Quatro perguntas para entender a divulgação das conversas telefônicas de Lula
A divulgação de gravações feitas pela Polícia Federal que mostram conversas do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva levaram milhares de manifestantes às ruas e também provocaram muitas dúvidas.
Um dia depois que as ligações começaram a circular pela imprensa, perguntas sobre a legalidade da ação de Moro, os supostos indícios de irregularidades nas conversas e as consequências de tudo isso para a Lava Jato povoam a cabeça dos brasileiros.
O juiz Sergio Moro, responsável pelas investigações da operação na 1ª instância, retirou o sigilo sobre os dados colhidos na 24ª etapa da Lava Jato, tornando públicos áudios que, segundo os investigadores, sugerem que o petista foi nomeado ministro da Casa Civil para evitar ser alvo de ações da Justiça do Paraná.
Como ministro, Lula passa a ter foro privilegiado e as suspeitas sobre ele seriam investigadas pela Procuradoria Geral da República e eventualmente julgadas pelo Supremo Tribunal Federal.
Na conversa gravada e divulgada na quarta-feira, Dilma diz que estava mandando o termo de posse para o ex-presidente e acrescenta: "só usa em caso de necessidade". Nesta quinta, a cerimônia de posse ocorreu em Brasília, mas foi contestada por um juiz federal de Brasília.
Em nota, o Palácio do Planalto criticou a divulgação do áudio como uma "afronta aos direitos e garantias" da Presidência da República e disse que deve entrar na Justiça contra Moro. De acordo com a Presidência, o termo de posse de Lula como novo ministro-chefe da Casa Civil foi encaminhado para que ele assinasse caso não pudesse comparecer à cerimônia.
Frente a tantas questões, a BBC Brasil consultou advogados para esclarecer os principais pontos da divulgação da conversas, além de falar das consequências para o andamento da Lava Jato:
As conversas de Lula falam mesmo de obstrução de Justiça?
Depende da interpretação. Segundo o Código Penal, é crime de obstrução "impedir, embaraçar ou de qualquer forma obstruir cumprimento de ordem judicial ou ação da autoridade policial em investigação".
No diálogo de Lula com Dilma, a presidente diz que vai enviar o termo de posse para o ex-presidente e diz para ele usar "em caso de necessidade". Segundo Moro, Dilma queria evitar o julgamento de Lula na primeira instância, em Curitiba. O governo discordou com veemência essa compreensão, alegando que o envio do termo ocorreu para caso Lula não pudesse comparecer à posse em Brasília.
Além disso, em diálogo com o então ministro da Casa Civil Jacques Wagner, Lula menciona a ministra do STF Rosa Weber.
“Mas viu, querido, ela tá falando dessa reunião, ô Wagner, que queria que você visse agora, falar com ela, já que ela tá aí, falar o negócio da Rosa Weber, que tá na mão dela pra decidir. Se homem não tem saco, que sabe uma mulher corajosa possa fazer o que os homens não fizeram.”
Na ocasião, Weber negou pedido apresentado pela defesa do ex-presidente para suspender investigações sobre um triplex em Guarujá (SP) e um sítio em Atibaia (SP).
Para o advogado Ives Gandra Martins, professor emérito da Universidade Mackenzie, há indícios de uma tentativa de obstrução da Justiça nos dois casos, o que "figura no Código Penal". "É como uma tentativa de homicídio. A pena é menor, mas é punida."
"Dá para entender que Dilma só indicaria como ministro para evitar julgamento", afirma.
Marcelo Figueiredo, professor da PUC-SP na área de Direito Público, com ênfase em Direito Constitucional, engrossa o coro, principalmente quanto a Rosa Weber: "é realmente uma obstrução, uma falta de respeito pelo magistrado, que tem que estar isento".
No entanto, para o advogado criminal e coordenador do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, Paulo Sérgio de Oliveira, "a vontade por si só não é punível".
"Me parece, numa primeira visão, que nada disso foi levado a efeito, embora fosse a vontade de alguém. Ficou naquele campo da preparação, é menos grave."
A decisão vai ficar o Supremo Tribunal Federal, agora responsável pelo processo.
A divulgação das gravações foi legal?
A lei que regulamenta as escutas telefônicas, de 1996, diz que a interceptação de conversas telefônicas deve ficar sob segredo de Justiça. E que é crime realizar grampos ou quebrar segredo de Justiça "sem autorização judicial ou com objetivos não autorizados por lei".
Segundo a maioria dos advogados ouvidos pela BBC Brasil, a divulgação pode ter sido irregular.
Para Edson Luis Baldan, professor de direito penal da PUC-SP e delegado há 25 anos, a atuação do juiz Sérgio Moro se encaixa nas duas hipóteses citadas acima. Isso porque algumas das conversas divulgadas foram captadas depois que o juiz determinou a interrupção da interceptação. Ou seja, elas não estavam mais dentro da autorização do juiz.
Além disso, para Baldan, Moro já não tinha competência para investigar Lula que, ministro, ficaria a cargo do STF. E, afirma, o juiz admitiu isso no despacho divulgado na quarta-feira.
Ao fim do texto, o Moro afirma que, diante da notícia de que Lula aceitou convite para ocupar o cargo na Casa Civil, as investigações seriam enviadas ao Supremo.
"O juiz divulgou ilegalmente a conversação. Não poderia mais emitir a ordem judicial, não era mais competente. Ele já havia emitido sua decisão."
Paulo Sérgio de Oliveira, do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, vai na mesma linha. Para Oliveira, por captar as falas de pessoas com foro privilegiado (Dilma e Wagner), que só podem ser investigadas por instâncias superiores, as gravações eram ilícitas e não deveriam ser incluídas nos autos, muito menos divulgadas.
"Se você tem uma interceptação e ela pode ser utilizada de acordo com a legislação, você aproveita. Se não, você descarta, porque é ilícito."
Por outro lado, há quem considere que o princípio constitucional da publicidade e o interesse público, usados por Moro para justificar sua decisão, falam mais alto.
Ives Gandra Martins diz é como "saber de um crime de extrema relevância e não tomar nenhuma providência". "Passo a ser condenado como uma pena menor pelo fato de não ter declarado (conhecimento do fato). Ele (Moro) se sentiu na obrigação de divulgar", diz.
Em despacho divulgado na manhã desta quinta-feira, o juiz disse que não via problema em divulgar uma conversa telefônica captada após sua decisão de interromper as escutas: "como havia justa causa e autorização legal para a interceptação, não vislumbro maiores problemas no ocorrido."
"Não é ainda o caso de exclusão do diálogo considerando o seu conteúdo relevante no contexto das investigações", continua.
Sobre a captação de diálogos de Dilma e Wagner, que têm foro privilegiado, Moro disse que "não altera o quadro, pois o interceptado era o investigado e não a autoridade, sendo a comunicação interceptada fortuitamente."
Quem avaliará a atitude de Moro?
O Conselho Nacional de Justiça é o órgão responsável por processar juízes suspeitos de terem cometidos irregularidades. Após denúncia, o CNJ pode abrir um processo administrativo para investigar as ações de Moro. A punição pode ir de uma simples advertência a aposentadoria compulsória.
Porém, para o professor de direito penal Paulo Sérgio de Oliveira, é improvável que Moro seja punido.
"Ele anda num momento tão prestigiado nacionalmente que não sei se alguém terá ou não coragem de colocar limites. Espero que o CNJ não se intimide e vá adiante."
Como esse caso vai afetar Lava Jato?
A maioria dos advogados ouvidos pela BBC Brasil considera que as gravações telefônicas divulgadas por Moro são irregulares. No entanto, discordam sobre o impacto dessa suposta ilegalidade no andamento das investigações.
O professor da PUC-SP Marcelo Figueiredo diz que, apesar de considerá-las ilícitas, as gravações têm conteúdo preocupante, que farão surgir novos processos.
"O dano já foi feito. A questão da Rosa Weber mostra que Lula cobra de juiz e promotor uma fidelidade política. Isso não pode ser tratado como relação pessoal. A Constituição prega exatamente o oposto."
Já na visão do advogado Paulo Sérgio de Oliveira, uma prova que seja considerada ilícita "contamina" as outras evidências, que podem ser postas em dúvida. Além de influenciar as decisões do ministro do Supremo Tribunal Federal.
"Pode comprometer a parcialidade do julgador. A princípio pode ficar contra (o réu), além de gerar outros problemas. O juiz pode se forçar para não se contaminar e acabar virando para o outro lado, ficando a favor do réu. Vai tirar do trilho o andamento normal do processo."