FAB pagou R$ 134 mi a uma empresa da Flórida em parcelas diárias durante 5 anos
Entre 2018 e 2022, a Aeronáutica gastou valor milionário para comprar 56 tipos de itens da mesma companhia
Uma empresa com sede na Flórida, nos Estados Unidos, foi contratada pela Força Aérea Brasileira (FAB) para fornecer desde equipamentos de computação até livros e bolas de futebol aos militares. Entre 2018 e 2022, a Aeronáutica gastou R$ 134 milhões para comprar 56 tipos de itens da mesma companhia. Os desembolsos foram realizados a partir da representação da FAB em Washington. O escritório fez uma sequência de pagamentos quase diários à empresa ao longo de cinco anos, o chamou a atenção de órgãos de fiscalização.
As informações estão em relatório de auditoria preliminar do Tribunal de Contas da União (TCU) ao qual o Estadão teve acesso. O nome da empresa não é citado, mas o caso aparece como exemplo para demonstrar a necessidade de fiscalização sobre R$19,048 bilhões gastos por escritórios do Exército, da Marinha e da Aeronáutica no exterior entre 2018 e 2022.
A variedade de itens comprados pela Aeronáutica junto à mesma empresa ligou o alerta dos auditores porque a prática destoa do que seria possível negociar "em um mercado extremamente competitivo como o norte-americano". Para os técnicos, trata-se de "situação bastante peculiar".
Na reta final do governo de Jair Bolsonaro (PL), Exército,Marinha e Aeronáutica impuseram barreiras ao envio de dados solicitados pelo TCU.O relatório aponta que as Forças Armadas têm criado dificuldades para a auditoria.
Um vaivém de pedidos, negativas e justificativas se arrasta desde o início de 2022. Para negar acesso aos dados, as Forças alegam, entre outras coisas, que as informações solicitadas pelo tribunal esbarram em projetos sensíveis para a segurança nacional.
No entanto, além de o TCU ter competência para acessar tais informações e já as ter obtido em anos anteriores, a fiscalização visa as compras ordinárias, ou seja, as despesas do dia a dia.
O presidente do TCU, ministro Bruno Dantas, autorizou a viagem de auditores a Washington para uma fiscalização presencial nas compras feitas pelas Forças Armadas. A informação foi publicada no fim de semana pela Folha de S.Paulo, e confirmada pelo Estadão.
Com a resistência dos militares, a Corte não consegue avançar com as "análises sobre situações incomuns de alto risco já identificadas" entre as despesas realizadas no estrangeiro. Os militares não abriram os sistemas e informações que dariam aos auditores acesso a bancos de dados que detalham, por exemplo, dinâmicas das licitações e fornecedores participantes das disputas.
"É importante registrar que se pretende acessar dados que nas contratações realizadas no Brasil são públicos", diz a área técnica do TCU em relatório obtido pelo Estadão. "Pretende-se acessar dados que, nos termos da Lei de Acesso à Informação (LAI), são considerados públicos e objeto de transparência ativa, ou seja, deveriam estar disponíveis a qualquer interessado, e não apenas aos órgãos de controle."
Em um dos episódios da resistência dos militares, a Aeronáutica insistiu para que fossem indicados os "tipos de dados" buscados pelos auditores no sistema interno, mas sem que os técnicos tivessem conhecimento dos dados produzidos.
"Observa-se uma tentativa de inversão de papéis entre órgão fiscalizador e órgão auditado. Em vez de a equipe de auditoria selecionar e obter os dados de interesse para a fiscalização com base no conhecimento do objeto auditado, é o órgão auditado quem está se colocando para fazê-lo", frisa o relatório.
As dificuldades criadas pelas Forças Armadas chegaram ao plenário do TCU.No início do mês, pedidos da área técnica do tribunal para imposição de prazos começaram a ser analisados.
O ministro Jorge Oliveira, da Corte, pediu adiamento pelo prazo de 60 dias alegando estar em contato com a Defesa para "ajustes possíveis" que atendam aos interesses da fiscalização e "das particularidades que envolvem as questões militares". Oliveira foi indicado ao tribunal pelo então presidente Jair Bolsonaro.
O relator do caso, ministro Weder Oliveira, apelou para que o colega de plenário devolva o processo em menos de dois meses.
"Se fosse possível trazer o processo antes, seria importante. Essa discussão que foi feita intensamente, com toda diligência, reuniões e até alguns procedimentos inéditos para garantir que tudo o que o tribunal fez estava dentro da adequação, da razoabilidade, sem nenhum excesso, foi feito dentro desse processo ao longo de um ano", afirmou."E a auditoria está de certo modo se ressentindo desses dados para ter a evolução necessária."
O Brasil tem cinco representações militares no exterior. Exército, Marinha e Aeronáutica têm postos em Washington. Marinha e Aeronáutica ainda contam com escritórios em Londres. Esses órgãos podem fazer aquisições de produtos e serviços tanto para as bases em outros países quanto para instalações dentro do Brasil.
São estruturas que demandam serviços de limpeza e manutenção e também firmam contratos para serviços de advocacia, materiais de escritório,internet, tradução de documentos, alimentação e aluguel de carros.A comissão do Exército nos Estados Unidos, por exemplo, tem instalações em três endereços diferentes.
Outro lado
Em nota, o Exército informou que tem "envidado todos os esforços para atender plenamente" às demandas do TCU, mobilizando "pessoal e tempo de diferentes setores". Disse ainda que já forneceu "centenas de processos no exterior" sem violar a "responsabilidade na proteção de dados sensíveis afetos à Segurança e à Defesa Nacional".
"Ressalta-se,ainda, no contexto da auditoria, que a Instituição abriu as portas para a equipe do TCU visitar in loco o sistema de controle de compras no exterior, gerenciado a partir das instalações do Quartel-General em Brasília, bem como conhecer e visitar os trabalhos da Comissão do Exército Brasileiro em Washington, em 2022", diz o comunicado. O Ministério da Defesa, a Marinha e a Aeronáutica não se manifestaram.