'Cabo de guerra' entre Lula e Lira é fruto do 'presidencialismo do descaso' criado por Bolsonaro, diz professor da USP
Autor de novo livro sobre impeachment de Dilma, o cientista político Fernando Limongi diz que a petista enterrou o presidencialismo de coalizão como o país o conhecia e que Bolsonaro criou um modelo que deixou com a Câmara a administração de recursos que historicamente cabiam ao Executivo.
Ao menos em parte, o impasse em que, nesta semana, se viram mergulhados o governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e a Câmara dos Deputados comandada por Arthur Lira (PP-AL) — com o Executivo ameaçado de desconfiguração por uma derrota de votação de medida provisória no Legislativo — começou há mais de uma década, ainda no primeiro governo de Dilma Rousseff (PT).
À época, a então presidente resolveu apostar na pauta anticorrupção como marca de sua gestão. Essa decisão, de acordo com o cientista político Fernando Limongi, da Universidade de São Paulo e da Fundação Getúlio Vargas, levou a uma espiral de resultados que custariam a Dilma não só o próprio mandato, mas levariam a um processo que enterrou o presidencialismo de coalizão como o país o conhecera até então.
Em seu lugar, veio o que Limongi batiza de "presidencialismo do descaso", fundado por Jair Bolsonaro (PL) que teria legado à Câmara — e particularmente a Lira — a administração de recursos que historicamente cabiam ao Executivo. Com isso, estabeleceu um "cabo de guerra" entre Lira, que tenta preservar o protagonismo da era Bolsonaro, e Lula, que quer retomar o poder que experimentou nos dois primeiros mandatos.
Possivelmente, no entanto, a situação do país — e de seus políticos — teria sido diferente se Dilma não tivesse apostado muitas fichas na Operação Lava Jato.
No primeiro mandato, embora fosse popular, Dilma buscava uma assinatura política própria e, em oposição ao PT, cujos quadros históricos enfrentavam o julgamento do Mensalão no Supremo Tribunal Federal, apostou no saneamento dos focos de corrupção da Petrobras como legado.
Ex-ministra de Minas e Energia, Dilma via na petroleira a chave para seu programa de reindustrialização do Brasil, que seria financiado a partir do lucro obtido pela exploração do pré-sal. A empresa, porém, coalhada de indicações políticas, patinava em entregar os resultados que a presidente esperava.
Foi por isso que, na interpretação de Limongi, Dilma alimentou a Operação Lava-Jato, uma criatura da qual ela perdeu o controle, que se voltou contra a própria presidente e seu padrinho, Lula, e que foi central para que ela também perdesse a base parlamentar sólida de que dispunha no Congresso, herdada do antecessor.
Ao investir no combate à corrupção, Dilma criou as condições necessárias para o seu próprio impeachment, argumenta Limongi, em seu recém lançado Operação Impeachment - Dilma Rousseff e o Brasil da Lava Jato (Editora Todavia).
"Para salvar a embarcação, o sistema político resolveu lançar a carga (Dilma) ao mar", diz Limongi.
Usando centenas de reportagens dos jornais Folha de S. Paulo, O Estado de São Paulo, O Globo e Valor Econômico, Limongi reconstrói a história dos anos entre o começo do primeiro mandato de Dilma até o desfecho do impedimento da então presidente.
Ele tenta demonstrar que não foram a crise econômica, as pedaladas fiscais, os protestos de 2013 ou a queda de popularidade os fatores determinantes para a derrubada da presidente. E que as repercussões de suas apostas e de sua saída, em agosto de 2016, ainda não deixaram de se desdobrar.
Leia a seguir os principais trechos da entrevista, concedida por videochamada e editada por concisão e clareza.
BBC News Brasil - O PT diz que Dilma sofreu um golpe, interpretação que parte da ciência política tem chancelado. O senhor diz que "impeachments não são golpe". O impeachment de Dilma é um golpe ou não?
Fernando Limongi - Do ponto de vista de uma definição clássica de golpe, não é golpe, é impeachment.
Impeachment está previsto na Constituição. É um recurso de última instância que deve ser usado em casos excepcionais, e o caso contra Dilma não era um que pedisse isso. Tanto que, é interessante notar, eu não faço menção no livro, em nenhum momento, à justificativa dada para fazer o impeachment, que são as pedaladas fiscais. Porque não foram as pedaladas que levaram ao impeachment. E quem defende que precisava ter o impeachment justifica buscando questões de políticas públicas, má gestão da economia ou coisa desse tipo. Mas isso não pode ser motivo de impedimento. E além do que, você obtém essas correções por outros meios muito menos traumáticos. Então não é um golpe, mas é um processo traumático e desnecessário.
BBC News Brasil - O senhor argumenta no livro que o PSDB estaria disposto a radicalizar, a um golpe…
Limongi - Não é um golpe, mas é ali, é na margem. E o PSDB está disposto (naquele momento) a ir às últimas consequências para tirar o PT do poder, e puxando a corda ao limite, ou mesmo ultrapassando o limite, como quando vai ao TSE (questionar a lisura das urnas após a derrota em 2014). (No segundo mandato de Dilma) o PSDB vai jogando o tempo inteiro com duas alternativas: o impeachment e a cassação da chapa (Dilma-Temer).
Então o PSDB, de uma forma ou de outra, quer abreviar o mandato e antecipar a alternância no poder, está desrespeitando as regras (democráticas). Mas meu argumento é que o PSDB, mesmo sendo extremado, radical, inconsequente e irresponsável, ele seria incapaz de derrubar a Dilma sozinho. O PSDB não tinha força para tanto, não tinha os votos para tanto. A oposição não derruba, não é capaz de fazer um impeachment. Era preciso um outro elemento aqui para explicar o que aconteceu.
BBC News Brasil - E esse outro elemento foi o rompimento entre Dilma e sua base parlamentar por causa da prioridade que ela deu à pauta anticorrupção?
Limongi - É isso. Ela faz do combate à corrupção uma das suas bandeiras. É uma tentativa dela de liderar esse processo, mas ela perde o controle, o gênio sai da garrafa. Ela monta e insufla a Lava Jato, deixa a Lava Jato se constituir (no período, ela propõe a lei da delação premiada e outros recursos que foram usados pela Lava Jato), percebendo que essa é uma agenda importante para a sociedade brasileira, que está mobilizando a sociedade brasileira, porque teve o julgamento do mensalão (em 2012), teve (as manifestações populares de) 2013, então essa questão está posta.
E é uma batata quente que o PT e sua coalizão estão fazendo de conta que não existe, querem pôr debaixo do tapete. E a Dilma decide que não. E eu acho que não era um plano originalmente dela. É uma briga que ela tem com algumas pessoas dentro do PT em relação a uma política específica, que é a Petrobras e como fazer a Petrobras funcionar. Quando ela tenta fazer a Petrobrás funcionar, ela põe a mão no vespeiro, briga com gente graúda dentro do PT, briga com a Construindo um novo Brasil, que é a tendência mais forte do PT, que tinha mantido Sérgio Gabrielli como presidente da Petrobras por todo aquele período.
Ao fazer essa modificação e trazer a Graça Foster para a presidência e fazer um saneamento da Petrobras (com demissão dos diretores indicados pelos partidos aliados) para ver se a Petrobras podia ser a locomotiva do processo de industrialização brasileiro que ela tinha em mente, ela mexe nesse grupo e nos interesses que estão rodando ali com a geração de recursos ilícitos dentro da Petrobrás.
E aí ela faz disso a sua bandeira política, ou tenta fazer, para se contrapor a esse grupo. E esse conflito vai se estender no tempo. A ruptura para valer com o PMDB e com o (então presidente da Câmara) Eduardo Cunha se dá só (mais tarde) quando Cunha é denunciado pela Lava Jato e passa a ser processado ou citado no Supremo Tribunal Federal. Aí o Cunha passa para a oposição e começa a liderar o processo de impeachment da presidente Dilma.
BBC News Brasil - O PSDB surge no processo de redemocratização do Brasil e é o segundo partido com maior sucesso eleitoral na presidência na democracia. Por que, de repente, decide romper com as regras do jogo democrático?
Limongi - É muito difícil de entender. A única explicação que eu tenho, e que eu sugiro no livro, é que o (atual deputado federal) Aécio (Neves) está, em verdade, inebriado com o sucesso final (em 2014), depois de ter passado a campanha toda lá embaixo (nas intenções de voto para a presidência), ele chega a quase desistir em favor da Marina (Silva), ia sair como derrotado e de repente dá um sprint fabuloso (Aécio teve 8 pontos percentuais nas urnas a mais do que indicavam as pesquisas da véspera e foi ao segundo turno).
Ali criou um sonho na cabeça dele: 'Se a campanha tivesse mais dois, três dias, eu teria ganho.' Isso é um equívoco digno de político inexperiente, porque sempre no final da campanha há algum rearranjo, pode acontecer um sprint assim. E teve um certo movimento de rua ali. No final da campanha dele, gente que tinha ido às ruas em 2013, como o Vem pra Rua, o MBL, esse pessoal também vai para rua no segundo turno de 2014 e dá esse caráter, digamos, de movimento social, à campanha do PSDB no final.
Então o PSDB vive um sonho de que o partido poderia se transformar num partido de massa e que poderia combater e vencer o PT nas ruas e vencer o PT nas ruas. Tem vários projetos que são ali acalentados, o (José) Serra delira de formar umas caravanas, e de fazer vídeos com o Fernando Henrique. Estavam delirando, como mostra aquela frase do Antonio Imbassahy, um líder baiano do PSDB, que fala: 'é como se a gente tivesse ganho a Copa do Mundo e tivesse entrando no estádio'. Então é assim, os caras perderam o pé no chão de um lado.
De outro lado, a quarta derrota seguida à presidência faz com que o PSDB comece a questionar suas estratégias ou que os derrotados, a direita como um todo, passe a questionar a própria liderança do PSDB sobre a direita.
Então, por exemplo, o Bolsonaro já põe a cara de fora e diz 'Eu sou candidato na próxima eleição'. E vem com esse papo de que o PSDB é muito mole, muito parlamentar e que para vencer o PT precisa usar dos mesmos meios que o PT usa, e que o PT é um partido de gente descompromissada com a moral e que faz qualquer nota para ganhar eleição. Então nós também precisamos fazer isso. Então, o PSDB está sendo pressionado pela direita e o Aécio vê nisso a possibilidade dele, na verdade, ser o líder desse movimento e instrumentalizar essa pressão para vencer a concorrência com o Geraldo Alckmin, que, pelas regras não escritas do partido, seria o candidato (à presidência) em 2018. Então ele embarca nessa radicalização e o partido se divide entre os que entram com o Aécio e os que tentam chamar o partido à razão.
BBC News Brasil - Outro ponto crítico na história, do lado da esquerda, é por que a Dilma, que era extremamente popular quando decide abraçar a pauta anticorrupção, toma esse caminho?
Limongi - Evitei abordar isso no livro até porque não parecia uma coisa muito estabelecida, mas a pessoa forte na orientação da Dilma e que definiu essa estratégia dela foi o (marqueteiro) João Santana, porque ela começa a subir de popularidade quando faz aquela faxina ministerial no primeiro ano de governo (em que demite uma série de ministros acusados de malfeitos nos primeiros meses da gestão). Então aquilo vai dando muita repercussão. O João Santana está fazendo pesquisa de opinião pública e está vendo que aquilo está pegando bem. Aí vem o julgamento do mensalão (em 2012) e esse passa a ser o grande ponto negativo do PT, ao qual o PT não sabe como reagir.
Nesse meio tempo, a Dilma entra em conflito com o PT na Petrobras. Ali, ela não queria moralizar, mas queria tornar a empresa eficiente. Ela percebe que os navios-sonda não estão saindo, que a exploração do pré-sal não vai se concretizar, daí coloca a Graça Foster, tira os diretores políticos para tentar fazer funcionar. Mas mesmo que desse certo, seria uma medida de muito longo prazo, ela não veria resultado imediato, então ela precisava de uma marca, porque apesar da popularidade, até então ela não tinha uma bandeira.
Então ela acaba adotando esse projeto (do combate à corrupção), que é um projeto tolo, é um projeto contraproducente. É uma bandeira que necessariamente vai gerar problema de popularidade e de apoio para ela. O governo não pode dizer que ele vai acabar com a corrupção porque (se há) a corrupção, (ela) é o governo. Não adiantava a Dilma dizer que corrupção existia desde 1500, as pessoas não querem saber, (no fim) ela seria a responsável final. Aí é o erro do João Santana, porque ele cria uma estratégia que não tinha como dar certo.
BBC News Brasil - E historicamente não deu certo no Brasil, onde as pessoas costumam votar com base na economia…
Limongi - Sim, quando a Marina quase ganha a eleição, ou mesmo quando o Aécio ameaça a Dilma, o João Santana volta para a economia. Ele refaz a campanha e vai para a economia dizer que seu prato que vai ficar vazio ou você vai ficar com fome porque os outros candidatos vão fazer recessão, retoma o mote do PT de investir na renda dos mais pobres, e assim que ele ganha a eleição (de 2014).
BBC News Brasil - Durante a última campanha, em 2022, ficou evidente o mal-estar do Lula em falar de corrupção. O tema continua sendo uma ferida aberta para o PT?
Limongi - Eu acho que sim. A oposição foi muito hábil em construir essa imagem de que o PT é intrinsecamente corrupto, que é da natureza do PT e que o PT praticaria uma corrupção diferente, mais poderosa, porque o PT tem um projeto de poder. Mas não é diferente coisa nenhuma. Tanto que os atores são os mesmos: a Odebrecht, a JBS, a Camargo Corrêa financiando os dois lados, e da mesma forma, pelo mesmo tipo de relação. E é isso que vai dar lá no final, quando a Lava Jato começa a puxar a base de dados da Odebrecht e revela está todo mundo na folha de pagamento da Odebrecht, que não é só o PT, aí que dá o desespero. Aí (a classe política diz:) 'Vamos jogar a mercadoria (Dilma) ao mar pra salvar a embarcação'.
BBC News Brasil - A gente tem ouvido ao menos desde o governo Temer que o Brasil vive uma situação de semipresidencialismo. Depois que o Orçamento Secreto foi adotado como prática, com a transferência do controle de grandes recursos para o legislativo no governo Bolsonaro, essa ideia ganhou força. Essa semana, o Congresso ameaçou desconfigurar o Executivo de Lula. A queda de Dilma também implicou na derrocada do sistema de presidencialismo de coalizão como o conhecíamos?
Limongi - Não foi imediato, quem acabou de implodir isso (o presidencialismo de coalizão) foi o Bolsonaro. O que a Lava Jato e o impeachment da Dilma implode é o sistema partidário brasileiro, sobretudo a centro-direita. O PT consegue se reerguer com base nos seus governadores do Nordeste. Mas o resto do sistema político sucumbe ao terremoto. Bolsonaro poderia ter reconstituído, organizado a direita e a gente ter um sistema novamente funcional, minimamente equilibrado. Mas não fez. Então, a destruição completa que a Lava Jato traz é quando a Lava Jato chega ao poder, o espírito Lava Jato chega ao poder com Bolsonaro. O Bolsonaro é um lavajatista, é desse espírito de que justiça boa é justiça rápida e eficaz para eliminar os criminosos. Não é casual que o Moro virou o Ministro da Justiça dele, porque há esse casamento ideológico e de princípios.
Para Bolsonaro, governar nunca foi o negócio dele, nunca foi a preocupação, o norte ou o objetivo dele. E com isso ele deixa o poder de governar ou a definição (do destino) dos recursos que o Estado tem nas mãos escapar do Executivo ou ser puxado pelo Legislativo. Era um processo que já vinha ocorrendo e Bolsonaro deixou ir ao paroxismo com o Orçamento Secreto, que é essa manifestação de que Bolsonaro não queria saber do orçamento. (O então ministro da Fazenda Paulo) Guedes também não queria saber de orçamento. Então, (dizem ao Congresso): 'toma que o filho é seu. Vocês sabem o que fazer com isso? Façam alguma coisa'. Então esse é o quadro que a gente está vivendo agora, que tem essa continuidade que foi dada pela eleição do presidente da Câmara, que permanece o mesmo do segundo biênio do Bolsonaro, quando Bolsonaro realmente completa esse presidencialismo de descaso que o caracteriza, quando passa ao Congresso a função de governar.
Então, isso desequilibrou ou reequilibrou o sistema. Acho que seria exagero falar em semipresidencialismo ou coisa desse tipo. Acho que o que a gente tem é um certo conflito e uma indefinição quanto aos rumos que isso vai tomar.
BBC News Brasil - A Dilma contou por muito tempo com uma base parlamentar sólida, negociada, como seus antecessores também fizeram, à base de cargos e emendas. Hoje, o governo Lula não tem essa base e parece muito difícil formá-la. O que mudou?
Limongi - O sistema está mais rígido. Lula e Dilma puderam contar com uma enorme migração partidária para montar suas bases.
O PSD, por exemplo, foi criado no governo Dilma puxando deputados do DEM. O Lula tem uma migração partidária pro PP e pro PTB enorme no início do primeiro mandato (ambos compunham a base naquele momento). Essa migração não existe mais (a reforma eleitoral de 2015 estabelece que migração partidária só pode ocorrer dentro de janela específica ou com justa causa).
Os partidos que estão fora do governo se comprometeram muito fortemente com o projeto do Bolsonaro. Boa parte deles tem um governador eleito ou uma liderança estadual a qual poderiam se ligar e lançar para enfrentar Lula na eleição de 2026 ou mesmo seguir aderindo a Bolsonaro.
A adesão ao governo era muito mais fácil antigamente, porque você sabia que o candidato de oposição ia ser do PSDB. Agora, você não sabe de onde vai ser. Então esses partidos estão lutando ali para ver se de repente é um deles 'o novo PSDB' que vai liderar a oposição. E o bolsonarismo está espalhado por todos eles, pelo PL, União Brasil, PTB, PR. Então você não consegue ter previsibilidade e coesão das máquinas.
E ainda em toda a questão da cláusula de barreira e o fim das coligações proporcionais, que criam uma baita incerteza para os partidos sobre a sua sobrevivência na próxima eleição. Então é uma questão difícil de ser resolvida. E tem o fator Lira, que concentrou muito poder como presidente da Câmara nos últimos anos, com as sessões remotas durante a pandemia. Por tudo isso não está claro qual vai ser o novo equilíbrio ou se não teremos um equilíbrio e um confronto aberto entre presidente da República e presidente da Câmara vai se tornar o novo padrão.
BBC News Brasil - Seu livro deixa claro que Dilma cai quando perde sua base parlamentar. Considerando que o Lula até agora sequer construiu uma base, seria ele um forte candidato ao impeachment também?
Limongi - Não, porque hoje o Lula teria os votos para barrar. E acho também que o impeachment da Dilma foi muito traumático para que as elites políticas voltem a brincar com fogo.
BBC News Brasil - A gente sabe que os operadores diretos do processo de impeachment, como o grupo de Eduardo Cunha e Michel Temer, no PMDB, e Aécio, no PSDB, acabaram alvejados pela Lava Jato e tiveram seu poder político reduzido. Mas eu queria jogar luz na figura do Lula. Seu livro mostra o quanto de fogo amigo do PT a Dilma enfrentou. Lula fez tudo o que podia para salvar o mandato de Dilma? O senhor arriscaria pensar aqui o que teria acontecido com Lula se ele tivesse virado ministro de Dilma no auge da crise (a posse foi impedida pelo STF e pela divulgação de um grampo irregular de conversa entre Dilma e Lula)? Seria ele hoje presidente?
Limongi - Esse contrafactual é muito difícil de ser feito. Eu acho que o Lula fez aquilo que um líder deveria ter feito ali. Ele tem um conflito com a Dilma, que se estende até agosto, setembro de 2015. O fogo amigo está rolando ali de parte a parte e não tem o bonzinho, a vítima, são os dois e suas facções que estão brigando por poder e por controle da máquina do Estado. E isso é política.
Mas a hora que a Dilma é ameaçada pelo Cunha e por uma possibilidade real de impeachment, eles se entendem melhor. E o Lula ajuda a Dilma a remontar o ministério e vencer o Cunha, quando traz o grupo do Jorge Picciani para dentro do governo e o PT cede o Ministério da Saúde para o PMDB, que é a joia da coroa, principal ministério, com maior recurso. Então o PT, a Dilma e o Lula se entendem e fecham um acordo e a 'Construindo um novo Brasil' vem para o centro do governo, com o Jaques Wagner e com (Ricardo) Berzoini, e começam a encaminhar as coisas. Acho que esse movimento estava dando certo até a Lava Jato partir para destruir o governo.
A Lava Jato parte para cima da Dilma e do Lula ao mesmo tempo. Naquele momento, a decisão do Lula é muito difícil. Ele tem duas alternativas: vir para o governo e salvar a Dilma. Ou se preservar, deixar a Dilma cair, e voltar em 2018, concorrendo às eleições.
Do ponto de vista do partido, se pode pensar que a melhor alternativa era preservar o seu grande líder, deixar o governo Dilma ir pro brejo e tentar recuperar o poder em 2018. Mas essa alternativa se torna inviável porque seria politicamente insustentável que Lula deixasse Dilma se afogar sem ajudar. É por isso que ele aceita entrar para o governo.
Mas Lula sabe que é tarde. Aparentemente, ele tem a noção de que vai ser muito difícil salvar o governo Dilma. E pela minha reconstituição (dos fatos a partir da cobertura jornalística), eu acho que, quando ele aceita ser ministro, ali já estava selado (o destino do governo Dilma). O PMDB e o PSDB já tinham se entendido, e o PP também. Então o impeachment viria mesmo com o Lula. Agora, claro, de repente isso muda todo o cenário, era uma possibilidade.
BBC News Brasil - Então, claro que Lula não desejava ter sido preso e tudo o que se seguiu, mas aparentemente as decisões de Sergio Moro "salvaram" Lula de virar ministro de um governo que seria derrubado, o preservaram politicamente?
Limongi - No médio prazo, primeiro, quem salvou o Lula foi o Gilmar (Mendes, ministro do STF), ao impedir que ele tomasse posse (como ministro). Aí ele não precisa dizer 'Eu não tentei salvar a Dilma'. Ele pode dizer: 'Eu tentei, mas fui impedido'. Se ele não fosse preso, teria sido o melhor dos mundos para ele. Mas a prisão acaba adiando (em quatro anos) a volta política dele.
Acho que se ele tivesse assumido o ministério, mesmo que ele tivesse evitado a queda da Dilma, seria impossível que ele evitasse a crise econômica. Teria que ter um ajuste econômico, ele sabia, tanto que estava propondo que o Henrique Meirelles fosse o ministro da Fazenda. Então ele teria que assumir a crise, era um abraço de afogados. Não tinha como ele escapar. E é por isso que ele hesita tanto (em assumir o ministério).
Mas isso tudo é especulação nossa, porque o que acontece de verdade é que o Lula é impedido de ser ministro, acaba condenado pela Lava Jato e é preso, o que lhe deu a possibilidade de se isolar durante o governo Bolsonaro e como o PT sobrevive muito fortemente no Nordeste, usar essa base para voltar ao poder. É interessante ver que esse PT que chega ao poder tem pouco a ver com o PT que se elege em 2002. Agora, no Executivo, há lideranças com experiência de executivo no Nordeste (e não do meio sindical paulista): Rui Costa, Wellington Dias, Camilo Santana, Flávio Dino.
BBC News Brasil - Na sua avaliação, a solução do imbróglio de Lula com Lira depende de uma reestruturação da direita?
Limongi - Depende da reestruturação da direita e o quanto a direita acredita que pode passar a pão e água até a próxima eleição. A direita acredita que terá um candidato para confrontar o Lula em 2026 ou vai querer negociar ministério e apoio?
BBC News Brasil - O governo Lula tem sido muito criticado por problemas de articulação política…
Limongi - Ninguém ganha nem perde todas. Agora, às vezes se perde não porque você é ruim, mas porque o outro é bom também. Ou porque nas condições dadas ninguém conseguiria ganhar. Então tem que entender que a situação é ruim, a gente tem um cenário em que o Bolsonaro ganhou a eleição legislativa, essa é a verdade.
A gente tem um Congresso que é de direita e que é de direita irresponsável, que é esse modelo Bolsonaro, que é o cara que quer fazer farra, que quer botar peruca (referência ao deputado Nikolas Ferreira), que quer fazer lacração e que não tem o menor interesse no que vai acontecer com a política pública. E por isso é difícil de negociar, porque esses deputados não têm interesse de pegar um ministério e transformar o ministério em algo que vai fazer alguma coisa. Eles querem fazer fuzarca.