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Eventual prisão de Bolsonaro não depende de indiciamento, mas das evidências, diz professor de Direito

Para especialista, eventual prisão de ex-presidente independe de indiciamento depende somente das evidências coletadas ao longo da investigação.

22 nov 2024 - 06h35
(atualizado às 07h45)
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Foto: Getty Images / BBC News Brasil

A Polícia Federal (PF) indiciou Jair Bolsonaro (PL) e outras 36 pessoas por suspeita de uma tentativa de golpe de Estado para manter o ex-presidente no poder após as eleições de 2022, vencidas pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT).

Embora com grande repercussão, o indiciamento é um ato simbólico e o processo deve andar com cautela, diz o advogado João Pedro Pádua, professor de direito da Universidade Federal Fluminense (UFF).

"Bolsonaro pode ser preso, mas não por ser indiciado. Sua prisão dependeria das evidências coletadas ao longo de dois anos de investigações, não do ato de indiciamento em si", afirma.

Entre os indiciados também estão o general Walter Braga Netto, que foi candidato a vice-presidente na chapa derrotada com Bolsonaro em 2022, e o general Augusto Heleno, que chefiou o Gabinete de Segurança Institucional (GSI) durante o governo de Bolsonaro.

Pádua também comenta as críticas ao inquérito conduzido pelo Supremo Tribunal Federal (STF) e o ministro Alexandre de Moraes, que supervisiona o inquérito, apesar de ser uma potencial vítima.

Para eles, um magistrado diretamente afetado por possíveis crimes também atue como supervisor do inquérito não é o ideal.

"Não há elementos para afirmar que o ministro fez alguma coisa para encaminhar investigações. Mas o argumento da parcialidade é ponderável", argumenta.

Leia abaixo a entrevista.

BBC News Brasil - Qual a diferença entre abolição violenta do Estado Democrático de Direito e tentativa de golpe de Estado, crimes pelos quais Bolsonaro foi indiciado?

João Pedro Pádua - A primeira impressão que tenho e que outras pessoas da área têm é que esses crimes são excludentes entre si — ou é um, ou outro.

Os dois são, na verdade, criminalizações de tentativas. O que é, de certa forma, óbvio. Isso até foi uma brincadeira do ministro Alexandre de Moraes em plenário, que se o crime tentado fosse consumado, não estaríamos punindo.

No primeiro, a ideia é tentar acabar com as instituições do estado democrático de direito. Não precisa ser necessariamente tomar o poder. Por exemplo, o fato de tentar destituir um tribunal, como o Tribunal Superior Eleitoral, não seria necessariamente uma tentativa de golpe de Estado. Não está tomando o poder para si, mas impede o funcionamento de uma instituição essencial para o Estado Democrático de Direito.

Já o golpe de Estado é direcionado ao governo. O artigo 359 M do Código Penal, um crime novo, fala em tentar depor o governo legitimamente constituído.

Algumas instituições, notadamente o Poder Judiciário, não compõem o governo. Quando criada, a lei considerava golpes de estado que infelizmente foram relativamente comuns na história do Brasil — tentar especificamente derrubar o Poder Executivo, a chefia do Poder Executivo ou, de alguma maneira, desestabilizar o governo.

Então o golpe de Estado tem mais a ver com destituir governo, como a lei fala; enquanto a tentativa de abolição violenta o estado democrático pode ser qualquer instituição que seja essencial ao regime democrático.

BBC News Brasil - Qual diferença dessa tipificação nesta situação específica?

Pádua - Quando alguém tem uma conduta que pode ser enquadrada em mais de um tipo penal, existe um conjunto de critérios pelos quais decidimos qual dos crimes é o aplicável.

Um exemplo é se pratico um crime patrimonial com violência contra uma pessoa e subtraio patrimônio de alguém mediante ao uso de arma, estaria praticando furto e roubo. Mas respondo por um só. Qual é o critério que entra em jogo? Chamamos de critério da especialidade. O roubo tem todos os elementos que têm no furto e mais a violência.

Nesta investigação, o critério provavelmente utilizado é o da consunção, que seria qual é o objetivo final dos agentes. Eles querem de fato dar um golpe de Estado ou querem abolir o estado democrático de direito? O que determina qual que eles querem no final é o que prevalece.

Eu diria que, diante das evidências que foram aparecendo, principalmente pela mídia, e assumindo que tudo que a Polícia Federal está dizendo é verdadeiro, o caso seria enquadrado como crime de golpe de Estado, inclusive porque a pena é maior.

João Pedro Pádua, advogado e professor da UFF
João Pedro Pádua, advogado e professor da UFF
Foto: Reprodução/LinkedIn / BBC News Brasil

BBC News Brasil - Qual será o impacto deste indiciamento sobre Bolsonaro?

Pádua - O indiciamento no direito brasileiro é algo muito menos relevante do que costumamos pensar. Provavelmente damos tanta importância porque, nos Estados Unidos, quando alguém é acusado formalmente de um crime, se usa o ato jurídico do indictment.

Mas o indiciamento do direito brasileiro é simplesmente um ato pelo qual a polícia ou quem está investigando o fato diz que, na visão da deles, esse conjunto de pessoas são os autores do provável crime.

Na prática, ele tem um efeito muito pequeno. As pessoas podem ser acusadas criminalmente sem ser indiciadas, podem ser indiciadas e não serem acusadas criminalmente. O indiciamento não determina praticamente nada. É um ato muito mais simbólico.

BBC News Brasil - O ex-presidente Jair Bolsonaro pode ser preso após o indiciamento?

Pádua - Pode, mas não porque ele foi indiciado. Ele poderia há muito tempo. Se ele for preso, não será por conta do indiciamento em si, mas pelas evidências que acompanham esse indiciamento que foram coletadas ao longo de dois anos de investigação.

O indiciamento é o de menos. É pouco estratégico que a PF solte um relatório com a lista de indiciados de hoje e o ex-presidente Jair Bolsonaro seja preso amanhã. Já houve prisões antes da divulgação desse relatório. O normal é realizar o ato coercitivo, a prisão, a busca, o interrogatório, e depois divulgar ao público o porquê.

A prisão do ex-presidente Lula é um exemplo do porquê. Como não foi uma prisão preventiva, mas decorrente de uma condenação, houve um mar de gente nas ruas. São coisas que não se anuncia.

Provavelmente apoiadores do presidente Jair Bolsonaro estão pensando em que atos eles vão fazer para protegê-lo. Por isso, as operações primeiro fazem e depois justificam para evitar essa comoção popular.

BBC News Brasil - Há críticas ao tamanho e duração deste inquérito, que abarca muitas questões, desde o 8 de janeiro ao atentado a bomba da última semana. Na sua visão, elas fazem sentido?

Pádua - A grande questão a ser enfrentada é a conexão entre, de um lado, os atos que parecem bem documentados de preparação de um possível conjunto de atos que constituiria um golpe de Estado por parte desse grupo em volta do ex-presidente Jair Bolsonaro; e, de outro lado, a ação violenta no dia 8 de janeiro 2023.

Essa conexão é mais difícil de estabelecer naturalmente. A falta desse elo me parece insuficiente para estabelecer uma conexão. Como nossa ordem constitucional presume inocência, é tarefa da acusação demonstrar que não houve acaso — e não tarefa da defesa tentar explicar que um acaso parece pouco provável.

O ex-presidente do Brasil Jair Bolsonaro em protesto contra o Supremo Tribunal Federal em 7 de setembro deste ano
O ex-presidente do Brasil Jair Bolsonaro em protesto contra o Supremo Tribunal Federal em 7 de setembro deste ano
Foto: Reuters / BBC News Brasil

BBC News Brasil - A defesa do Bolsonaro pontua a questão de Alexandre de Moraes ser vítima e juiz nesta investigação. Você enxerga isso como um problema?

Pádua - A crítica de que o ministro Alexandre Moraes é o presidente desse inquérito, do ponto de vista institucional, me parece pertinente. Mesmo que ele tenha feito atos perfeitamente legítimos do ponto de vista de uma autoridade judicial supervisionando esse inquérito.

O fato de o ministro Alexandre de Moraes não apenas ser um membro de um tribunal que seria alvo dos potenciais golpistas, mas, como pessoa física, seria um alvo direto, coloca em dificuldade a posição dele para supervisionar esse inquérito de forma imparcial.

Do ponto de institucional, não é bom para o sistema judiciário que uma pessoa que é diretamente vítima das ações que estão sendo investigadas também supervisionar as investigações.

O Supremo Tribunal Federal já indicou que não concorda com a minha avaliação. Mas a Corte provavelmente vai se debruçar novamente sobre essa questão quando a denúncia for oferecida pelo Ministério Público, aí sim uma acusação formal, equivalente ao indictment americano. Ela deve ocorrer no próximo ano.

Não há elementos para afirmar que o ministro fez alguma coisa para encaminhar investigações. Mas o argumento da parcialidade é ponderável.

BBC News Brasil - Quais os riscos para o Supremo?

Pádua - Para a investigação em si e para o próprio Supremo, não há risco nenhum.

O STF é o tribunal mais alto da federação e o que aconteceu com a Lava Jato dificilmente se repetirá com a Corte. O que havia de peculiar na Lava Jato era que as decisões tomadas em primeira instância eram raramente revistas, mesmo com três possibilidades de revisão — segunda instância, STJ e STF.

No caso do Supremo, não há possibilidade de revisão. Seus atos são finais. Do ponto de vista do processo judicial, as oportunidades de a defesa explorar eventuais falhas na condução da investigação ou do processo são muito pequenas.

Exceto se o próprio Supremo passar por uma mudança — seja de composição, de correlação de forças ou de percepção — e comece a mudar de posição. Por enquanto, o tribunal parece bastante adepto à investigação, validando sistematicamente os atos relacionados a ela, com pouquíssimas dissidências.

Minha preocupação é que, ao abdicar um pouco de seu papel institucional em prol de defender posições moralmente boas, como a defesa da democracia ou o Estado de Direito, o Supremo possa, com o tempo, contribuir para um enfraquecimento das instituições.

No Brasil, essas já são instituições historicamente frágeis, com ministros do STF cassados em um passado não tão distante. Por isso, a condução institucional é algo a ser observado com atenção.

O juiz do Supremo Tribunal Federal Alexandre de Moraes
O juiz do Supremo Tribunal Federal Alexandre de Moraes
Foto: REUTERS/Adriano Machado/Foto de arquivo / BBC News Brasil

BBC News Brasil - As revelações desta semana colocaram o ex-ministro da Casa Civil Braga Netto como personagem central na articulação de um plano de golpe de Estado. Por que as investigações não levaram à prisão dele, como a de outras seis pessoas?

Pádua - Prisão preventiva no direito brasileiro é um problema. A regulação legal da prisão preventiva supõe um modelo que raramente se observa empiricamente.

É difícil explicar quais são os critérios que de fato norteiam prisões preventivas específicas porque quase todas, se a lei fosse levada à risca, não se justificariam.

A prisão preventiva no direito brasileiro, devido à presunção de inocência e pelas limitações legais para sua aplicação, só poderia acontecer quando alguém interferisse na descoberta de provas e no funcionamento do processo; ou se alguém desse indicação de fuga.

A ideia é que essa prisão não inicie uma punição, porque o investigado ainda tem presunção de inocência. Neste caso, o processo ainda nem começou na fase judicial, ainda estamos investigação preliminar.

No entanto, grande parte das prisões preventivas, especialmente em investigações importantes, são antecipações de pena.

O judiciário acredita que está claro que um determinado grupo de pessoas praticou um crime grave. E os critérios para decretar a prisão preventiva acabam sendo difíceis de explicar.

Além disso, em organizações criminosas, paradoxalmente, quem é mais importante fica longe da execução do fato. Normalmente, é mais difícil conseguir prova contra essas pessoas.

Já vimos isso na Operação Lava Jato, Mensalão e em outras grandes investigações. Essa situação pode justificar a discrepância entre a importância dos personagens no enredo acusatório e o fato delas terem ou não sido presas.

BBC News Brasil - Outro ponto é a delação do Mauro Cid, que pôde ser anulada. Quais são os problemas com essa colaboração?

Pádua - Quando um acusado faz um acordo de colaboração premiada, ele assume — em troca dos benefícios pena reduzida, melhores formas de cumprir pena ou às vezes revogação das prisões preventivas e outras medidas cautelares — o dever de comparecer sempre que for chamado, falar sempre a verdade e apresentar elementos que auxiliem a investigação.

Não é só algo passivo, ele tem que participar. É diferente de uma testemunha, que tem obrigação de dizer verdade e responder a todas as perguntas, mas não tem obrigação de colaborar. O delator é um parceiro da acusação.

Sob esse ponto de vista, faz sentido que o colaborador não possa assumir uma postura belicosa e de conflito com quem ele está colaborando. No entanto, o colaborador não tem obrigação de dizer o que quem está tomando o depoimento quer ouvir.

Acende uma luz amarela quando alguém diz que o colaborador está ameaçado por omissão. Omissão significa que ele não fez o que ele tinha que fazer.

Se o que ele não fez era pedir um extrato de uma conta no exterior e ele não pediu, tudo bem. Mas dizer que ele não falou algo que os investigadores sabiam que era verdade é complicado. O colaborador não é obrigado a dizer o que a acusação quer ouvir.

Este, inclusive, foi um dos grandes problemas apontados nas colaborações da Lava Jato e que tem mobilizado, entre outros motivos, a anulação de várias das provas e das colaborações feitas naquela época.

Não sei se é esse o caso do Mauro Cid. Mas a colaboração dele já teve problemas o suficiente para levantar uma luz amarela. O motivo pelo qual ele teve a sua colaboração ameaçada, primeiramente, e chegou a ser preso foi porque ele mandou um áudio em que dizia que a Polícia Federal estava forçando-o a dizer alguma coisa.

A colaboração é sempre uma coisa muito delicada. Estamos num terreno ético ruim e em um terreno jurídico muito perigoso.

Mauro Cid, que foi assistente de Bolsonaro, deixa o prédio do Supremo Tribunal Federal após prestar depoimento sobre a suposta conspiração para matar Luiz Inácio Lula da Silva em 2022
Mauro Cid, que foi assistente de Bolsonaro, deixa o prédio do Supremo Tribunal Federal após prestar depoimento sobre a suposta conspiração para matar Luiz Inácio Lula da Silva em 2022
Foto: Felipe Sampaio/STF / BBC News Brasil

BBC News Brasil - Os fatos dessa semana — o plano de matar o Lula e o indiciamento do Bolsonaro — ocorrem num momento em que se tenta aprovar uma anistia no Congresso. Qual é o impacto desses acontecimentos nessa tentativa?

Pádua - Do ponto de vista jurídico, uma coisa não depende da outra. A anistia é um ato do Congresso Nacional, uma lei. É importante esclarecer que a anistia não é um perdão individual, como o indulto, que é competência do presidente da República.

O que a anistia faz é descriminalizar um conjunto de fatos. A lei de anistia mais famosa no Brasil, por exemplo, é a dos eventos da ditadura militar de 1964, que promoveu anistia ampla, geral e irrestrita para atos cometidos tanto contra quanto pelo regime.

Agora, o clima político obviamente fica muito ruim para aprovar qualquer anistia. Ainda há outra questão: como será redigida a lei? Como ela trata de um conjunto de ações, é essencial definir quais eventos específicos serão incluídos ou excluídos. Por exemplo, poderia haver uma anistia que cubra apenas os eventos de 8 de janeiro, mas não o planejamento ou atos anteriores e posteriores.

Pelo que tenho ouvido, essas movimentações recentes, como o plano contra Lula e o indiciamento de Bolsonaro, podem ter dificultado ainda mais as articulações em torno da anistia.

BBC News Brasil - Quais são os próximos passos do inquérito?

Pádua - O inquérito, pelo que entendi, já está praticamente encerrado. Agora, os próximos passos ficam a cargo do Ministério Público Federal, que receberá os atos do inquérito para elaborar a denúncia formal — o documento pelo qual o Estado, representado pelo MPF, acusa um conjunto de pessoas por determinados crimes.

A previsão, segundo li na imprensa especializada, é que a denúncia seja apresentada antes do Carnaval do próximo ano, dada a complexidade dos fatos.

Durante a elaboração da denúncia, é comum surgir a necessidade de verificar ou complementar algo — um depoimento esquecido, uma nova análise de transcrições. Por isso, a apresentação pode levar um tempo maior.

Além disso, ninguém quer arriscar apresentar uma denúncia mal formulada, o que abriria brechas para a defesa explorar falhas ou inconsistências.

Minha aposta é que, após esta semana intensa, teremos um período de relativa calmaria enquanto o MPF trabalha na denúncia. Quando ela for apresentada, virá provavelmente acompanhada de pedidos de prisão, o que gerará uma nova onda de repercussão.

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