Do petismo ao bolsonarismo: Itaim Paulista ilustra como PT perdeu força na periferia de SP
Histórico reduto do Partido dos Trabalhadores, bairro da periferia paulistana deu vitória a candidatos de direita nas últimas eleições; influência de igrejas evangélicas e falta de identificação com petismo estão entre causas.
O líder comunitário Euclides Mendes, de 49 anos, conta que se surpreendeu quando um de seus amigos, vizinho do bairro do Itaim Paulista, na zona leste de São Paulo, comprou uma camiseta com a imagem de Jair Bolsonaro, então candidato à Presidência.
"Tomamos cerveja juntos há muito tempo. Não imaginava… Mas continuamos amigos até hoje, apesar de eu ser PT e ele, Bolsonaro. Não vai ser a política que vai mudar isso, cada um tem sua opinião."
Depois de várias tentativas, o amigo de Mendes, um comerciante do bairro que se tornou bolsonarista, desistiu de dar entrevista para esta reportagem.
Mendes é filiado ao PT e já trabalhou em campanhas para políticos da sigla na zona leste. Mas ele reconhece que o bairro da periferia, um histórico reduto petista, está mudando de lado nos últimos anos. "O PT perdeu muito espaço aqui", reconhece.
Os números das últimas eleições a presidente dão substância a esse diagnóstico. Nas eleições entre 2002 e 2014, candidatos a presidente da República pelo PT, Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff, venceram com certa folga por ali, em ambos os turnos.
Já em 2018, a sigla de esquerda perdeu essa hegemonia: Jair Bolsonaro venceu Fernando Haddad nos dois turnos. No segundo, teve 55% dos votos válidos, contra 45% do petista.
O cenário é semelhante ao das últimas eleições para a Prefeitura. Postulantes petistas venciam no Itaim Paulista desde a disputa de 2000. O próprio Haddad saiu vitorioso no bairro quando foi eleito prefeito, em 2012. Quatro anos depois, ele perdeu a eleição municipal para João Doria no primeiro turno, sendo derrotado no Itaim e em todos os outros bairros da periferia.
Dessa forma, o Itaim Paulista é uma espécie de microcosmo da perda gradual de força que o PT vem sofrendo em bairros dos extremos de São Paulo, como Itaquera e Guaianases, ambos na zona leste. Os vitoriosos nesses locais têm sido candidatos de direita, como Doria e Bolsonaro.
Mas não em todos. Próximo do Itaim, a maioria dos moradores de Cidade Tiradentes se manteve fiel ao PT na disputa contra Bolsonaro, em 2018. O mesmo ocorreu na zona sul, como no Grajaú, em Parelheiros e Capão Redondo.
Para a eleição municipal deste ano, o enfraquecimento na periferia promete ser trágico para os petistas, que nas últimas décadas concorreram com chances de vitória justamente por causa dessa forte penetração em regiões mais pobres da cidade.
Neste ano, o candidato do partido à Prefeitura é Jilmar Tatto — na última pesquisa eleitoral do Datafolha, divulgada na semana passada, ele apareceu com apenas 1% das intenções de voto.
Mas quando isso mudou?
Para Mendes, que mora no Itaim Paulista desde que nasceu, a troca de perfil de votação é um processo de anos, e não tem uma causa única. "Vejo que o PT se afastou um pouco da população. Várias obras que o partido fez no bairro não ganharam o carimbo do PT, as pessoas não sabem que foi gente do partido que conseguiu essas melhorias", explica.
"Mas tem outros fatores também, como a crise econômica e a influência das igrejas evangélicas. Há uma região que faz parte do Itaim, o Jardim Helena, que tem 50 igrejas evangélicas, a maior bem pequena. A gente contou… E não é um bairro grande, não", diz.
'O PT quebrou o Brasil'
O aposentado Pedro Meneses de Farias, 63, é um dos moradores do Itaim que se tornaram evangélicos. Ele era católico até 2012, quando passou a frequentar a Igreja Mundial do Poder de Deus, do famoso pastor Valdemiro Santiago. Hoje, é fiel de uma denominação local chamada Igreja Apostólica Jesus é o Resgate.
"Agora sou evangélico, mas o Deus que eu sigo é o mesmo que eu seguia no sertão da Paraíba, quando eu sentava numa pedra e não tinha nem sombra. Então eu olhava pra cima e falava assim: 'só Deus mesmo pra criar isso aqui'", diz.
Nascido em Cabaceiras, no semiárido paraibano, Farias se mudou para São Paulo aos 19 anos, em busca de uma vida longe da seca. "Era muito difícil sobreviver por lá. Cheguei aqui e logo arrumei um trabalho na (fábrica de pneu) Goodyear. Fiquei 14 anos", conta.
Morou em vários bairros de São Paulo, mas, em 1982, o salário fixo e o emprego estável lhe deram uma casa própria no Itaim Paulista, região ocupada por migrantes nordestinos e onde os imóveis eram mais baratos. "Naquela época, o bairro não tinha luz nas ruas, só dentro das casas. Água encanada já tinha, sim, mas a maioria das ruas não era asfaltada. Era bem precário", diz.
Nos anos 1990, conta, o local sofreu com uma explosão de violência. "A criminalidade era alta. Teve um mês que contei 28 homicídios só perto da minha casa. Era uma matança miserável. Tinha grupo extermínio, e o pessoal se matando entre eles", explica o aposentado, acrescentando que, hoje, os homicídios diminuíram muito. Para ele, o maior problema da região nesse quesito são os assaltos a casas, pedestres e carros.
Até agosto deste ano, a delegacia do Itaim Paulista registrou seis homicídios dolosos (quando há intenção de matar), segundo dados da Secretaria da Segurança Pública. No ano passado, foram quatro e, em 2018, houve 14 casos. Já os roubos somam 1.935 casos até agosto de 2020 — roubo de carros foram 207. Em todo o ano passado, o Itaim teve 2.949 assaltos, e 533 roubos de veículos.
Esse aumento da violência contra o patrimônio é um dos motivos que transformaram Farias em um eleitor de Bolsonaro, que tem a segurança pública como uma de suas principais bandeiras. "Hoje a violência está banalizada. No Brasil tem muita mordomia para bandido, bandido hoje é um herói. São Paulo está entregue aos 'noias' e às drogas", afirma.
No campo político, Farias já votou em candidatos de correntes ideológicas diferentes: Fernando Henrique Cardoso, Lula, Dilma, Aécio Neves e, na última eleição, Bolsonaro.
"Acreditei muito no Lula, eu o defendia com unhas e dentes, achava que ele iria acabar com a fome, como se ele fosse um Papai Noel. O primeiro mandato dele foi muito bom, mas o segundo o pessoal passou a mão, roubou muito. Depois, ainda votei na Dilma, mas desisti. O PT quebrou o país. Se eles não tivessem saqueado o Brasil, nós seríamos um país de primeiro mundo", explica.
Outro fator que contou em sua conversão ao bolsonarismo foram questões de comportamento e moral. "A base do Brasil é a família, e hoje as famílias estão desestruturadas… Ninguém respeita mais ninguém. Veja as escolas, os alunos não respeitam mais os professores. Eu, por mim, colocaria escolas militares. Nelas, tem disciplina", afirma, citando os colégios cívico-militares, uma das principais promessas de Bolsonaro para a educação.
Para a eleição municipal, Farias ainda não escolheu candidato, mas afirma que não deve votar em Celso Russomanno (Republicanos), que é apoiado por Bolsonaro e pela Igreja Universal do Reino de Deus. "Voto com minha consciência, não é porque o Bolsonaro falou que vou votar em que ele quer", diz.
A influência das igrejas
Para Vinicius do Valle, doutor em ciência política pela USP e autor do livro Entre a religião e lulismo: um estudo com pentecostais em São Paulo (Ed. Recriar), embora grandes igrejas sejam mais famosas, as pequenas denominações de bairro estão mais próximas dos fiéis.
"Como estratégia de marketing, as grandes igrejas, como Mundial e Universal, colocam seus templos em locais de maior visibilidade, como grandes avenidas ou estações do metrô. Então, no geral, as igrejas menores ou pentecostais ficam mais próximas do fiel. Às vezes erguem um templo em uma garagem", explica Valle, que estuda as igrejas evangélicas na periferia paulistana.
Para ele, o ponto de virada que tornou parte da periferia mais próxima da direita conservadora ocorreu em 2016, quando Doria se candidatou a prefeito com uma campanha de marketing que se contrapunha mais fortemente ao PT.
"Até então, a maioria das igrejas já eram antipetistas, mas isso não se refletia nos discursos dos pastores, que, diante dessa situação, eram mais pragmáticos. Os fiéis ainda tinham uma forte identificação com o PT e com Lula, pois muitos participavam de programas sociais. Depois, com os escândalos da Lava Jato, isso mudou: os pastores começaram a colocar na conta do PT os problemas da cidade, da economia e do que as pessoas estavam sofrendo", diz.
Em 2018, afirma Valle, o discurso "em defesa da família tradicional" de Bolsonaro foi bem recebido pela comunidade evangélica conservadora. "As igrejas foram o vetor principal desse discurso que pega muito a questão da sexualidade, muitas vezes bastante carregado de homofobia. O PT passou a ser visto como um partido que não respeita a família cristã", diz.
No contexto do Itaim, o líder comunitário Euclides Mendes comenta que, para além do crescimento das evangélicas, a Igreja Católica também perdeu o protagonismo que já teve no cotidianos dos moradores.
"Várias obras e melhorias feitas nos anos 1990 e 2000, como a construção de um viaduto e de um hospital, foram articuladas pela Igreja Católica junto à militância. Hoje isso não acontece mais", diz Mendes.
Já a cientista política Camila Rocha de Oliveira, pesquisadora do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap), afirma que as igrejas evangélicas viraram uma espécie de centro de socialização na periferia.
"Com o aumento da escalada da violência dos anos 1990 e 2000, as pessoas passaram a ter medo de sair de casa, participam menos de festas e eventos comunitários. Por conta disso, há uma dissolução dos laços sociais. Toda essa sociabilidade passa a ocorrer dentro dos templos. Essas redes são importantes para os moradores, onde muitos são acolhidos quando têm problemas e fazem até cursos. Quando o pastor fala de política, ele já tem essa identificação com o morador", explica.
Para ela, os escândalos de corrupção e a crise econômica também são fortes fatores que explicam essa migração eleitoral. "O PT tinha essa bandeira da ética, que foi perdida depois do mensalão e da Lava Jato. Além disso, as pessoas não se conectaram com as políticas dos governos petistas, mesmo quando elas eram diretamente beneficiadas. Muita gente creditou a melhora das condições de vida apenas ao mérito próprio", diz.
Desigualdades
O distrito do Itaim Paulista tem uma população aproximada de 375 mil pessoas. Para moradores, a situação econômica local até melhorou nas últimas décadas, visto o aumento do trânsito nas avenidas, melhora no poder de consumo e também a construção de dezenas de prédios com condomínios fechados.
Por outro lado, regiões do Itaim ainda sofrem com enchentes dos córregos que alimentam o rio Tietê, que passa pelo bairro. Milhares de pessoas vivem em comunidades improvisadas às margens do rio. Em alguns casos, como na Vila Itaim, as ruas ficam alagadas por dias durante o período de chuvas, no verão.
As desigualdades em relação a bairros centrais e de classe média também ficam evidentes nos indicadores sociais e econômicos.
Dados do Mapa da Desigualdade, produzido anualmente pela ONG Rede Nossa São Paulo, apontam que o Itaim tem o segundo pior índice de áreas verdes entre as 32 subprefeituras da cidade, com apenas 3 m² de cobertura vegetal por habitante — o Butantã tem 41 m² por morador.
O tempo de espera por uma consulta com um clínico geral é de 25 dias no Itaim Paulista, enquanto no Itaim Bibi é de 4 dias. A idade média em que as pessoas morrem no Itaim Paulista é 61 anos; já em Moema, a média é 80 anos.
Se por um lado, o distrito do Butantã tem 53 equipamentos municipais de cultura para cada 100 mil habitantes, o Itaim Paulista conta com apenas 1,73. Cada criança que mora na Consolação tem disponível um acervo de 10,4 livros infanto-juvenis em bibliotecas municipais, mas uma criança do Itaim tem apenas 0,3 livro.
"Acredito que na gestão do PT as pessoas tinham menos contato com o poder público, achavam que a subprefeitura tinha abandonado o bairro", explica Cacau Ras, 42, articulador cultural do Itaim e membro de um grupo que realiza eventos artísticos produzidos por coletivos de jovens.
Como muitos moradores, Cacau Ras era petista e até produziu jingles para candidatos do partido. Hoje, não declara voto no PT nem em outro partido, mas também não se sente próximo aos ideais de Bolsonaro. "Uma coisa que todo mundo comenta é que um vereador do PT, o João Antônio, que morava no Itaim, logo depois da eleição mudou de bairro. As pessoas ficaram muito decepcionadas, não se sentiam mais representadas", explica.
"Em 2018, a juventude comentava política principalmente com informações que recebia pelas redes sociais. Às vezes, a gente falava: 'isso que você falou não é verdade', mas a pessoa continuava acreditando. Hoje, vejo que uma parte dos jovens, que é mais articulada, se enxerga mais com o PSOL e com o Guilherme Boulos do que com o PT", diz.
De fato, Boulos aparece em terceiro na pesquisa Datafolha, com 12% das intenções de voto a prefeito, bastante à frente de Jilmar Tatto, do PT, com 1%. Celso Russomanno lidera o levantamento, com 27%; Bruno Covas (PSDB) estava em segundo, com 21%.
Transferência de votos
Embora Bolsonaro tenha tido alta votação na periferia de São Paulo, não é certo que ele vá conseguir transferir sua influência para Celso Russomanno, seu candidato na cidade.
A pesquisa Datafolha, divulgada na semana passada, apontou que 63% dos paulistanos não votariam de jeito nenhum em um nome indicado por Bolsonaro — 16% votariam com certeza, e 18% talvez votassem.
A cientista política Camila Rocha de Oliveira, do Cebrap, afirma que os votos em disputa hoje fazem parte de uma espécie de "espólio do PT".
"A despeito de tudo, o PT ainda goza de uma apelo simbólico pra quem está nas classes mais baixas, como um partido que representa os trabalhadores. Mas estamos vivendo um momento importante de rearranjo da política. Essa herança eleitoral do PT está em disputa pelo PSOL, PSB e outros partidos. O PSOL tenta pegar o eleitor pela esquerda, uma classe média baixa da periferia que é ligada a movimentos sociais e a discussões de raça e gênero", diz.
Para Gisele Brito, mestranda em planejamento urbano pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, a periferia vive um momento de renovação dos quadros políticos, principalmente oriundos de movimentos sociais e coletivos com ações mais pontuais. "Há candidaturas coletivas e individuais (para vereador) com forte identificação com a periferia, e com movimentos surgidos nos bairros e que reivindicam um reconhecimento de suas práticas como política. O PT não apresentou quadros novos nos últimos anos. O próprio Jilmar Tatto é um político bastante tradicional", explica.