Entenda em 5 pontos o plano de golpe que levou Bolsonaro a ser indiciado pela PF
Jair Bolsonaro, aliados e militares de alta patente foram indiciados por tentativa de golpe de Estado em 2022
A Polícia Federal (PF) indiciou o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) e mais 36 pessoas nesta quinta-feira, 21, na investigação sobre uma tentativa de golpe de Estado após as eleições de 2022. A lista de indiciados contém nomes que fizeram parte do alto escalão do governo do ex-presidente, como Walter Braga Netto (Defesa e Casa Civil), Anderson Torres (Justiça) e Augusto Heleno (GSI), além de aliados de confiança do ex-presidente, como Valdemar Costa Neto, presidente do PL, e Filipe Martins, ex-assessor internacional.
Bolsonaro foi indiciado por abolição violenta do Estado Democrático de Direito, golpe de Estado e organização criminosa. Os três crimes atribuídos pela corporação ao ex-presidente podem resultar em 28 anos de prisão.
A conspiração contra o resultado das urnas em 2022 contou com diferentes frentes de atuação, denominadas pela PF como “núcleos”. Entenda o inquérito da Polícia Federal em cinco pontos.
Origem da investigação e delação de Mauro Cid
A investigação por tentativa de golpe teve origem a partir de um inquérito da Polícia Federal sobre a atuação de “milícias digitais”. Essa apuração teve diversas frentes, entre as quais constam o “ataque às instituições”, “ataques a opositores” do governo Bolsonaro, a “tentativa de abolição do Estado Democrático de Direito” e o “uso da estrutura do Estado para a obtenção de vantagens”.
A frente da “obtenção de vantagens” foi desmembrada em outros inquéritos, entre os quais a apuração sobre a existência de fraudes nos cartões de vacina de Jair Bolsonaro e de sua filha Laura. O tenente-coronel Mauro Cid foi detido nesta investigação, na qual firmou um acordo de delação premiada. Desse depoimento surgiram elementos que alimentaram a vertente de apuração de “tentativa de abolição do Estado Democrático de Direito.
Os elementos que embasaram a Operação Tempus Veritatis, deflagrada pela PF em 8 de fevereiro, foram citados na delação de Mauro Cid. O depoimento do tenente-coronel elencou pela primeira vez os detalhes da redação de um decreto que imporia um estado de exceção no País, além da menção ao papel-chave do general Walter Braga Netto em uma articulação golpista.
No entanto, descobertas posteriores da Polícia Federal, como uma participação de Cid no plano para matar o ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e o vice Geraldo Alckmin (PSB), não foram citadas na delação do tenente-coronel. A PF só localizou o plano com diligências no celular de Cid e suspeitou que o militar estava fazendo “jogo duplo” para proteger aliados e pediu a anulação do acordo de delação. Em audiência realizada nesta quinta-feira, o STF decidiu manter o acordo de delação de Mauro Cid.
Estratégia baseada em ‘núcleos’ de atuação
O inquérito da Polícia Federal elencou que os investigados por conspiração atuavam em seis frentes de atuação. A investigação apelidou essas frentes como “núcleos”. Cada uma das frentes, articuladas com os demais núcleos da organização, tinha como objetivo preparar as condições para que o golpe de Estado fosse consumado.
A PF identificou os seguintes núcleos:
- de “desinformação”, responsável por disseminar informações falsas sobre o sistema eleitoral do País, de modo a descredibilizar o resultado do pleito;
- de “incitação” para que outros militares aderissem à trama golpista, valendo-se de pressão e assédio a oficiais resistentes;
- o “jurídico”, responsável por fundamentar, com artifícios legais, um decreto que imporia um estado de exceção no País;
- de “apoio às ações golpistas”, responsável por planejar e manter as manifestações antidemocráticas em frente aos quartéis;
- de “inteligência paralela”, dedicado a coletar informações que pudessem auxiliar Jair Bolsonaro na consumação do golpe;
- uma frente dedicada à articulação entre os núcleos conspiradores, formada por oficiais de alta patente que se valiam dessa influência para incitar o golpe.
A PF utiliza a nomenclatura de “núcleos” para fins de análise da organização. Portanto, por mais que os investigados não chamassem a si mesmos com esses termos, o inquérito coletou indícios de que cada indiciado atuava de modo direcionado a objetivos específicos.
Da divisão por núcleos, eleva-se o papel do tenente-coronel Mauro Cid na articulação golpista. A PF constatou que Cid pertencia a cinco dos seis núcleos identificados: o de desinformação, o de incitação, o jurídico, o de apoio logístico e o de inteligência paralela.
Reunião na casa de Braga Netto
De acordo com o inquérito que embasou a Operação Contragolpe, deflagrada na terça-feira, 19, dois dias antes da conclusão do inquérito sobre a tentativa de golpe de Estado, o general Walter Braga Netto, homem forte do governo Bolsonaro, era uma peça-chave no plano de ruptura institucional. O ex-ministro tomou conhecimento sobre um plano para executar autoridades e seria o coordenador-geral de um “Gabinete Institucional de Gestão da Crise” caso o golpe ocorresse.
Segundo a PF, o general Mário Fernandes é o autor do plano “Punhal Verde e Amarelo”, que continha um detalhamento para executar, em dezembro de 2022, o ministro Alexandre de Moraes e a chapa vencedora das eleições presidenciais daquele ano, formada por Lula e Alckmin. A ação esperava o apoio operacional de “kids pretos”, como são conhecidos os militares das Forças Especiais do Exército Brasileiro.
Em 12 de novembro, houve uma reunião na casa de Braga Netto na qual o “planejamento operacional para a atuação dos ‘kids pretos’ foi apresentado e aprovado”. A reunião contou com a participação dos tenentes-coronéis Mauro Cid e Hélio Ferreira Lima e do major Rafael Martins de Oliveira.
Além do documento com o plano para matar Moraes, Lula e Alckmin, a PF localizou nos arquivos de Mário Fernandes um esboço de um decreto instituindo um “gabinete de crise”, que seria deflagrado após as execuções das autoridades. Braga Netto seria o gestor desse gabinete, segundo a minuta apreendida.
Mário Fernandes era o secretário-executivo da Secretaria-Geral da Presidência. A pasta é conhecida como a “cozinha do Palácio do Planalto”, dada a proximidade com o presidente da República. O secretário-executivo, na prática, é o “número 2″ de um ministério. Fernandes chegou a assumir a Secretaria-Geral de forma interina durante o governo Bolsonaro. Já Braga Netto, além das passagens pela pasta de Casa Civil e de Defesa, foi o candidato a vice-presidente da chapa do PL na eleição de 2022.
Data do golpe foi discutida
Um trecho de uma mensagem de áudio de Mário Fernandes a Mauro Cid indica que Jair Bolsonaro não só tomou conhecimento do plano golpista como sugeriu a melhor data para a ação entrar em curso – em um dia anterior ou posterior à diplomação do presidente eleito, um ato que precede a posse do novo mandatário. Enquanto a diplomação de Lula ocorreu no dia 12 de dezembro de 2023, a posse do petista ocorreu em 1º de janeiro de 2024.
“Durante a conversa que eu tive com o presidente (Jair Bolsonaro), ele citou que o dia 12, pela diplomação do ‘vagabundo’, não seria uma restrição, que isso pode, que qualquer ação nossa pode acontecer até 31 de dezembro e tudo”, disse Fernandes a Cid. “Mas, p..., aí na hora eu disse, pô presidente, mas o quanto antes, a gente já perdeu tantas oportunidades.”
A derrota eleitoral motivou a trama golpista, mas um apelo de Jair Bolsonaro a uma ruptura institucional anterior às eleições foi identificada pela PF. Em reunião ministerial do dia 5 de julho de 2022, o então presidente pediu uma “reação” a uma alegada fraude no sistema eleitoral. “Se a gente reagir depois das eleições, vai ter um caos no Brasil, vai virar uma grande guerrilha, uma fogueira no Brasil. Agora, alguém tem dúvida que a esquerda, como está indo, vai ganhar as eleições?”, disse o então chefe do Executivo.
O então presidente pediu aos ministros presentes que agissem logo. “Todos aqui, como todo povo ali fora, têm algo a perder”, disse Bolsonaro, referindo-se aos membros da gestão que não estavam presentes na reunião.
Relação com fraude no cartão de vacinas
O indiciamento por tentativa de golpe de Estado é o terceiro a afetar Jair Bolsonaro. O primeiro inquérito a implicar o ex-presidente foi o da investigação por fraude em seus cartões de vacina. Outros nomes indiciados naquela ocasião se repetem no relatório concluído nesta quinta-feira sobre a conspiração golpista: além de Jair Bolsonaro, também foram implicados na conclusão da Operação Venire os ex-ajudantes de ordens do presidente Mauro Cid e Marcelo Costa Câmara.
Uma referência à ruptura institucional foi levantada naquela ocasião pela PF. O relatório final da Venire é assinado pelo delegado Fábio Alvarez Shor, que relacionou a fraude no cartão de vacinas de Bolsonaro com uma tentativa de golpe de Estado.
De acordo com o delegado, “o ex-presidente e seus aliados podem ter emitido os cartões de vacina falsificados para que, após a tentativa inicial de golpe de Estado, pudessem ter à disposição os documentos necessários para cumprir eventuais requisitos legais para entrada e permanência no exterior, aguardando a conclusão dos atos relacionados a nova tentativa de golpe de Estado que eclodiu no dia 8 de janeiro de 2023″.