Inquérito de Toffoli é 'exercício arbitrário de poder', diz ex-procurador-geral da República
Para Roberto Gurgel, STF usurpou função do Ministério Público e age ilegalmente como 'acusador, investigador e julgador' em inquérito
"Inconcebível no nosso estágio civilizatório", "um exercício arbitrário de poder" e uma "afronta à Constituição e ao sistema penal".
É assim que o ex-procurador-geral da República Roberto Gurgel classificou, em entrevista à BBC News Brasil, o inquérito aberto pelo presidente do Supremo Tribunal Federal, José Dias Toffoli, para investigar ofensas, ameaças e fake news contra ministros da Corte.
"O caminho pelo qual optou a presidência do tribunal afronta a Constituição e o sistema acusatório consagrado no sistema penal brasileiro", disse Gurgel.
"É um caminho muito pouco republicano e pouco democrático, como se fosse possível concentrar nas mãos de uma única pessoa todas as funções do processo penal: a acusação, a investigação e a eventual condenação."
Instaurado de ofício por Toffoli, em março, o inquérito exclui por completo a participação do Ministério Público nas investigações e se tornou alvo de criticas não só de procuradores, mas também de membros do Executivo e do Legislativo, que temem uma concentração excessiva de poder nas mãos do Supremo.
Na semana passada, a polêmica aumentou quando o ministro Alexandre de Moraes, escolhido por Toffoli para comandar as investigações, mandou retirar do ar uma reportagem publicada pelo site O Antagonista e pela revista digital Crusoé que mencionava o presidente do Supremo.
A decisão gerou forte reação contrária da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), do presidente da República, Jair Bolsonaro, de militares e procuradores. Dias depois, criticado também pelos colegas Marco Aurélio Mello e Celso de Mello, Moraes revogou a própria decisão, mas refutou a tese de censura à imprensa.
A reportagem suprimida, publicada no dia 11, cita um documento no qual Marcelo Odebrecht, empreiteiro e delator da Lava Jato, explica que o apelido "amigo do amigo do meu pai" em e-mails de executivos da empresa faz referência a Toffoli.
Consulta ao plenário
Também na semana passada, Moraes rejeitou pedido da procuradora-geral da República, Raquel Dodge, para arquivar o inquérito. Nesta segunda-feira, em conversa com jornalistas após um seminário em Lisboa, o ministro defendeu a continuidade do inquérito.
"A doutora Raquel Dodge tem a sua opinião, e é lícito que o Ministério Público tenha sua opinião. Mas o Judiciário não precisa concordar com as posições do Ministério Público", afirmou.
Na entrevista à BBC News Brasil, Gurgel, que foi um dos principais apoiadores da candidatura de Dodge à PGR, disse que as decisões de Toffoli e do relator "criam um inegável mal-estar" entre STF e Ministério Público.
Ele defendeu que Dodge recorra da decisão que negou o arquivamento, para pedir que o caso seja levado ao plenário, e que o MPF como um todo "cobre" que o julgamento ocorra o quanto antes.
"O Supremo deve ser sempre parte da solução, jamais parte do problema. Infelizmente, com essa atitude equivocada tomada pelo presidente do Supremo e continuada pelo ministro Alexandre de Moraes, o Supremo tornou-se parte do problema. Ele acabou desempenhando um papel que jamais deveria ser dele, de criar uma crise institucional", afirmou.
Já tramitam no STF sete pedidos para arquivar o inquérito aberto por Toffoli. O relator é o ministro Edson Fachin. Mas, ainda que ele termine de elaborar seu voto e libere o caso para votação no plenário, caberá ao presidente do Supremo decidir quando colocar o processo em pauta.
"É indispensável que o assunto seja levado ao plenário. É o plenário que representa, na sua inteireza, o Supremo Tribunal Federal", defendeu Gurgel, que foi procurador-geral da República por dois mandatos consecutivos, entre 2009 e 2011, e chefiou o Ministério Público durante o julgamento do mensalão no STF.
A BBC News Brasil entrou em contato com o STF, mas ainda não havia recebido resposta de Toffoli ou Moraes até a publicação desta entrevista.
Leia os principais trechos:
BBC News Brasil - Qual a sua opinião sobre a exclusão do Ministério Público no inquérito aberto pelo ministro Dias Toffoli para investigar ofensas a integrantes do Supremo?
Roberto Gurgel - Evidentemente, isso não é possível. No nosso sistema processual penal a Constituição consagrou o princípio acusatório em que cada uma das partes no processo tem a sua função e realiza a sua função.
Então, ao Judiciário cumpre tão somente julgar, ele não pode investigar e acusar. A instauração do inquérito pelo presidente do Supremo é absolutamente inválida, porque o que deveria ter sido feito é que, diante da possibilidade de ocorrência de um crime, o tribunal deveria oficiar à procuradora-geral da República para que tomasse as providências a cargo do Ministério Público.
BBC News Brasil - Quais as consequências possíveis dessa concentração de funções a que o senhor se refere, de o relator do inquérito atuar como investigador e juiz?
Roberto Gurgel - Se isso fosse possível, e não é, seria um retrocesso imenso, porque a mesma pessoa que investiga acusa e julga. É algo absolutamente inconcebível no nosso estágio civilizatório. Invocou-se o Artigo 43 do regimento interno do Supremo como fundamento para essa possibilidade de instauração do inquérito. Mas o artigo fala em crimes cometidos nas dependências do STF. A leitura dele não deixa dúvida de que a hipótese é inteiramente diferente do caso específico. É uma evocação equivocada do Artigo 43.
Outra coisa que tem acontecido com frequência é a confusão do Supremo Tribunal Federal com os seus membros. Não necessariamente uma ofensa dirigida a um dos membros do tribunal significa uma ofensa à própria Corte.
BBC News Brasil - Um dos argumentos do ministro Dias Toffoli para justificar o uso do regimento interno é o de que "os ministros são o próprio tribunal". Esse argumento, então, na sua visão, não se sustenta?
Roberto Gurgel - Acho que é um argumento não satisfatório. Não necessariamente a ofensa a um ministro constitui ofensa ao próprio tribunal e à própria Corte. E aquele dispositivo 43 do regimento interno fala em infração penal na sede ou dependência do STF.
Evidentemente não se sustenta nesse caso que cada ministro equivaleria à sede ou dependência do tribunal. Isso seria, como gosta de dizer o ministro Marco Aurélio, 'dar um passo largo demais'.
BBC News Brasil - O que pode estar por trás dessa decisão de excluir o Ministério Público?
Roberto Gurgel - Eu confesso que não enxergo um motivo concreto para isso. [Ter o Ministério Público como condutor das investigações] é o caminho usual, é o devido processo legal e nada a meu ver desaconselharia a remessa do caso à Procuradoria-Geral da República para examinar e adotar as providências que entendesse cabível.
O caminho pelo qual optou a Presidência do tribunal afronta a Constituição e o sistema acusatório consagrado no sistema penal brasileiro. E é um caminho muito pouco republicano e pouco democrático, como se fosse possível concentrar nas mãos de uma única pessoa todas as funções do processo penal: a acusação, a investigação e a eventual condenação.
BBC News Brasil - A procuradora Raquel Dodge encaminhou ofício ao relator do inquérito, ministro Alexandre de Moraes, pedindo o arquivamento, mas Moraes desconsiderou esse pedido. Que consequências essa decisão traz?
Roberto Gurgel - É mais um equívoco, com todas as vênias ao ministro Alexandre de Moraes e ao ministro Toffoli. Pelo nosso sistema processual penal, quem é o titular da ação penal é o Ministério Público, privativamente. Se o Ministério Público entende que aquela investigação não é viável e se o inquérito se desenvolve perante o Supremo Tribunal Federal, e se quem representa o Ministério Público perante o STF é a procuradora-geral da República, a manifestação dela no sentido do arquivamento deve ser necessariamente observada pelo tribunal.
Esse sempre foi o entendimento, essa sempre foi a posição e a jurisprudência tranquila e antiquíssima do STF. Afirmar que quem decide se um inquérito permanece aberto é o Judiciário é, mais uma vez, fazer uma afronta ao sistema processual penal brasileiro.
BBC News Brasil - Como fica a relação entre o Supremo e o Ministério Público após esse episódio? Para juristas ouvidos pela BBC News Brasil, a exclusão da PGR no inquérito denota desconfiança do STF em relação ao Ministério Público ou a possibilidade de procuradores estarem entre os investigados.
Roberto Gurgel - Não há dúvida de que essa posição de ignorar as atribuições constitucionais do Ministério Público cria um inegável mal-estar entre as duas instituições. Mas o que é importante é perceber que este entendimento, seja da instauração do inquérito, seja da recusa do pedido de arquivamento formulado pela procuradora-geral da República, aparentemente, é um entendimento minoritário no Supremo. E quando a questão for levada ao plenário, é provável que se restabeleça o respeito às atribuições constitucionais do Ministério Público que, sem dúvida alguma, foram feridas pela decisão do ministro Alexandre de Moraes.
BBC News Brasil - Quem decide quando levar o caso a plenário é o presidente do STF, no caso o ministro Dias Toffoli. Como garantir que o assunto será julgado logo, se a decisão cabe exatamente a quem abriu o inquérito que está sendo questionado?
Roberto Gurgel - É indispensável que o assunto seja levado ao plenário do Supremo. É o plenário que representa, na sua inteireza, o Supremo Tribunal Federal. Então, não me parece aceitável que se procure evitar a ida do assunto ao plenário. É fundamental que o tribunal pleno se manifeste e decida sobre essas questões extremamente relevantes para a democracia.
BBC News Brasil - O que a Procuradoria-Geral da República pode fazer a partir de agora? Só resta esperar que o caso vá ao plenário?
Roberto Gurgel - Acredito que a procuradora-geral deverá recorrer da decisão de Alexandre de Moraes (de rejeitar o arquivamento do inquérito) para que o assunto vá ao plenário. E acho que o Ministério Público, e não apenas ele, deverá cobrar que o assunto seja levado no menor tempo possível para julgamento no plenário do Supremo.
BBC News Brasil - Um aspecto do inquérito que levantou questionamentos foi o fato de se propor a apurar fatos genéricos ou amplos - injúrias, difamações, calúnias, ameaças e "fake news" contra ministros -, em vez de ter um objeto específico. Qual a sua visão sobre isso?
Roberto Gurgel - Isso é inteiramente inadmissível. A procuradora-geral da República, aliás, destacou muito bem isso na manifestação que dirigiu ao ministro Alexandre de Moraes, afirmando a inadmissibilidade de investigações absolutamente genéricas.
Não se sabe, a rigor, o que precisamente está sendo investigado e quem são os alvos. Investigações genéricas são incompatíveis com o estado democrático de direito e o estágio da nossa civilização. É um exercício arbitrário de poder. É uma investigação dirigida a apurar tudo em relação a todos. Isso é algo que o estado democrático de direito não pode aceitar e não pode tolerar. Isso lembra as devassas do Brasil colônia, realizadas com objetivos absolutamente genéricos.
BBC News Brasil - A gente viu, nos últimos dias, integrantes do Executivo e Legislativo criticando o inquérito e a decisão - depois revogada - de retirar de circulação reportagem da revista Crusoé. Quais as consequências desse episódio para a relação do STF com outros Poderes?
Roberto Gurgel - O Supremo deve ser sempre parte da solução, jamais parte do problema. Infelizmente, com essa atitude equivocada tomada pelo presidente do Supremo e continuada pelo ministro Alexandre de Moraes, o Supremo tornou-se parte do problema.
Ele acabou desempenhando um papel que jamais deveria ser dele, de criar uma crise institucional. Mas temos que ver isso de maneira positiva, como uma posição equivocada de dois integrantes do Supremo, talvez acompanhada por mais alguns. Mas majoritariamente o Supremo, eu espero, há de decidir contra a existência do inquérito.
BBC News Brasil - Essa decisão de retirar uma reportagem de circulação ainda pode gerar consequências para a liberdade de imprensa?
Gurgel - Qualquer ataque, sob qualquer forma, à liberdade de imprensa é sempre muito grave. Claro que o recuo do ministro Alexandre de Moraes foi positivo, afastou a censura, mas é preciso que esse tipo de coisa fique realmente como um ponto fora da curva. E que não se tente repetir, em outras oportunidades, esse tipo de entendimento judicial que, sem dúvida nenhuma, afronta a liberdade de expressão.
BBC News Brasil - Em junho, a ANPR (Associação Nacional dos Procuradores da República) vai definir a listra tríplice para a vaga de procurador-geral da República. Há dúvidas sobre se Dodge será reconduzida e questionamentos sobre se o procurador deve ser escolhido dentre os nomes da lista. O que o senhor acha da possibilidade de o presidente não selecionar o PGR dentre os nomes votados pela ANPR?
Gurgel - A meu ver, a observância da lista foi um avanço importante no sentido de assegurar a autonomia e independência do Ministério Público. Escolher fora da lista talvez represente um retrocesso importante nessa independência e autonomia.
BBC News Brasil - Nos bastidores, membros do Executivo falam sobre a possibilidade de escolher um nome alinhado com a filosofia da Lava Jato, talvez até alguém que tenha atuado na investigação. Um dos possíveis candidatos é o procurador Vladimir Aras, que foi da força-tarefa da Lava Jato na PGR. Na sua opinião, qual o perfil ideal para ocupar a PGR no momento atual?
Gurgel - Eu diria, e sei que estou sendo genérico, que ele deve ter o compromisso de cumprir a missão constitucional do Ministério Público e de fazer isso com total independência e muito equilíbrio, muita serenidade e sobriedade. Holofotes são incompatíveis com o Ministério Público. O momento que o país vive é complexo e é preciso que o procurador-geral tenha a experiência e o conhecimento necessários para enfrentar essas questões complexas.