Exclusivo: Presença de nazistas na internet do Brasil dobra em um ano
Células de extremistas de direita saltam de 530 para 1.117, revela pesquisadora. Maioria se concentra no Sul.
Com seus cinco mil habitantes, São Pedro de Alcântara é uma cidadezinha pacata na Grande Florianópolis. Fundada em 1829, foi a primeira colônia alemã de Santa Catarina. Na segunda-feira passada (14 de novembro), o município virou notícia nacional. E não era notícia boa. O delegado Arthur Lopes, da Delegacia de Repressão ao Racismo e Delitos de Intolerância (DRRDI) do estado, estourou uma reunião em que oito homens faziam apologia ao nazismo. Um dos presos usava tornozeleira eletrônica por já responder pelo crime de homicídio contra judeus.
Durante a semana, os nazistas de Santa Catarina mandaram uma carta atrevida à imprensa, endereçada às autoridades públicas. Ordenavam o cancelamento de uma feira cultural com imigrantes haitianos, além da expulsão imediata de negros e judeus do estado e da libertação dos oito presos. Do contrário, cometeriam um atentado e matariam muita gente. Como se tivessem força para isso. Claramente não têm essa força, mas têm crescido no Brasil de forma assustadora. A reunião flagrada pelo delegado mostra que esses grupos de extrema-direita saem do mundo digital e se tornam físicos.
Em 2022, as células nazistas que se comunicam pela internet mais que dobraram no país, saltando de 530 em outubro do ano passado, para 1.117 este mês. Geograficamente, esses grupos também se espalharam. Estavam presentes em 249 cidades e hoje estão em 298. O estado de Santa Catarina é o que concentra mais esse movimento. São 320 células. Estes são os dados revelados pela pesquisa da antropóloga Adriana Dias, aos quais o Terra teve acesso com exclusividade. Hoje pesquisadora da FioCruz, Adriana Dias é um dos nomes mais importantes do país quando se trata de monitoramento de grupos criminosos de extrema-direita. Vale lembrar que o nazismo é crime no Brasil e que a liberdade de expressão não pode ser usada para acobertar crimes.
A presença dos movimentos nazistas foi identificada em 22 estados e no Distrito Federal. Estado com a maior população negra do Brasil, a Bahia tem quatro células. Maior cidade do país, São Paulo tem 96 células. Em segundo lugar no ranking, vem Blumenau (SC), com 63, seguido por Curitiba, com 50.
O monitoramento de Adriana Dias ajuda no trabalho da polícia e no combate às ideias nazistas que têm ganhado cada vez mais adeptos no mundo todo. Convertida ao Judaísmo, a doutora em Antropologia compra uma briga grande com criminosos que não poupam esforços em ameaça-la de morte e ofendê-la sobretudo nas redes sociais. Mas ela segue mergulhada no submundo da deep web e na tentativa de decodificar as mensagens desses grupos, que vêm de diferentes correntes de pensamento e linhas de atuação sob o guarda-chuva do nazismo. No Brasil, ela já identificou 55 tipos diferentes de grupos. "Há até grupo brasileiro que defende a volta do Apartheid na África do Sul", conta ela. Há 4 células de adeptos da Ku Kux Klan e 2 de neoconfederados, movimentos dos Estados Unidos que repercutem no Brasil. A maioria dos grupos é de hitleristas e negacionistas do Holocausto.
Um imagem identificada por Dias e repassada com exclusividade para o Terra para ilustrar esta coluna mostra um motociclista branco em uma motociata do atual presidente, Jair Bolsonaro (PL), durante a campanha eleitoral. O homem abaixa a mão e faz um gesto que é usado por nazistas. Um assessor de Bolsonaro já foi flagrado fazendo o mesmo gesto.
Foi Adriana Dias que encontrou uma carta do próprio presidente, quando ainda era deputado, enviada para grupos neonazistas em 2004. Não se sabe se era uma carta enviada indistintamente a gupos políticos aliados. A carta foi publicada, na época, por três grupos fascistas na internet. O repórter Leandro Demori revelou a história no The Intercept Brasil. O presidente nega integrar esse movimento, mas os adeptos de Hitler não negam a predileção pelo ex-capitão do Exército. Sempre o apoiaram como parlamentar e engrossaram suas duas campanhas à Presidência.
Para a pesquisadora, a eleição deste ano, radicalizada pelo bolsonarismo, é uma das explicações mais importantes para a explosão impressionante de grupos nazistas na internet brasileira. “Esta foi uma eleição em que um presidente mais ativou o discurso inflamatório, assim como muitos líderes de extrema-direita que o apoiaram”. Mas é importante destacar que, embora o fenômeno brasileiro tenha dobrado em um ano, no mundo todo esses grupos têm crescido. Mais que isso, eles são articulados, disputam o protagonismo em suas regiões e se ancoram em líderes de extrema-direita que ocupam espaços de poder na administração pública, nos governos e nos parlamentos.
Em aplicativos de mensagens como o Telegram, por exemplo, Adriana Dias já chegou a monitorar a criação de até 40 grupos em apenas um dia. Identificados, esses grupos se desmancham e se reorganizam. Um dos primeiros pontos “revisados” por esses grupos é o Holocausto, que matou de cinco milhões de judeus com extrema crueldade. Proibida no Brasil, a distribuição de literatura que nega o Holocausto é gigantesca nesses grupos de mensagens, assim como no submundo da internet. Cheio de mentiras, falsas premissas e teorias da conspiração, esse material é oferecido gratuitamente aos iniciantes como se fosse de alta qualidade acadêmica.
Esses grupos fazem a defesa da liberdade de expressão como se fosse uma liberdade para cometer o crime de apologia ao nazismo. Mas são esses grupos os que mais tolhem a liberdade de expressão alheia quando ela não lhes convém. Agem com extrema violência e pregam o extermínio de desiguais ou adversários. O discurso da liberdade de expressão, que não é um valor absoluto (porque nenhuma liberdade é), ajuda a manter o verniz de que se está apenas “discutindo” a História. E é essa por essa falsa liberdade de expressão, tão defendida por líderes e comunicadores de extrema-direita, que levantamos a tampa desse esgoto.
Os oitos presos em Santa Catarina são da região Sul e de Minas, além de um português que vive no Brasil. Se escolheram São Pedro de Alcântara por sua história ligada à Alemanha, ignoraram que na cidadezinha os moradores são devotos de um homem negro. A estátua do escravo Marcos Manoel Vieira, o Tio Marcos, decora a entrada de um santuário religioso no bairro de Santa Teresa. Torturado e morto, o escravo Tio Marcos é cultuado como um santo. Ao redor da imagem há prendas e cartas de agradecimento por graças alcançadas, escreveram as pesquisadoras Cintia Tuler Silva e Clarrisa Otto em sua tese de mestrado da Universidade Federal de Santa Catarina. Universidade, aliás, que na semana passada procurou o delegado Arthur Lopes para tentar encontrar um modo de combater o nazismo crescente no estado.