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Tatiana Farah

Gritaram 'pega ladrão' e lincharam mais um inocente em Guarujá

Seja de culpado ou de inocente, o linchamento é a prova de que a barbárie vive entre nós

8 mai 2023 - 11h04
(atualizado às 11h07)
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Na terça-feira, Osil Vicente Guedes, 49 anos, dava uma volta na moto de um amigo em Guarujá. Era um dia normal até que alguém na rua gritou: “pega ladrão”. Moradores ensandecidos derrubaram Guedes da motocicleta e o espancaram até a morte. Não se sabe quem gritou a mentira. A vítima agonizou em um hospital até domingo, quando foi decretada sua morte encefálica.

O dono da moto confirmou que havia emprestado o veículo a seu amigo, um homem tranquilo e trabalhador. Mas, em poucos segundos e com nenhuma informação, seus linchadores o julgaram, condenaram e executaram. Barbaramente.

Foi também em Guarujá que, há nove anos (3 de maio de 2014), Fabiane Maria de Jesus, de 33 anos, foi linchada e morta por moradores de seu bairro porque uma notícia falsa dava conta de que ela seria uma sequestradora macabra de crianças. A notícia circulou pelas redes sociais e deixou uma menina órfã. Fabiane foi espancada por uma multidão de moradores. Foi morta sem direito de defesa. Barbaramente.

Parecem fatos inéditos, circunscritos a um único município. Não são. No livro “Linchamentos: a justiça popular no Brasil”, o sociólogo José de Souza Martins revela que, de 1945 a 1998, 2.579 pessoas foram vítimas de linchamento, sendo que quase metade padeceu nas mãos dos agressores ou ficou muito ferida. Segundo sua pesquisa, mais de um milhão de brasileiros já se envolveram em algum processo de linchamento.

Cena de linchamento de trabalhador que passeava na moto do amigo
Cena de linchamento de trabalhador que passeava na moto do amigo
Foto:

O pesquisador explica que os linchamentos são ritualísticos e seguem um protocolo invisível que envolve, primeiro, a perseguição, seguida do apedrejamento, das pauladas, do espancamento. O “protocolo” pode chegar ainda à mutilação e a queima da pessoa perseguida ainda viva. São práticas que remontam a Santa Inquisição e o período colonial brasileiro. O sociólogo afirma que há ao menos duas tentativas de linchamento por dia no país. 

“Quando a camada de regras que norteia a consciência cotidiana das pessoas, que regula o que é lícito e o que não é lícito, se quebra, esse outro código, que estava sepultado lá no inconsciente coletivo, vem para o primeiro plano e, por alguns minutos, regula o comportamento das pessoas”, afirmou Souza Martins em uma entrevista. 

O linchamento mais antigo de que se tem notícia no Brasil é de 1585. A guerra dos Emboabas, em 1707, teve início com um linchamento. Mais de um século depois, negros e abolicionistas foram linchados no país, nos estertores da escravidão. No ano passado, o congolês Moïse Kabagambe, de 24 anos, foi morto barbaramente. Ele e sua família eram refugiados no Brasil, fugiam da violência no Congo, mas não escaparam do linchamento no Brasil.

O linchamento é a barbárie compartilhada. É um caldeirão fervente onde os linchadores despejam seus medos, fracassos e frustrações. Vai muito além de punir quem eles acreditam ser um criminoso. Trata-se de exercer o poder de morte sobre o outro e de desumanizá-lo ao ponto de torná-lo nada mais que um bolo de carne espalhado na calçada.

“Mesmo em grandes cidades e regiões metropolitanas, os linchamentos são evidências fortes e alarmantes de atraso social. O Brasil oficial é apenas uma casca superficial de civilização. São cada vez mais banais os motivos que levam a multidão a romper essa casca”, afirmou Souza Martins em outro artigo.

Essa casca de civilização se rompeu mais uma vez na semana passada. E pôs fim à jornada de um trabalhador que apenas estava dando uma volta de moto.

Fonte: Tatiana Farah Tatiana Farah é jornalista de política há mais de 20 anos. É repórter da Agência Brasília Alta Frequência. Foi gerente de comunicação da Abraji, a Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo. Repórter do BuzzFeed News no Brasil de 2016 a 2020.  Responsável por levar os segredos do Wikileaks para O Globo, onde trabalhou por 11 anos. Passou pela Veja, Folha de S. Paulo e outras redações, além de assessorias de imprensa. As opiniões da colunista não representam a visão do Terra. 
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