traz mais a percepção de que as Forças Armadas estão agindo politicamente, contradizendo o que dizem seus próprios chefes. Acho essa é a chave da questão aqui. Levar adiante essa atividade, especialmente se não foi ordem do próprio presidente, mas sim uma iniciativa das Forças Armadas, acaba reafirmando o que tem sido dito, de que as Forças Armadas estão atuando como ator político.
É muito difícil falar das Forças Armadas no singular, dizer que elas estão ou não com Bolsonaro. Não trataria no singular, dizendo que as Forças Armadas estão com o presidente, como uma unidade. Mas isso os traz para esse berço de definição de que são atores políticos. Isso é ruim para as Forças porque as distraem daquilo que fundamentalmente deveriam estar ocupadas e preocupadas, que é o pensamento estratégico, a defesa nacional e a consolidação de sua capacidade profissional de defender a nação.
BBC News Brasil- E quais os possíveis interesses de integrantes das Forças Armadas nessa atuação política?
Carvalho - Acho difícil responder a pergunta, porque estaria admitindo que as Forças Armadas são atores políticos. Se eu admito que há interesses, admito que são atores políticos e que não estão subordinadas aos Poderes da República. Forças Armadas não tem que ter interesses. Continuar perguntando isso é admitir que elas podem ter interesses. É importante começarmos a desconstruir isso e dizer se tem ou não, isso não interessa a República. Eles têm que cumprir o papel de se subordinar aos poderes da República. Se têm algum interesse específico, devem se dirigir ao seu ministro e pleitear.
BBC News Brasil - Há uma estratégia por parte do presidente Bolsonaro em questionar a legitimidade do sistema eletrônico eleitoral, manter esse desfile hoje e repetir frequentemente que só se submete ao poder do povo, desconsiderando as instituições?
Carvalho - Não se se há uma estratégia no sentido literal do termo, porque uma estratégia é um exercício meticuloso, de cuidado, de olhar os meios disponíveis para alcançar certos fins. O que estamos vendo são explosões de ações que desviam a atenção daquilo que deve ser olhado, do que é importante.
Em um momento tudo é voltado para cloroquina, em outro momento, tudo é voltado para voto eletrônico. Se isso é um capítulo que se fecha, então vai ser outra coisa. Acho que o que há por trás é uma tática de distração com esses tipos de ações que, na verdade, não são estrategicamente conectadas.
São ações para causar desconforto, para causar barulho em torno de uma questão. Acho que são decisões explosivas, táticas e não estratégias. Agora o foco é a PEC sendo votada sobre o voto eletrônico. Se isso for resolvido hoje, com o Congresso derrubando a proposta de voto impresso, outro evento ou questão deve ser levantada para causar esse movimento de desconforto na condução do trato republicano e para mobilizar as forças que sustentam o presidente da República.
BBC News Brasil - Nesse sentido, o desfile de tanques deve ser visto como demonstração de força ou como sinal de que o presidente está enfraquecido a ponto de ter que causar distração?
Carvalho - É uma boa pergunta. Todas as vezes que a gente tem que colocar tropas na rua para fazer paradas etc., é para mostrar uma coisa que não é óbvia. Isso pode ser um sinal negativo, pode ter efeito contrário. Se a ideia é dizer: 'veja, tenho as Forças Armadas do meu lado, vieram fazer um desfile no Palácio', se tem uma segunda intenção de querer coagir o Congresso ou o Supremo, ela acaba desconstruindo pontes.
O que o presidente não se deu conta é que essa tática de desfazer pontes acaba transformando o ambiente com poucos acessos para a saída. Todos esses atos diminuem as pontes necessárias para a execução de uma política nacional. Ao fazer isso, talvez o presidente pense que tem o apoio das Forças Armadas para qualquer circunstância, mas ao mesmo tempo ele está desfazendo muitas pontes.
Temos dar atenção ao dano que o presidente pode provocar às Forças Armadas frente à população brasileira, uma boa parte da população brasileira. Claro que há muitos apoiadores do presidente que acham que as Forças Armadas estão aí para isso, para serem atores políticos. Mas não é toda a população brasileira e os parceiros internacionais que veem da mesma forma.
BBC News Brasil - Há uma pergunta até agora sem resposta sobre até que ponto vai o apoio das Forças Armadas ao governo Bolsonaro. Parcela das Forças Armadas está disposta a apoiar uma eventual tentativa de golpe?
Carvalho - É uma pergunta de um milhão de dólares. O que eu digo é: tudo isso provoca fissuras dentro da estrutura hierárquica das Forças Armadas. As Forças Armadas são uma instituição que depende profundamente de coesão e de disciplina. As Forças subordinadas têm que reconhecer a autoridade no seu chefe, têm que ser coesas e responder coesamente a esse modo hierárquico.
Cultivar a dúvida, como essa que você tem, que jornalistas e diverso brasileiros têm (sobre se as Forças Armadas encampariam algum tipo de golpe), ela também alimenta a dúvida dentro da própria estrutura das Forças Armadas, criando o que eu chamo de fissuras, que podem se transformar em fraturas na coesão. E isso pode conduzir a insubordinações, quebras de hierarquias e, consequentemente, a arroubos aventureiros de um ou outro grupo.
Não sei se estamos perto ou longe disso. Não sei até que ponto a gente pode dizer que há um risco iminente de isso acontecer, mas precisamos ser cuidadosos nos danos que tudo isso têm causado ao edifício ou estrutura chamada Forças Armadas. É bom lembrar que, em 1964, quem iniciou o golpe foi um general de três estrelas em Juiz de Fora. Ele pôs as tropas na rua e ativou o que ficou conhecido como o golpe. Ou seja, um general de três estrelas.
Tínhamos um alto comando de generais de quatro estrelas e não começou de lá. Houve uma quebra da coesão e, em seguida, muitos se agregaram a ele e muitos generais quatro estrelas deram apoio. Alguns não e foram retirados de lá, foram removidos. O grande problema é quando esse edifício perde a coesão, quando essas fissuras se acentuam, fraturando uma instituição que depende de coesão e de hierarquia.
BBC News Brasil - O governo Bolsonaro alimenta essas fissuras?
Carvalho - A situação política do Brasil atual, para a qual Bolsonaro é fator fundamental, como também o Congresso, a oposição e o Supremo, eles têm participado deste momento complexo da política nacional, ajudando com que fissuras aconteçam dentro da estrutura das Forças Armadas.
BBC News Brasil - Mas qual o papel ou o peso nesse processo de falas do presidente Bolsonaro sobre ter as Forças Armadas ao seu lado e obedecer apenas ao povo, desconsiderando as instituições?
Carvalho - Essas declarações reforçam uma imaturidade nacional como um todo. Votamos num presidente como se ele fosse nosso grande líder, rei, acima do bem e do mal, que tudo vai dar certo, que ele é o messias, o salvador. Nossa formação democrática nos faz esquecer que nós também votamos no Parlamento. Eles são os representantes do povo. Eles não entraram lá por graça do Espírito Santo, mas por voto direto.
Então, essa imaturidade democrática nacional, de atribuir a uma só pessoa o papel de salvador, facilita muito esses arroubos messiânicos, de que eu sou o grande líder, o chefe das Forças Armadas, o salvador. Há uma retroalimentação por falta de maturidade democrática. Esquecemos que votamos em deputados e senadores e que eles são nossa voz no governo. O chefe do Executivo não precisa consultar o povo, porque o povo está na sala ao lado, no Congresso Nacional, essa sim é a casa do povo. O Planalto executa essa vontade do povo.
BBC News Brasil - Qual o nível de maturidade democrática dentro da estrutura da Forças Armadas? Houve uma sedimentação da importância da democracia entre os militares desde a redemocratização?
Carvalho - As Forças Armadas são parte do Brasil. Elas replicam dentro da sua estrutura os mesmos dilemas e percepções que o país tem de si mesmo, seja de incompreensão democrática ou incompreensão social. Elas têm que entender que o papel de Forças Armadas em democracias modernas é um papel de subordinação ao poder civil do país. Esse poder civil executa o que é garantido e exigido pela Constituição ao mesmo tempo em que presta contas ao Congresso Nacional. As Forças Armadas não são forças do Executivo, são uma instituição de defesa nacional e, portanto, subordinada aos três Poderes da República.
BBC News Brasil - Mas esse papel está claro dentro das Forças Armadas que temos hoje?
Carvalho - Não está claro, não está claro.
BBC News Brasil - É razoável o temor de que as ações do presidente, de levar à cabo esse desfile, questionar o voto eletrônico e se afirmar como chefe supremo das Forças Armadas podem levar a uma tentativa de golpe no ano que vem?
Carvalho - Eu não vou dizer que sim ou não, porque tem aquele velho ditado no Brasil de que lá até o passado pode mudar. Há muita coisa que pode acontecer até o ano que vem para podermos dizer que vai acontecer um golpe ou para dizer que não vai. O que eu repito é que nós precisamos realmente reforçar as instituições imediatamente, inclusive frente à população civil, para que compreenda que não serão soluções autoritárias, fora da regularidade democrática, que farão com que o Brasil melhore. Precisamos reforçar que não há solução mágica ou um líder que vai resolver os problemas da nação. Numa república democrática moderna, ninguém tem que perguntar o que Forças Armadas pensam de alguma coisa.