O Brasil paralelo de Jair Bolsonaro
Oito bebês desnutridos internados por dia no país. O pior cenário dos últimos 13 anos. Mas só os votos interessam.
O presidente Jair Bolsonaro estava confiante na sexta-feira, quando participou de sabatina no estúdio do SBT. Na pergunta final, disse a Carlos Nascimento que não contestaria o resultado das urnas. Afinal, Bolsonaro estava crente de que ganharia as eleições. Ontem, cinco dias depois, o mesmo presidente convocou a imprensa às pressas para dizer que vai "às últimas consequências" na briga com o Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Sua fala e seu semblante eram a expressão da derrota.
Parte de seus aliados já havia ido ao palanque do Twitter para gritar pelo adiamento do segundo turno depois que o TSE considerou que a denúncia do PL sobre boicote de rádios do Nordeste ao programa eleitoral do partido não tinha provas. Bolsonaro convocou os chefes militares e alguns ministros para uma reunião antes do pronunciamento, saiu de lá sem a estratégia do adiamento. Fez o discurso para os jornalistas apenas com o chefe do GSI, general Heleno, e um ministro.
As "últimas consequências" podem ser qualquer coisa. E podem não ser nada. Mas criam um clima de tumulto e ajudam na narrativa de uma eventual derrota. Contestar o resultado das urnas não é uma novidade no Brasil. Aécio Neves (PSDB), derrotado por Dilma Rousseff (PT) em 2014, esperneou e pediu recontagem de votos. Perdeu. Nesta eleição, só continuou com o cargo de deputado federal com uma forcinha dos votos do partido.
De todo modo, como já tem se desenhado há muitos meses, Bolsonaro parece querer repetir a tensão e o fracasso promovido pelo ex-presidente americano Donald Trump caso perca a eleição.
Bolsonaro contesta as urnas, tenta tirar a credibilidade dos tribunais superiores, acusa a imprensa de parcialidade, chama seu principal adversário de ladrão. Num mundo paralelo, diz que o petista não tem coragem sequer de se sentar em um restaurante porque é enxotado pela população. Disse isso na sexta-feira no SBT enquanto Lula se reunia com milhares de pessoas na periferia de São Paulo. Na rua.
Mas, ontem à noite, mesmo num Brasil paralelo, Bolsonaro deu mostras de que o céu de sua campanha não é de brigadeiro. Algo não vai bem. E o bicho pegou entre sexta-feira passada e ontem, quarta-feira. Pode ter sido o estrago causado pela violência armada de seu aliado Roberto Jefferson contra a Polícia Federal. Pode ter sido o desgosto provocado entre aqueles mais bolsonaristas que Bolsonaro, que o criticaram por chamar Jefferson de bandido. Pode ter sido também pela reação do Ministério Público sobre as graves denúncias de que empresários e fazendeiros bolsonaristas estão coagindo seus empregados para engordar os votos do presidente. Pode ter sido a decisão do TSE de punir Bolsonaro por ofensas a Lula e de afirmar que, com a denúncia sobre as rádios, o presidente queria apenas tumultuar a reta final da eleição.
Sabemos que o semblante de preocupação e derrota do presidente ontem à noite nada tem a ver com a notícia de que o país vive o pior momento de desnutrição de bebês dos últimos 13 anos. Bolsonaro está muito mergulhado em sua campanha para ter conhecimento do levantamento da Fiocruz que revelou que oito crianças com menos de um ano são internadas diariamente no país, uma taxa que vem crescendo desde 2016 e atingiu seu ápice no ano passado. O presidente, que, no programa de sexta-feira se gabou de não ser racista porque salvou a vida de um homem negro quando os dois eram recrutas do Exército, não deve sequer ter notado que, nessas internações, de cada três bebês cuja raça/cor é informada ao SUS (Sistema Único de Saúde) dois são pretos.
A cara de derrota do presidente também não deve ter nada a ver com o levantamento divulgado ontem pelo Centro de Liderança Pública (CLP), criado por um de seus mais novos aliados, Felipe D’Ávila (Novo). De acordo com o estudo, a vacinação caiu de 71% da população para 58% entre 2020 e 2022. Sim, em plena pandemia e com a forte campanha do presidente de criticar vacinas e defender a tal liberdade de se infectar e infectar os outros.
Infelizmente, nada disso abala o presidente. Afinal, no Brasil paralelo de Jair Bolsonaro, não se vê uma única pessoa pedindo comida no balcão da padaria. Só a eleição interessa.