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Política

O que é o 'dilema do prisioneiro', que inspira estratégia da PF em depoimentos sobre joias de Bolsonaro

Polícia Federal marcou depoimentos de 10 pessoas, incluindo o do ex-presidente Jair Bolsonaro, para o mesmo dia e mesmo horário

5 abr 2023 - 13h08
(atualizado às 14h18)
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O ex-presidente Jair Bolsonaro vai prestar depoimento à Polícia Federal no caso que investiga a entrada de joias dadas pela Arábia Saudita à sua família
O ex-presidente Jair Bolsonaro vai prestar depoimento à Polícia Federal no caso que investiga a entrada de joias dadas pela Arábia Saudita à sua família
Foto: Reuters / BBC News Brasil

Nesta quarta-feira, 5, o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), seu ex-ajudante-de-ordens, tenente-coronel do Exército Mauro Cid, e outras oito pessoas irão prestar depoimento no inquérito aberto pela Polícia Federal para apurar as circunstâncias envolvendo a entrada no Brasil de conjuntos de joias - entre eles, um avaliado em R$ 16,5 milhões - dados à família Bolsonaro em 2021 pelo governo da Arábia Saudita.

Todos os depoimentos estão marcados não apenas para o mesmo dia, mas para a mesma hora: 14h30. A escolha da data e horário, segundo fontes ouvidas pela BBC News Brasil, não foi aleatória.

A ideia por trás desse agendamento avaliado por advogados ouvidos pela reportagem como "inusual" seria pôr em prática os mecanismos de um experimento estudado por matemáticos, economistas, psicólogos e cientistas sociais há quase 70 anos

O experimento ficou mundialmente conhecido como "dilema do prisioneiro". Mas o que um mecanismo teria a ver com o depoimento de Jair Bolsonaro e as joias dadas pela Arábia Saudita num contexto em que ninguém, até o momento, está está na condição de "prisioneiro"?

Em primeiro lugar, é importante rememorar o que levou Bolsonaro a prestar depoimento à PF. Em março, reportagens do jornal O Estado de S. Paulo revelaram que a Receita Federal reteve, em 2021, um estojo com joias dado pelo governo da Arábia Saudita à família Bolsonaro.

Entre os itens estava um colar de diamantes destinado à então primeira-dama Michelle Bolsonaro. Pela legislação brasileira, bens acima de US$ 1 mil que entrem no Brasil precisam ser declarados à Receita. Caso não o sejam, seus donos precisam pagar os impostos devidos e uma multa.

No caso de presentes oficiais destinados ao acervo público da Presidência da República, a legislação prevê a isenção de impostos.

O pacote estava na mochila de um assessor do então ministro de Minas e Energia Bento Albuquerque, que havia voltado de uma viagem oficial à Arábia Saudita. O assessor não declarou os bens ao chegar ao Brasil.

Reportagens também mostraram que, a três dias do fim do mandato de Bolsonaro, seu então ajudante-de-ordens, Mauro Cid, assinou um ofício endereçado ao então secretário especial da Receita Federal Julio Soares solicitando a liberação das joias.

Um emissário da Presidência foi enviado à Receita Federal em Guarulhos munido do ofício e solicitou a devolução das joias. Os fiscais, no entanto, alegaram que o ofício não era o documento adequado para a liberação e manteve o pacote retido.

Apesar disso, o atual ministro da Justiça, Flávio Dino, determinou a abertura de um inquérito para apurar o caso.

Em entrevista, ele citou a suspeita de pelo menos três crimes: peculato (quando servidor se apropria de um bem público), descaminho (quando bens são desviados para não serem tributados) e lavagem de dinheiro (quando a origem de recurso é dissimulada para ter aparência de legalidade).

Desde então, Bolsonaro tem negado qualquer irregularidade em relação ao caso e dito que só soube da existência do pacote confiscado pela Receita a partir das reportagens publicadas pela imprensa.

"Um ministro nosso foi na região da Arábia Saudita e ganhou dois presentes. Um pra mim e pra primeira-dama. O (que era) pra mim, tomei conhecimento no final do ano passado que tinha chegado. O da primeira-dama ficou na Alfândega. Ela e eu tomamos conhecimento pela imprensa", disse Bolsonaro em entrevista à CNN Brasil, no dia 29 de março.

É nesse contexto que os depoimentos de Bolsonaro, Mauro Cid e outras oito pessoas foram agendados.

Bolsonaro e o rei Salman Bin Abdulaziz na visita do brasileiro à Arábia Saudita em 2019.; após visita, governo saudita presenteou o então presidente com um estojo com joias que ficou com Bolsonaro
Bolsonaro e o rei Salman Bin Abdulaziz na visita do brasileiro à Arábia Saudita em 2019.; após visita, governo saudita presenteou o então presidente com um estojo com joias que ficou com Bolsonaro
Foto: José Dias/PR / BBC News Brasil

Como é o dilema do prisioneiro?

O mecanismo que ficou conhecido como "dilema do prisioneiro" faz parte de uma linha de estudos mais ampla chamada Teoria dos Jogos. Ela se dedica a analisar como indivíduos ou corporações envolvidos em uma determinada situação buscam melhorar os seus resultados.

O filme Uma Mente Brilhante, estrelado pelo ator Russell Crowe, mostra a vida de um dos grandes estudiosos da Teoria dos Jogos, o matemático John Forbes Nash, que em 1994 foi um dos vencedores do Prêmio Nobel de Economia.

A partir da segunda metade do século 20, a Teoria dos Jogos se transformou em um dos principais arcabouços teóricos de um campo das Ciências Econômicas que ficou conhecido como economia comportamental.

E foi justamente nos início dos anos 1950 que o "dilema do prisioneiro" começou a ser estudado pelos cientistas Melvin Dresher e Merrill Flood e ficou famoso após ser formulado pelo matemático americano Albert William Tucker. Os três buscavam entender os mecanismos que faziam indivíduos cooperarem entre si.

Uma das formulações mais conhecidas do dilema é a seguinte: a polícia prendeu duas pessoas, "Row" e "Col", suspeitas de um crime grave. Elas são postas em celas diferentes e ficam sem comunicação uma com a outra.

O promotor do caso chega um dos presos e oferece o seguinte acordo:

  • se os dois confessam o crime, eles são condenados a 10 anos de prisão;
  • se o primeiro confessa e o segundo nega, o primeiro é condenado a um ano de prisão, mas o que negou será condenado a 20 anos;
  • se os dois negam o crime, ambos são condenados a dois anos de prisão.

Os estudiosos apontam que, pela forma como as regras do jogo são colocadas, os incentivos são para que tanto um quanto o outro neguem as acusações, conseguindo assim, penas mais brandas.

No entanto, o fato de eles não saberem exatamente o que cada um vai dizer, aumenta as chances de eles não cooperarem entre si e acabarem condenados a penas mais severas.

"A lição geral é que sempre que dois ou mais jogadores interagem e suas preferências têm uma estrutura muito comum e razoável, as ações que mais beneficiam cada indivíduo não beneficiam o grupo. Isso torna o dilema do prisioneiro relevante para uma ampla gama de fenômenos sociais", escreveu o professor de Filosofia na Texas A&M University, dos Estados Unidos, no livro The Prisoner's Dilemma (Classic Philosophical Arguments) ("O Dilema do Prisioneiro - Debates Filosóficos Clássicos", em tradução livre), publicado em 2015.

Na esfera criminal, o dilema do prisioneiro e a teoria dos jogos são frequentemente usados para explicar os mecanismos que levam pessoas a delatar crimes a partir de incentivos previamente estabelecidos.

No Brasil, por exemplo, a lógica vem sendo aplicada em acordos de leniência entre o governo federal e empresas que cometem crimes contra a ordem econômica ou a administração pública.

Em casos de carteis, por exemplo, a ideia é que a primeira empresa que confessar a prática leva os melhores benefícios. A premissa é de que oferecendo esse tipo de estímulo, haveria menos incentivos às empresas em manter o cartel.

O dilema do prisioneiro também vem sendo abordado em artigos científicos para ilustrar os mecanismos que levaram a delações premiadas durante a Operação Lava Jato.

No caso envolvendo as joias dadas a Bolsonaro, os investigadores buscam entender, por exemplo, se Bolsonaro tinha ou não conhecimento de que as joias haviam sido apreendidas pela Receita e se foi ele quem ordenou Mauro Cid a tentar reaver o material.

Como Mauro Cid era ajudante-de-ordens de Bolsonaro, um dos seus assessores mais próximos, a expectativa é sobre o que os dois irão responder quando forem questionados sobre isso.

Para o professor da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) Gustavo Badaró, a tomada de depoimentos simultâneos no caso envolvendo Bolsonaro lembra a estratégia do dilema do prisioneiro.

"Lembra o dilema (do prisioneiro) porque ele dificulta uma eventual combinação de versões entre os depoentes. Eles não têm como saber com antecedência exatamente o que é que a outra pessoa vai dizer. Isso cria um ambiente de incerteza para quem está dando o depoimento", afirmou Badaró à BBC News Brasil.

Badaró diz ainda que, apesar de criar um ambiente de suspeição sobre o que as outras pessoas irão dizer, os depoimentos simultâneos não são uma garantia de que versões não possam vir a ser combinadas ou mesmo que os depoentes não possam receber alguma orientação.

"Se os trâmites forem respeitados, os depoentes deverão estar acompanhados dos seus advogados e eles podem auxiliar seus clientes no momento das perguntas. A estratégia pode demonstrar alguma astúcia das autoridades policiais, mas não é infalível", disse Badaró.

Para o também professor de Direito da USP Pierpaolo Bottini, a tomada dos depoimentos de forma simultânea não representa uma prática abusiva da Polícia Federal.

"Eu não vejo nenhum tipo de abuso de marcar os depoimentos ao mesmo tempo, desde que todas as pessoas tenham seus direito a advogados, acesso aos autos e direito ao silêncio", disse Bottini.

O advogado de defesa de Mauro Cid, Rodrigo Roca, disse à reportagem da BBC News Brasil que a medida adotada pela PF é "inusual", mas que não vê nenhuma ilegalidade na convocação dos depoimentos ao mesmo tempo. Apesar disso, ele criticou a estratégia.

"Essa estratégia só faz sentido numa ficção policialesca. Se a intenção fosse evitar (combinação de versões), seria uma tolice. Os interrogatórios são cercados de garantias processuais que impediram esse joguinho. Todos os interrogados podem se recusar a responder uma pergunta a qualquer momento", disse Roca.

"Apesar de ser inusual, parece que é uma forma de otimização do serviço. Pode ser usado pro bem ou pro mal. Estão querendo correr com alguma finalidade espúria ou há tanto serviço que resolveram otimizar os autos das oitivas pra caberem no prazo?", indagou o advogado.

Procurada pela BBC News Brasil, a Polícia Federal disse, em nota, que não pode fornecer dados sobre as investigações.

"A Polícia Federal não fornece informações sobre possíveis oitivas a serem realizadas em seus inquéritos policiais", disse a PF.

A BBC News Brasil não conseguiu localizar a defesa de Bolsonaro neste processo.

- Este texto foi publicado em https://www.bbc.com/portuguese/articles/c4nz589515xo

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