'Governo Bolsonaro se afastou do combate à corrupção', afirma Santos Cruz
Em entrevista à BBC News Brasil, ex-ministro diz que pressão sobre a PF e enfraquecimento do Coaf contrariam discurso de campanha do presidente.
Demitido do governo em junho, o ex-ministro da Secretaria de Governo general Carlos Alberto dos Santos Cruz hoje quer distância do presidente Jair Bolsonaro.
O militar da reserva pensa em se filiar a um partido político e disputar eleição no futuro - ainda não sabe por qual sigla e para qual cargo, mas tem certeza que não fará isso ao lado do seu antigo chefe.
Para ele, Bolsonaro deixou o PSL para criar uma nova sigla, a Aliança pelo Brasil, não por divergência ideológica, mas devido a disputas para controlar dinheiro dos fundos partidário e eleitoral.
"Eu não entraria em um partido hoje do presidente Bolsonaro de jeito nenhum. Ele tem valores que não coincidem com os meus; ele tem atitudes que eu acho que não têm cabimento", disse, em entrevista à BBC News Brasil.
https://youtu.be/GSJt6_J4g64
Santos Cruz deixou o governo após sofrer uma onda de ataques nas redes sociais que teria sido orquestrada por um dos filhos do presidente, o vereador Carlos Bolsonaro (PSC-RJ). A campanha de difamação incluiu uma imagem, falsa segundo o general, de uma conversa dele com ataques ao governo.
"Uns criminosos vagabundos de baixo nível fazem aquilo, entregam para o presidente (a imagem forjada), incrivelmente ele acredita naquilo e incrivelmente ele até hoje se nega a dizer quem levou aquilo para ele. São coisas que não se pode esperar de uma autoridade que tem essa responsabilidade", afirma.
Desde então, o general retomou uma intensa agenda de viagens pelo Brasil e o exterior. Prestigiado internacionalmente após ter comandado a maior missão de paz da ONU (Organização das Nações Unidas), chefiando mais de 23 mil capacetes azuis na República Democrática do Congo entre 2013 e 2015, ele voltou a atuar junto à instituição que hoje é tachada de "globalista" pelo governo brasileiro.
O general conta que a política externa de Bolsonaro, marcada por uma "alinhamento automático" aos Estados Unidos, tem causado surpresa entre atores internacionais.
"É completamente ideológica (a política externa). Desde o discurso de posse do ministro das Relações Exteriores (Ernesto Araújo), quase transformando a Bíblia num plano de governo", critica.
Ao fazer um balanço do primeiro ano de Bolsonaro, Santos Cruz aponta incoerências com o discurso de campanha, marcado pela bandeira anticorrupção.
Na sua avaliação, o governo trouxe "desilusão para muita gente" nessa área, citando como exemplo pressões sobre o diretor da Polícia Federal, Maurício Valeixo, e o enfraquecimento do Coaf - órgão que foi rebatizado de Unidade de Inteligência Financeira e teve sua atuação limitada por quatro meses após o STF atender um recurso de outro filho do presidente, o senador Flávio Bolsonaro (Sem partido-RJ), investigado por suposto desvio de verba do seu antigo gabinete de deputado estadual.
O ex-ministro mostra mais otimismo com o governo na área econômica, mas diz que é preciso "prestar atenção pra não ficar só na matemática financeira", sem chegar nos mais desfavorecidos.
Questionado pela BBC News Brasil sobre declarações do presidente e seus filhos em apoio à Ditadura Militar (1964-1985), Santos Cruz diz que "é o tipo de manifestação completamente deslocada no tempo, infeliz". Ao contrário de Bolsonaro, ele não comemora a tortura e assassinatos políticos praticados pelo regime militar (são 434 entre mortos e desaparecidos), mas evita apontar os erros dos governos desse período e equipara os crimes de agentes do Estado aos dos grupos armados que militavam contra a ditadura.
"Essas deformações dos dois lados não podem acontecer de novo. Então, seja do Brilhante Ustra (coronel que comandou torturas) ou seja dos criminosos da esquerda, isso não pode acontecer novamente", rechaça.
"Não adianta ficar trazendo e discutindo coisas (do passado) pra um Brasil que hoje tem 12,5% de desempregados, que tem que fazer uma conciliação, que tem que parar com a divisão social, com os grupos extremistas que nós temos aí hoje", reforça.
Confira a seguir a entrevista concedida em 27 de dezembro, de sua residência, em Brasília.
BBC News Brasil - O senhor tem viajado muito desde que deixou o governo. Já esteve em Nova York, na Coreia do Sul, acaba de voltar do Congo, e em janeiro estará nos Estados Unidos novamente. Que trabalhos tem realizado nesses países?
Carlos Alberto dos Santos Cruz - Eu tenho participado de alguns eventos da Organização das Nações Unidas (ONU). Na Coreia do Sul, por exemplo, foi um curso para civis e militares para exercer as funções mais altas nas operações de paz da ONU. Em Nova York, foi um treinamento específico para pessoas que já estão em função, como por exemplo nas Colinas de Golã, em Abyei (região disputada por Sudão e Sudão do Sul), no Western Sahara (Saara Ocidental, território entre Marrocos, Mauritânia e Argélia). E agora fui liderar uma equipe de cinco pessoas, contando comigo, para fazer uma avaliação da violência ali na região leste do Congo, na fronteira com Uganda. Tem vários outros trabalhos também, dentro do Brasil (tenho feito) muitas viagens. Já era uma rotina que eu tinha interrompido para trabalhar no governo por um tempo.
BBC News Brasil - Nas viagens ao exterior, as pessoas perguntam sua avaliação sobre o governo? Qual a impressão que elas têm da gestão Bolsonaro?
Santos Cruz - As pessoas com as quais eu tenho contato, que se interessam mais por política internacional e acompanham o Brasil, elas realmente ficaram um pouco surpresas com algumas posições do governo, mas veem a eleição do presidente como uma eleição absolutamente normal. Algumas posições é que chamam atenção.
BBC News Brasil - Por exemplo?
Santos Cruz - A política externa do Brasil chama muita atenção. Alguns posicionamentos como foi o caso da eleição na Argentina, algumas ideias como trocar a embaixada nossa (em Israel) de Tel Aviv para Jerusalém, o nosso voto na ONU agora em relação ao embargo de Cuba (pela primeira vez o Brasil votou contra a resolução que condena o embargo americano a Cuba; apenas Israel também ficou ao lado dos EUA).
BBC News Brasil - No caso da Argentina, o senhor se refere ao apoio do presidente Bolsonaro à reeleição do Mauricio Macri, que acabou derrotado pelo Alberto Fernández?
Santos Cruz - Não é bem o apoio à reeleição do Macri, uma coisa até que já se sabia que seria o posicionamento dele, mas em dizer que a Argentina iria fazer uma péssima opção (com a eleição de Fernández), quando é um problema absolutamente argentino.
BBC News Brasil - Em mensagem de Natal transmitida em cadeia nacional de televisão, o presidente Bolsonaro afirma que seu governo acabou com a ideologia na política externa. Isso aconteceu?
Santos Cruz - Acho que não, acho que é completamente ideológica. Desde o discurso de posse do ministro das Relações Exteriores (Ernesto Araújo), quase transformando a Bíblia num plano de governo, e outras como a parte de mudar nossa embaixada de Tel Aviv para Jerusalém, a maneira como se aproximou dos Estados Unidos. (Quero dizer,) Não se aproximou, porque nós somos próximos dos Estados Unidos, mas a maneira como mostrou essa prioridade sem nenhum cuidado.
BBC News Brasil - Um alinhamento?
Santos Cruz - Um alinhamento automático. Isso é absolutamente ideológico. Depois, houve um retrocesso (no viés ideológico) do próprio discurso de campanha quando (Bolsonaro) dizia que a China ia comprar o Brasil, que isso não ia ser permitido, etc, (e em outubro) acabou viajando para a China. Então você pode considerar até que deu para trás ideologicamente por uma questão de necessidade. O restante foi absolutamente ideológico.
BBC News Brasil - O senhor considera que isso está afetando a imagem do Brasil e a forma como os outros países se relacionam conosco?
Santos Cruz - Sem dúvida nenhuma. Você vê que o presidente Bolsonaro não pôde ir à Nova York receber um prêmio (da Câmara de Comércio Brasil-Estados Unidos em maio). Nova York é um lugar internacional que todo mundo vai. O presidente do Brasil não pôde ir por que? Por causa de condutas ideológicas que prejudicaram a imagem dele.
BBC News Brasil - Nessa mensagem de Natal, o presidente começa agradecendo "em especial a grande parte da população brasileira que me deu a missão de ser presidente dessa nação". Chama atenção ele se direcionar especialmente ao eleitorado dele. Na sua avaliação, o presidente está governando para todos os brasileiros ou está muito focado em sua base eleitoral?
Santos Cruz - Já passou tanto tempo, um ano depois, não sei se é o caso mais (de agradecer aos eleitores). É a mesma coisa que eu dar parabéns pra você pelo aniversário do ano passado. Eu não vi o discurso, mas o presidente tem que ser presidente para todo mundo. Estamos tendo um problema no Brasil que é o perdedor não reconhecer que perdeu e o vencedor parece que não vê que tem que governar para todo mundo. Logo após a eleição é normal você agradecer seus eleitores. Um ano depois não sei nem se é conveniente. Agora, também tem o lado oposto. Nós estamos vivendo essa polarização, tem dois extremos, tem o extremo ideológico atual e o extremo ideológico dos governos anteriores, basicamente de esquerda.
BBC News Brasil - O presidente demitiu ministros próximos, como o senhor e o Gustavo Bebianno. Além disso, o partido que o elegeu, o PSL, hoje está totalmente fragmentado no Congresso. Na sua leitura, por que o presidente briga com seus próprios aliados? Falta capacidade de dialogar e lidar com as diferenças nesse governo?
Santos Cruz - O que eu vejo é que o partido que elegeu o presidente saiu de 2 para 55 deputados (com a eleição de 2018), sem estrutura, sem liderança firmada, sem ter uma tradição de partido. Então, esse é um primeiro problema, é possível uma fragmentação caso não fosse feito um trabalho de liderança que eu acho que faltou. Outra coisa é que essa fragmentação não é por uma questão ideológica. Não vejo ideologia nessa fragmentação. Eu vejo uma disputa de liderança principalmente por controle de recursos, o fundo partidário é muito forte no Brasil e no ano que vem o fundo eleitoral é outro valor grande (serão R$ 2 bilhões, dos quais cerca de R$ 185 milhões devem ir para o PSL). Então, eu vejo essa divisão, essa briga toda, mais vinculada a controle de recursos de fundo partidário, de fundo eleitoral, do que de discordância em filosofia. Não tem discordância em filosofia, tem briga política por controle (de recursos), por poder, só isso.
BBC News Brasil - Em entrevista recente ao jornalista Pedro Bial, o senhor descartou totalmente participar da criação do Aliança pelo Brasil.
Santos Cruz - Tem alguns partidos que eu não entraria de jeito nenhum, esse é um deles
BBC News Brasil - Qual é a sua discordância tão forte, por que o senhor não se vê nesse partido?
Santos Cruz - Em primeiro lugar, eu não entraria em um partido hoje do presidente Bolsonaro de jeito nenhum. Até por uma questão de conduta, não é pela filosofia do partido, não. Ele tem valores que não coincidem com os meus, ele tem atitudes que eu acho que não têm cabimento. Então eu não entraria de jeito nenhum para esse partido, assim como não entraria para o PT, para o PSOL, para outros de esquerda.
BBC News Brasil - Quais valores o senhor vê de tão diferente entre o senhor e o presidente?
Santos Cruz - Em primeiro lugar, a maneira como se conduz as coisas. A maneira de se tratar dos problemas, a maneira de você ser honesto nos seus propósitos e como você lida com as pessoas. A influência familiar, por exemplo, eu acho que não é boa, a sociedade brasileira não aceita. Ela votou no presidente Bolsonaro, ela não votou na família Bolsonaro. Na sociedade brasileira, a gente não gosta nem que parente se meta na vida particular da gente, muito menos num ambiente nacional. O presidente tem uma responsabilidade muito grande e todas essas interferências acabam trazendo desgaste para ele mesmo, eu acredito. É uma coisa que os assessores precisam alertar muitas vezes. São momentos até um pouco mais... não constrangedores, mas mais delicados para os assessores, mas eles têm que assessorar, né?
BBC News Brasil - O senhor tentou alertar o presidente sobre isso?
Santos Cruz - Não só isso, eu acho que no nosso sistema ali você tem dentro do Palácio quatro ministros: Segurança Institucional (general Augusto Heleno), a Secretaria-Geral (Jorge Antônio Oliveira), a Casa Civil (Onyx Lorenzoni) e a Secretaria de Governo (general Luiz Eduardo Ramos). Esses quatro (cujos gabinetes ficam) ali dentro do Planalto naturalmente são mais próximos, os outros já são mais espalhados na Esplanada, o contato físico é até um pouco menor. Então, quando percebe alguma coisa tem que exercer sua função, dizer com honestidade. Com educação, mas com honestidade.
E claro que têm coisas que não são do inteiro agrado da autoridade, mas o meu caso, por exemplo, eu era um assessor que não dependia daquilo como emprego. E por minha característica pessoal também não dependia daquilo emocionalmente, (é) uma coisa que não me faz falta nenhuma. Pelo contrário, eu deixei de fazer coisas que eu gostava e até mais rendosa (mais bem remunerada) para tentar ajudar dentro de um projeto porque eu acreditava que o presidente Bolsonaro foi a melhor opção na eleição, não tenho dúvida nenhuma. Naquele momento, ele era a melhor opção e, naquilo que ele falava, eu fui lá para tentar ajudar.
Agora, é normal o presidente também (trocar ministros). Eu acho que não existe nenhum governo no mundo que começa e acaba com os mesmos ministros. O que não é normal é o que está acontecendo aqui quando você vê a interferência (dos filhos), familiares se metendo no Twitter, dando opinião sobre conduta de ministro. E coisa falsa sendo entregue para o presidente, mas o presidente não quer dizer quem é que entregou a falsidade para ele. Então, esse tipo de atitude são coisas que saem da normalidade.
BBC News Brasil - O senhor está se referindo a um diálogo forjado envolvendo o senhor que foi dado ao presidente?
Santos Cruz - Lógico, isso aí depõe contra meus 40 anos de vida militar aonde você cultua exatamente a honestidade. Então, uns criminosos vagabundos de baixo nível fazem aquilo, entregam para o presidente, incrivelmente ele acredita naquilo e incrivelmente ele até hoje se nega a dizer quem levou aquilo para ele. Então, são coisas que não se pode esperar de uma autoridade que tem essa responsabilidade.
[Nota da redação: em maio, circulou nas redes sociais a imagem uma suposta conversa por WhatsApp em que Santos Cruz teria criticado Jair Bolsonaro e seu filho Carlos no dia 6 daquele mês; o ex-ministro diz que a imagem é falsa e que estava em uma viagem de avião no horário da suposta conversa.]
BBC News Brasil - Outro militar que deixou o governo foi o general Maynard Santa Rosa que se demitiu em novembro da Secretaria de Assuntos Estratégicos. Em entrevista ao UOL, ele disse que o presidente Bolsonaro se cercou de "um grupo de garotos que têm entre 25 e 32 anos que fazem uma espécie de cordão magnético em torno e filtram o acesso". O presidente se isolou num em torno de jovens mais radicais no Planalto?
Santos Cruz - Em primeiro lugar, eu acho que ele tem todo o direito de escolher quem ele quer. No meu caso, por exemplo, que eu saia do governo está absolutamente dentro de uma prerrogativa do presidente. Não tem nada de anormal. Eu conheço muita gente de 25, 30 anos que é extremamente competente. Eu acho que quando o general Santa Rosa disse isso ele estava se referindo a um pequeno (grupo), alguns que trabalham diretamente dentro do gabinete do presidente que não tem experiência nenhuma para ser um assessor presidencial. Acredito que ele se referiu a essas pessoas. Eu não tenho restrição de idade. Se você olhar aí para a relação de pessoas que foram presas na Lava Jato você não vai encontrar muita gente jovem. Então, idade não tem muito a ver não, o que tem a ver é a experiência e a função da pessoa.
BBC News Brasil - Um desses jovens assessores é o Felipe Martins, que atua principalmente na política externa. Como avalia sua atuação?
Santos Cruz - Eu acho que não tem a mínima condição de ser um assessor de nível presidencial em assuntos internacionais. Isso é o que eu acho, agora, o presidente não acha. Você tem o Itamaraty com uma grande quantidade de pessoas com experiência, mas o presidente tem o direito de escolher quem ele quiser. É uma questão que não envolve nenhum erro. É uma opção do presidente e ele que carregue o peso dessa escolha.
BBC News Brasil - Nessa entrevista, o Santa Rosa também falou sobre sua saída do governo. Segundo ele, isso teve relação com o controle das verbas da Secretaria de Comunicação, pois o Carlos Bolsonaro queria direcioná-las para algum grupo e o senhor teria se oposto. O senhor confirma que seria esse o motivo?
Santos Cruz - Olha, se (Carlos Bolsonaro) queria ou não, eu não sei, porque comigo isso não iria acontecer sem dúvida. Jamais o Carlos Bolsonaro falou comigo sobre isso, também não adiantaria falar porque se fosse isso eu não iria concordar, porque, em primeiro lugar, ele não tem função nenhuma no governo. Segundo, se ele tem capacidade para gerenciar isso daí, eu digo: põe a chuteira, a camiseta, aquece, entra em campo e vai trabalhar, né? Ficar na posição confortável de crítica também não é o caso. Mas jamais teve esse tipo de proposta para mim. Eu não aceitaria isso. Acho que comunicação de governo não pode ser usada como instrumento de poder, não pode ser usada como instrumento de ideologia. Se não a gente vai cair no erro dos governos anteriores, vamos voltar lá para o PT. A comunicação de governo tem que ser esclarecedora e não pode ser uma área que você utiliza para a manutenção do poder.
BBC News Brasil - Por exemplo, direcionando recursos para pessoas aliadas, blogueiros?
Santos Cruz - Não (pode), se não nós vamos voltar para o mesmo problema anterior.
BBC News Brasil - Fala-se na existência de um gabinete de ódio que operaria dentro do Palácio do Planalto, orquestrando ataques a supostos adversários. O senhor se sente vítima disso?
Santos Cruz - Olha, pode ter sido. Isso é um caso policial, isso não é um caso de filosofia, ou de método de governo. Isso é simplesmente um caso policial, é pegar os casos produzidos de falsidade de informação, de injúria, de difamação, tratar disso daí de maneira policial. É fácil você chegar nos autores através de tecnologia existente e processar na forma da lei essas pessoas. Se elas estiverem dentro do Palácio, que sejam processadas, não interessa quem, não tem ninguém acima da lei, nem que trabalhe dentro de um palácio em todas as funções. Então, se existe esse tal gabinete de ódio, acho que existe essa possibilidade de você identificar tecnicamente e mover ação judicial.
BBC News Brasil - Em relação ao que o presidente prometeu fazer na campanha eleitoral e frente ao que aconteceu neste primeiro, qual o saldo que o senhor tira do governo?
Santos Cruz - Em termos de resultado, é um governo que acertou em algumas coisas, errou em outras, como é normal em qualquer governo, nada de excepcional. A parte econômica, que sempre foi um problema bastante crítico, teve um crescimento do PIB no mesmo patamar do governo (de Michel) Temer, que tinha 5% de aprovação (contra 30% de Bolsonaro, segundo o Datafolha). Então, não vejo problema nenhum.
Em relação à campanha, houve algumas mudanças. A primeira delas: a reeleição. Ele dizia que não iria continuar com a reeleição etc, com quatro meses estava aberta a campanha de reeleição. Outra coisa: o combate à corrupção, que foi o carro-chefe, digamos assim, junto com o antipetismo, o combate à corrupção não ficou tão caracterizado e acho até que em alguns pontos se afastou, se afastou disso aí. E isso aí eu acho que trouxe desilusão para muita gente.
A parte política, o destaque acho que ficou para o Congresso que trabalhou. O Congresso foi a grande estrela da política nesse ano.
BBC News Brasil - Ofuscou o papel do Bolsonaro?
Santos Cruz - Não, não ofuscou o presidente porque o presidente se manteve na mídia, mas por outras razões. O presidente se manteve na mídia até por característica de comportamento, não é bem por desempenho político. Então, eu vejo um ano que chama atenção o grupo ideológico, a seita ideológica foi muito ativa e monopolizou muito a atenção da mídia. Para mídia, isso é bom, brigas e acusações e xingamentos e coisa de baixo nível. Então, no total, foi um governo com algumas coisas boas outras coisas não, mas acho que tem alguma expectativa de algumas coisas boas à frente.
BBC News Brasil - Por exemplo, o que o senhor está esperando de positivo?
Santos Cruz - A parte de econômica normalmente é uma área que demora a dar resultado. Vamos ver se a área econômica, mais um ano, mais seis meses, oito meses, ela começa dar frutos. Você tem áreas muito boas como é o caso da agricultura com a ministra Tereza Cristina. A parte da infraestrutura é uma parte técnica, né? O Brasil é tão ineficiente em infraestrutura que você pode fechar os olhos e colocar o dedo no mapa e fazer alguma coisa. E o ministro (Tarcísio de Freitas) é bom. A área econômica é boa, eu tenho algumas restrições como cidadão, mas a área é boa. A restrição é que tem que prestar atenção pra não ficar só na matemática financeira, tem que chegar nos mais desfavorecidos.
BBC News Brasil - A última pesquisa do Instituto Datafolha mostrou que a avaliação positiva do presidente é de 30% na população de forma geral e cai para 22% entre os mais pobres. A que o senhor atribui essa insatisfação maior dos mais pobres? Será que tem a ver com a área econômica?
Santos Cruz - Olha, as pessoas mais pobres foram por longo tempo manipuladas pelo governo com diversos benefícios. Benefícios que você tem que dar para os mais desfavorecidos, não tem saída. Não pode deixar sofrendo, tem que ajudar. Mas você não pode fazer disso daí uma exploração política, se não se torna uma coisa desumana. Eu dou sempre como exemplo o MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra) na beira das estradas por 15, 20 anos, sem ninguém resolver o problema. Isso aí caracteriza que aquela massa ali tem que continuar daquela maneira. É o caso (da pobreza) do Nordeste: você tem que dar o benefício, mas também tem que resolver o problema. Então, é um público muito sensível, porque tem muita necessidade. A queda (da aprovação entre os mais pobres) que você está dizendo do governo (é) porque o governo está com muitas medidas econômicas, até bastante eufóricas, como 'ah, a bolsa de valores chegou a 116 mil pontos', mas o que que isso aí significa lá para o elemento que está necessitado? Não significa nada por enquanto, pode ser (que signifique) na frente.
'Ah, mas agora a taxa Selic está 4,5%'. Sim, esse juro é bom pra quem? É para o mais pobre? Pode ser para o classe média e baixa que está comprando casa etc, mas para aquele bem necessitado não, isso aí não chegou nele. Então, você tem várias razões para a pessoa necessitada, os mais pobres, terem sempre restrições.
O juro caiu para 4,5%, mas a pessoa mais pobre que usa o cartão de crédito como empréstimo paga 300%, é uma coisa absurda. Eu não pago porque normalmente eu tenho dinheiro no final do mês para pagar tudo que eu usei no cartão de crédito, mas aquele que usa como empréstimo está num nível muito forte de exploração.
BBC News Brasil - Falta um pouco de sensibilidade para o atual governo ao lidar com esse grupo? Por exemplo, eles anunciaram um programa para combater o desemprego em que os recursos vêm da taxação do seguro desemprego.
Santos Cruz - Você tem que ter muito cuidado, é uma massa muito sensível. Por exemplo, até para as pessoas que não são as mais necessitadas, mas tem algum limite pequeno no cheque especial, (tem que) pagar um percentual para o banco mesmo que não utilize aquele limite. São coisas assim... A área bancária no Brasil é uma das áreas mais bem remuneradas e favorecidas. São poucos bancos que dominam tudo, que tem bilhões de lucros. Então, vejo (a Economia) como uma área muito boa mas a gente não pode nunca esquecer que não é só grandes resultados de matemática financeira, isso aí tem que chegar no pessoal mais pobre.
BBC News Brasil - No caso da corrupção, o senhor me pareceu que se frustrou ou viu uma incoerência na atuação do governo em relação ao discurso de campanha. O que o senhor vê de errado nesse campo nesse governo?
Santos Cruz - (O combate à) Corrupção, da maneira que estava estruturada no momento da eleição, você tinha operação Lava Jato, na realidade a Polícia Federal, Ministério Público trabalhando nisso, você tinha o Coaf (Conselho de Controle de Atividades Financeiras, hoje renomeado Unidade de Inteligência Financeira). São os instrumentos (com) que você combate corrupção, controlando lavagem de dinheiro. Esses mecanismos sofreram um pouco de desgaste. O Coaf, quando foi para o Banco Central (por escolha do governo Bolsonaro), muitos percebem que ele trocou de nome e reduziu atividade.
A própria operação Lava Jato passou, passa por diversos desgastes também. A própria Polícia Federal, teve um período ali de muita pressão sobre o diretor para ser trocado ou não (em setembro, o presidente disse que a PF precisava de uma "arejada" e que Moro podia trocar o diretor Maurício Valeixo, o que não se concretizou). Essas coisas atrapalham.
Agora, foi criada uma nova figura de juiz de garantia, tem que ver como é que vai ser. A prisão em segundo instância (foi proibida pelo STF), tudo isso, todo esse conjunto de coisas trouxe um pouco de sensação de que o combate à corrupção está se tornando cada dia mais difícil.
BBC News Brasil - No caso do juiz de garantia, por exemplo, o senhor acha que o presidente deveria ter vetado esse ponto do pacote anticrime como várias pessoas têm criticado ele nas redes sociais?
Santos Cruz - Ao menos, a ideia geral é essa. Se era uma coisa importante, teria que ter sido até mais discutida. Hoje em dia você tem mecanismos para esclarecer a população com rapidez, e foi uma coisa quase surpresa para o público. Talvez não para o parlamentar, mas para o público.
BBC News Brasil - Quem veio para o governo com o propósito de fortalecer o combate à corrupção é o ministro Sérgio Moro. O senhor acha que o ministro está enfraquecido, sem todas as condições de trabalhar?
Santos Cruz - Acho que ninguém trabalha nas condições ideais, né? E eu acho que ele também não trabalha nas condições ideais. O juiz Sérgio Moro é uma pessoa que tem um histórico que garante ele por um longo tempo. Ele tem um fundo de garantia muito alto, mas sempre é um desgaste.
BBC News Brasil - Temos visto várias revelações de uso de funcionários fantasmas, não só no gabinete do Flávio Bolsonaro, que está sendo investigado pelo que poderia ser um esquema de 'rachadinha' (prática em que parlamentares se apropriam de parte dos salários dos funcionários), mas há também denúncias de que o vereador Carlos Bolsonaro pode ter tido funcionários fantasmas, e, mesmo no gabinete do presidente Jair Bolsonaro quando ele era deputado, reportagens revelaram que havia muitos funcionários que eram parentes da família de uma das ex-mulheres do presidente, pessoas que não apareciam, que não davam expediente. O senhor confia na integridade dessa família ou vê sinais de possíveis desvios de recursos ou de condutas que não são corretas?
Santos Cruz - Eu vejo o seguinte, no momento que você é eleito Presidente da República, um filho é senador, o outro deputado, outro vereador, todos da mesma família, a atenção vai toda em cima, ainda mais quando sua retórica é uma retórica muito forte. Então, é natural que mergulhem a fundo nessas investigações todas. Eu gostaria que todos os parlamentares que têm essa prática sofressem o mesmo grau de investigação. É claro que isso não acontece no mesmo nível para todo mundo, porque aqueles que se destacam mais, como é o caso da família do presidente, sofrem mais esse tipo de pesquisa. Agora, a partir da hora que se incorre nesse erro que seja cumprida a lei. Não acho que são cidadãos acima da lei.
BBC News Brasil - Mas o que perguntei é se o senhor confia na integridade deles?
Santos Cruz - Olha, daí você tirar uma conclusão genérica eu acho problemático. Agora, nesses casos específicos que sejam investigados e cada um pague sua conta.
BBC News Brasil - Gostaria de falar sobre as manifestações do presidente Bolsonaro, de seus filhos e também de ministros do governo relacionadas à ditadura militar (1964 a 1985). Esse ano nós tivemos declarações do Eduardo Bolsonaro e do Paulo Guedes citando a possibilidade de um novo AI-5 (Ato Institucional nº5, de 1968, que deu poderes ainda mais autoritários ao governo militar), caso houvesse uma radicalização da esquerda. Como vê esse tipo de declaração?
Santos Cruz - Esse aí é o tipo da declaração infeliz, desconectada da realidade. O que acontece? Você está comparando a situação atual com 1968, cinquenta anos atrás. No mínimo, você está desatualizado. Se você tiver que (lidar com extremismos, pode) endurecer às vezes uma legislação, o Judiciário (pode) endurecer uma conduta no período de crise, o governo (pode) solicitar ao Congresso alguma coisa, nós estamos vivendo outra época. Não dá nem pra comparar com aquela época, são 50 anos de diferença. Então, acho esse tipo de manifestação completamente deslocada no tempo, infeliz, falta de noção de momento.
BBC News Brasil - Como é o sentimento dentro das Forças Armadas com relação a essas declarações? É um tema que os militares preferem não mexer, incomoda que o presidente traga à tona?
Santos Cruz - Olha, eu não posso falar pelas Forças Armadas. Eu estou fora do Exército (na reserva) já faz algum tempo. Eu também não vejo o motivo pelo qual o governo se refere ao período de governo militar. Naquela época, quando houve a revolução de 1964 (movimento que depôs o presidente João Goulart, considerado um golpe por historiadores), eu tinha 12 anos, Bolsonaro acho que tinha nove, não teve participação nenhuma. Depois, a gente teve participação já na adolescência, na fase adulta, quando a gente pegou o Brasil em pleno desenvolvimento. Então, pegamos uma fase em que o Brasil tinha planejamento, desenvolvimento, etc. Voltar agora com comparações, eu acho uma coisa completamente deslocado no tempo. Eu acho que temos que ver a realidade hoje do Brasil, resolver os problemas atuais. Se teve coisa errada, você não repete. Se teve coisa boa, você repete.
BBC News Brasil - O que teve de errado?
Santos Cruz - Se teve, todo governo tem coisas... Por exemplo, até aí tem que voltar no tempo... É normal qualquer governo ter coisas ruins ou coisas boas. Uma coisa boa, por exemplo, que existia era o planejamento né? Existia mais planejamento.
BBC News Brasil - O senhor acha que o regime militar errou, por exemplo, em não realizar eleições diretas, em cassar congressistas?
Santos Cruz - Tem que ver o contexto daquele momento, é questão de contexto. Por exemplo, outros países não têm o nosso sistema de eleição direta, então, tem que ver qual é o nosso costume. A nossa tradição é o voto direto. Ali foi quebrado por uma questão de período de exceção, era um período excepcional. Depois voltou (para eleição direta). Você não vai voltar agora para eleição indireta.
A parte de anistia (lei que em 1979 perdoou os crimes de agentes do governo e de militantes opositores do regime), por exemplo, foi uma coisa boa. O Brasil tem tradição de passar a borracha e todo mundo voltou à vida normal. Até aqueles que hoje se caracterizaram como criminosos em vários setores da administração pública (durante a ditadura) foram anistiados, voltaram à vida normal. Teve gente que participou de guerrilha, matou gente inocente, etc, foi anistiado. Então, tem coisa que você tem que analisar e ver o que que não foi bom e o que deu certo. E aquilo que não foi bom tem que trabalhar para que não aconteça de novo.
BBC News Brasil - O presidente também considera um herói o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra (um dos que comandou sessões de tortura). Como o senhor vê essa figura histórica? Qual a sua leitura do Ustra?
Santos Cruz - Ele escreveu um livro, né? Bastante conhecido até, mas eu não li. Ele é acusado de tortura e etc.
BBC News Brasil - Há relatos muito fortes de torturas muito violentas comandadas por ele contra presos políticos.
Santos Cruz - Isso aí (a tortura) é uma coisa que independente da profundidade do relato, ou do trauma do relato, ou dos acontecimentos, é uma coisa que você não pode trazer como exemplo para ações futuras. Assim como você naquela época teve também assassinatos por pessoas de esquerda e que se chamavam de justiçamento. Não era justiçamento, era assassinato. Num período daqueles, você tem várias deformações dos dois lados. Essas deformações dos dois lados não podem acontecer de novo. Então, seja do Brilhante Ustra ou seja dos criminosos da esquerda, isso não pode acontecer novamente.
BBC News Brasil - Muitas pessoas que defendem a ditadura militar, que consideram que não era uma ditadura, mas um regime excepcional, justificam o assassinato e a tortura de presos políticos dizendo que havia o terrorismo de grupos de oposição ao regime. Mas essas ações de alguns grupos extremistas justificam que o Estado tenha torturado pessoas?
Santos Cruz - O que acontece naquele tipo de ambiente é exatamente isso, um lado tenta se justificar com o que o outro faz. Ou aqueles que são acusados de tortura, ou que torturaram, acusam que estão fazendo aquilo por causa dos crimes que o outro está fazendo, e o outro diz que está cometendo aqueles crimes porque o outro está torturando. O Brasil não está vivendo esse período hoje, e é bom que aquele período não volte com nenhum dos dois lados com a mesma atitude. Esse é o problema. Tem gente que está querendo agora ficar analisando o que passou há 50 anos. Era outro ambiente onde os dois lados cometeram coisas erradas, e um tentando justificar por conta do que o outro fazia. Isso aí tem que parar.
Eu vi outro dia, no ano passado (2018), alguém comentou: "ah, as Forças Armadas têm que pedir desculpa". E o pessoal (da oposição ao regime militar) não tem que pedir desculpa também pelos assassinatos que fez? Por que nunca propuseram, então, "vamos fazer todo mundo junto"? Não adianta ficar trazendo e discutindo coisas (do passado) pra um Brasil que hoje tem 12,5% de desempregados, que tem que fazer uma conciliação, que tem que parar com a divisão social, com os grupos extremistas que nós temos aí hoje. Tem muita coisa pra fazer que eu acho que o que vale do passado e trazer a lição, não é o julgamento.
BBC News Brasil - O senhor já indicou em entrevista que pensa em um dia concorrer a algum cargo político, se filiar algum partido. O que passa na sua cabeça nesse sentido?
Santos Cruz - Eu acho que as pessoas que reclamam da política precisam participar de alguma forma, seja como eleitores, seja como candidato, seja como filiado a partido político ou não. Se você não estiver filiado, você não pode competir em eleições, mas você pode ser um bom eleitor. Há pessoas que não são filiadas a nada e que dão divulgadoras de ideias, mobilizam um grupo de pessoas. Acho que todo mundo tem que procurar participar para melhorar o nível (da política), se não a gente só reclama.
E você tem um país que tem uma desigualdade social absurda. A desigualdade social no Brasil é simplesmente inadmissível, você tem do mesmo cofre público gente que ganha salário mínimo, e gente que ganha 30 mil, 50 mil. Gente que no contracheque ganha mais de 100 mil. Então, você tem imoralidades que foram legalizadas. Para desmanchar isso aí, é difícil, mas o grande objetivo tem que ser a redução da desigualdade social. E isso aí você só consegue com uma participação mais ativa em todo o processo (político). Eu não sou encantado com política não, agora, tenho recebido convite para entrar em partido político etc. É uma coisa que também não consome meu tempo, eu tenho outras coisas para fazer. No momento certo, vou fazer essa avaliação.
BBC News Brasil - Aqui no Distrito Federal não tem eleição municipal no ano que vem. O senhor projeta para 2022 participar talvez da eleição?
Santos Cruz - Pode ser.
BBC News Brasil - Qual o cargo o senhor disputaria?
Santos Cruz - Olha, eu não pensei nem em filiação partidária, não fiz análise dos partidos. Tem que ver as pessoas e principalmente a filosofia partidária. Um partido é como uma forma de conduzir a vida pública, a administração pública, aquelas transformações que você imagina. Eu não me dediquei a isso ainda não.
BBC News Brasil - O convite que o senhor recebeu foi do PSDB?
Santos Cruz - Não só do PSDB como de outros. Isso só gera especulação e, pior de tudo, gera compromisso. Prefiro não tratar disso agora.