Analistas rejeitam boatos sobre intervenção dos EUA no impeachment
Teses sobre o envolvimento dos Estados Unidos no impeachment da presidente Dilma Rousseff têm proliferado em blogs e grupos de Whatsapp nas últimas semanas.
Entre essas narrativas - que não são endossadas pela presidente afastada nem por seus assessores - está a de que os Estados Unidos teriam favorecido a saída de Dilma por estarem descontentes com a aproximação entre o Brasil e rivais americanos, como a Rússia e a China.
Segundo as versões, a atitude americana se enquadraria num longo histórico de intervenções dos EUA na América Latina e teria sido influenciada pela cobiça por recursos naturais brasileiros, como o petróleo do pré-sal e o aquífero Guarani.
Os relatos citam encontros entre procuradores brasileiros e americanos para a troca de informações sobre a Operação Lava Jato e o fato de que a embaixadora americana no Brasil, Liliana Ayalde, serviu no Paraguai até o ano anterior ao impeachment do presidente Fernando Lugo, em 2012.
O histórico recente da relação entre os dois países, porém, se contrapõe a essas teorias - que tampouco encontram respaldo entre a maioria dos especialistas no tema. Desde que se reelegeu, Dilma vinha tratando os Estados Unidos como uma das prioridades de sua política externa. Em 2015, ela visitou a Casa Branca e ouviu do presidente Barack Obama que o Brasil era uma "potência global".
Nos últimos meses, ambos conversaram por telefone ao menos duas vezes: em dezembro, o americano lhe agradeceu pela postura do Brasil nas negociações para o acordo climático de Paris e, em janeiro, os dois discutiram ações contra o zika.
Em 30 de março, a poucos dias da votação do impeachment, Brasil e EUA assinaram um acordo para troca de experiências no setor de infraestrutura.
As ações indicam que havia ficado para trás o mal-estar gerado com a revelação pelo site Wikileaks, em 2013, de que Dilma fora espionada pelo governo americano.
Nos últimos dias, o mesmo Wikileaks alimentou rumores sobre a participação dos EUA no impeachment ao divulgar que o presidente interino Michel Temer havia sido um "informante" da embaixada americana em Brasília. Um telegrama diplomático revelado pelo site aponta que Temer conversou sobre a política brasileira com diplomatas americanos em 2006.
Para o professor de relações internacionais da Fundação Getúlio Vargas Oliver Stuenkel, a interpretação é equivocada. Ele afirma que, no jargão diplomático, informante é qualquer pessoa que dialogue com diplomatas em serviço.
"Uma boa embaixada tem como missão conversar com todo mundo e colher informações", afirma.
Telegramas
Stuenkel cita telegramas que mostram que, antes de ser condenado no escândalo do mensalão e na Lava Jato, o ex-ministro da Casa Civil José Dirceu também se reunia com diplomatas americanos para tratar da política no Brasil.
Para o professor, muitas teorias sobre o envolvimento dos EUA no impeachment se baseiam no apoio que Washington deu a ditaduras latino-americanas durante a Guerra Fria. Na época, a Casa Branca temia a ascensão do comunismo e ajudou a articular golpes militares na região.
Mesmo após o fim da Guerra Fria, porém, os Estados Unidos chancelaram um golpe fracassado contra o presidente venezuelano Hugo Chávez, em 2002. Segundo Stuenkel, o apoio americano foi "um grave erro que até hoje tem custos".
O professor afirma, no entanto, que o Brasil não está entre as prioridades da política externa dos EUA e que a Casa Branca teria pouco a ganhar com a desestabilização do país.
"Vemos cada vez mais em Washington um desejo de que o Brasil assuma mais poder para cuidar dos problemas da região, como a crise na Venezuela, e deixem os EUA usar toda sua energia para lidar com o Oriente Médio, a China, a Rússia e outros temas que consideram mais importantes."
Outras teorias sobre o envolvimento dos EUA no impeachment, segundo Stuenkel, surgem da crença de que o novo governo brasileiro será melhor para Washington que o anterior. Ele diz, porém, que a relação entre os dois países atingiu seu ápice nos anos Lula.
Lula, diz Stuenkel, mantinha com o então presidente americano George W. Bush "não só uma amizade pessoal, mas uma cooperação ainda maior que a que existia entre FHC e Bill Clinton".
Em artigo recente na Folha de S.Paulo em que comparou as políticas externas petista e tucana, o também professor de relações internacionais da FGV Matias Spektor escreveu que "o discurso mais incendiário que um presidente brasileiro já fez em relação à hegemonia americana não foi de Lula, mas de FHC".
No discurso, o tucano atacou a globalização e o "capitalismo especulativo", referência ao modelo econômico americano. Já Lula, diz Spektor, costumava adotar um tom mais moderado em relação a Washington. Em 2009, Obama chegou a dizer que o político brasileiro era "o cara", ainda que no ano seguinte viesse a rejeitar os esforços do Brasil para mediar um acordo sobre o programa nuclear iraniano.
Um assessor do Departamento de Estado - órgão que coordena a política externa dos EUA - disse à BBC Brasil que o governo americano não comentaria informações provenientes de documentos secretos.
Ele disse que são "absolutamente falsos" os relatos sobre o envolvimento dos EUA no impeachment. "Nós continuamos a nos engajar com o governo brasileiro como parte do nosso trabalho normal e rotineiro", afirma.
Segundo o assessor, o governo americano "continua comprometido com a manutenção da sólida relação bilateral que existe entre os dois países".
Os Estados Unidos vêm tratando o impeachment com cautela. Na quarta-feira, na manifestação mais contundente de um representante do país sobre o tema, o embaixador americano na Organização dos Estados Americanos (OEA) rejeitou a tese de que o afastamento de Dilma tenha sido um "golpe suave ou de outro tipo".
"O que ocorreu no Brasil seguiu o processo legal constitucional e respeitando completamente a democracia", afirmou Michael Fitzpatrick.