Por que deputados da base de Temer se recusam a apoiar Reforma da Previdência?
Governo perdeu apoio de quase cem integrantes da Câmara desde o impeachment de Dilma, em maio de 2016. Congressistas citam problemas de comunicação, fragilidade de líderes e medo da resposta eleitoral em 2018.
Mapear votos dos congressistas é um ritual que se repete sempre que o Legislativo se depara com uma decisão importante. Logo, diante da possibilidade de votação da Reforma da Previdência, tal contagem virou rotina na Câmara.
O assunto deve começar a ser discutido nesta quinta-feira, e pode ser votado na próxima semana, embora até no governo haja divergências sobre o calendário. Há alguns dias, a contagem era ruim para Michel Temer: a avaliação mais otimista era de 260 votos, quase 50 a menos que os 308 necessários para aprovar a mudança no sistema previdenciário.
O cálculo é do deputado Beto Mansur (PRB-SP), um dos parlamentares mais fiéis ao presidente da República. O deputado se tornou uma espécie de "mapeador oficial" de votos do atual governo. "Estamos trabalhando para buscar esses votos (que faltam)", disse ele à BBC Brasil.
Do outro lado, na oposição, a conta é de que existem cerca de 240 deputados a favor de mudar as regras da aposentadoria. "O governo está blefando. Mansur não entende nada de votos aqui dentro", diz o deputado José Guimarães (PT-CE). O cearense foi líder do governo Dilma Rousseff na Câmara (2015-2016). Hoje líder da minoria na Casa, diz contar com a ajuda de Júlio Delgado (PSB-MG) para atualizar a planilha com a posição de cada colega sobre o tema.
A atual proposta de mudança no regime prevê estabelecer uma idade mínima para se aposentar (65 anos para homens e 62 para mulheres) e um tempo mínimo de contribuição para ter direito ao benefício (15 anos para trabalhadores da iniciativa e 25 para os funcionários públicos). Além disso, quem se aposentasse com esse tempo mínimo receberia 60% da média salarial - 70% no caso dos servidores. O teto seria alcançado apenas caso se chegasse aos 40 anos de contribuição,
Se em maio de 2016 Temer contou com o voto de 367 deputados para afastar a ex-presidente Dilma Rousseff (PT), hoje é consenso que ele perdeu o apoio de uma centena de congressistas para aprovar a reforma.
A maior parte desta diferença está no chamado "Centrão", um grupo de legendas de tamanho médio e sem ideologia política definida, capitaneado por PP, PR, PSD e PTB. Políticos próximos ao Palácio do Planalto dizem que as maiores resistências estão no PR, PSD e PP, partidos sob os quais o governo intensificou a pressão nos últimos dias.
Diferentes fatores contribuíram para a erosão do apoio, segundo congressistas. Desde erros de avaliação política e comunicação do governo, que afugentou setores da população que poderiam ser favoráveis ao projeto, até a fragilidade de líderes partidários que teriam negligenciado os interesses dos deputados e monopolizado para si os benefícios concedidos pelo Planalto.
Políticos governistas e o próprio Michel Temer têm dado sinais de que a votação da reforma pode ser adiada para fevereiro de 2018. Os deputados devem "abrir a discussão" nesta quinta se houver quórum, o que não obriga o governo a pautar o assunto na semana que vem.
Pessoas próximas ao Planalto têm dito que o adiamento para 2018 é uma possibilidade real. O líder do governo no Senado, Romero Jucá (PMDB-RR), por exemplo, disse nesta quarta que há um acordo entre os presidentes da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ) e do Senado, Eunício Oliveira (PMDB-CE), para adiar a votação para fevereiro.
Horas depois, Temer contradisse Jucá, afirmando que a data da votação não estava definida. Somente depois que o relatório de Arhtur Maia (PPS-BA) para a reforma for lido na Câmara é que ele discutirá o assunto com os presidentes da Câmara e do Senado, disse o Planalto em nota. O presidente da Câmara também negou qualquer acordo.
Acabou o dinheiro?
"É que 'deu no osso'. O governo vem acumulando votações que criam desgaste junto à população, como as duas denúncias (contra Temer, geradas pela delação da JBC)", diz o deputado Pedro Cunha Lima (PSDB-PB). "Dar no osso", explica o congressista, é uma expressão usada pelos paraibanos para dizer que algo acabou (quando a carne toda já foi). "Depois da Reforma Trabalhista, da PEC do Teto e das duas denúncias, acabou a energia."
Cunha Lima integra a ala dos "cabeças pretas" do PSDB, um grupo de congressistas mais jovens e que se diz independente do governo Temer.
O PSDB defende historicamente medidas de austeridade fiscal, tendo inclusive feito mudanças na Previdência durante o governo de Fernando Henrique Cardoso, nos anos 1990.
Na tarde de ontem, o partido disse "fechou questão" a favor da reforma, na primeira reunião da Executiva do partido sob o comando do governador de São Paulo, Geraldo Alckmin. Apesar disso, por volta de 15 dos 46 deputados tucanos votarão contra. E não sofrerão punições. Na prática, portanto, não houve o "fechamento", no sentido clássico do termo.
Para o cientista político Carlos Melo, o governo errou ao atrelar desde o começo o apoio em votações importantes à distribuição de benesses, como cargos e emendas. Esses são recursos finitos, afirma. "Essa fonte (de apoio político ao governo) seria mais estável se ela fosse programática desde o princípio, não fisiológica. Se a discussão se desse em torno de ideias, de opinião, se fosse politizada desde o princípio", diz ele, que é professor do Insper.
O governo ainda gastou muitos desses recursos escassos em votações que não tinham nada a ver com o ajuste fiscal: em agosto e outubro deste ano, os deputados impediram que o Ministério Público investigasse Temer enquanto ele estivesse no cargo, lembra.
"Se o governo tivesse feito essa discussão sobre equidade, sobre privilégios do funcionalismo, desde o começo (Temer assumiu em meados de 2016), teria mais facilidade agora", diz Melo.
O professor usa como exemplo a divisão de cargos no governo: logo depois de assumir o Planalto, o grupo de Temer tinha à disposição, para distribuir, um manancial de postos comissionados (ocupados sob indicação) antes ocupados pelo PT e outros partidos de esquerda. A distribuição de cargos ajudou o governo a colher vitórias no Congresso como a PEC do Teto de Gastos, mas esse estoque parece ter acabado, diz o cientista político.
No entorno de Michel Temer, porém, a ordem agora é desvincular o apoio à reforma de qualquer benesse, e fazer a defesa política da mudança nas regras previdenciárias.
"O deputado que não votar a reforma como veio estará votando com os ricos, e não com os brasileiros que mais sofrem. São os ricos que querem manter a Previdência com está. No ano que vem, com a reforma aprovada, a economia estará voando. A economia será o grande tema positivo da eleição", diz à BBC Brasil o deputado Darcísio Perondi (PMDB-RS), integrante do "núcleo duro" governista na Câmara.
Líderes que não lideram
Nos últimos dias, alguns partidos políticos "fecharam questão" em defesa da mudança nas regras previdenciárias. O primeiro foi o PMDB, seguido por PPS e PTB. O DEM também deve fazer o mesmo esta semana, e é possível que também o PP tome esta atitude.
O "fechamento de questão" significa uma decisão formal do partido de apoiar algum tema. E quem votar contra pode ser punido, até mesmo com a expulsão.
Muitos partidos, porém, não estão em condições de ameaçar os deputados para fazê-los votar conforme a orientação dos líderes. Isso é especialmente verdadeiro no "centrão", onde há muita insatisfação nas bancadas. Congressistas destes partidos acusam os comandantes das legendas de beneficiar-se pessoalmente da proximidade com o governo, deixando de lado os pleitos da bancada.
"Os cargos do partido (o PP) estão nas mãos de 5 pessoas: o Arthur Lira (deputado por Alagoas), o pai dele, Benedito de Lira (senador por Alagoas), o Ciro Nogueira (senador pelo Piauí e presidente nacional do PP), Agnaldo Ribeiro (deputado pela Paraíba) e Ricardo Barros (ministro da Saúde). Não chegam nos deputados", diz um congressista importante da legenda, sob condição de anonimato.
"Esses cinco que eu falei estão 'pintando e bordando' com o Michel Temer. Nunca tiveram tanto poder", diz o deputado. Para o congressista, o partido pode até fechar questão em torno da reforma, mas a quantidade de votos que serão entregues é incerta.
O deputado lembra que em março haverá uma "janela" de trocas partidárias, em que os congressistas poderão mudar de sigla sem perder o mandato. Por isso, não é provável que o comando das legendas "estique a corda", ameaçando de punição quem votar contra a reforma.
Falando em nome da cúpula partidária, Ciro Nogueira respondeu às críticas dizendo que "insatisfação, em toda bancada existe". Mas assegurou que "o PP sempre foi o partido mais fiel ao governo, com índices superiores até ao PMDB. E na Reforma da Previdência com certeza vai ser também. Nosso índice de infidelidade é inferior a 10%", disse. Além disso, "se existe um partido que é totalmente democrático na questão de indicações e de verbas, é nosso", disse.
Segundo um importante articulador do Planalto na Câmara, um fenômeno estaria acontecendo no PSD: o presidente da sigla, o ministro Gilberto Kassab (Ciência, Tecnologia, Inovação e Comunicações) não teria verdadeiro controle sobre os deputados.
O partido foi formado por congressistas insatisfeitos com suas legendas e desde o início tinha a proposta de respeitar a vontade de cada congressista (daí Kassab dizer, em 2011, que a sigla "não será de direita, não será de esquerda, nem de centro"). O PSD não fechou questão nem mesmo nas duas denúncias do ex-procurador-Geral da República Rodrigo Janot contra Michel Temer, mesmo tendo ministérios no governo.
Altas expectativas, falta de comunicação
Parte dos deputados que acha que o Planalto errou ao apresentar uma primeira versão, considerada dura, da Reforma da Previdência. O texto original, enviado ao Congresso em setembro passado, restringia o alcance da aposentadoria rural e o Benefício de Prestação Continuada (o BPC, pago a pessoas com deficiência, por exemplo), entre outros.
"A percepção que a sociedade tem da reforma têm sofrido uma profunda transformação. Não há dúvida de que aquele texto inicial, que foi pra cá remetido pelo governo, propunha realmente a diminuição de alguns direitos de pessoas mais pobres. Tudo isso saiu do texto", disse o deputado Arthur Maia (PPS-BA), relator da reforma.
O governo teria, portanto, superestimado a própria capacidade de articulação política ao propor uma reforma mais pesada do que seria capaz de bancar.
Além disso, problemas de comunicação e de disputa da opinião pública teriam ocorrido.
É consenso até no governo que a primeira fase da campanha publicitária da reforma não surtiu o efeito desejado. As peças, do começo de 2017, tinham como slogan a frase "Previdência. Reformar hoje para garantir o amanhã". As propagandas usavam dados econômicos, considerados de difícil compreensão e não teriam sido bem entendidas pela população.
É o que disse também à BBC Brasil o deputado Sóstenes Cavalcante (DEM-RJ). Mesmo tendo votado a favor do impeachment, ele é frontalmente contrário à reforma.
A oposição, capitaneada pelo PT, dá como certo que a reforma "não será aceita pela população nem pintada de ouro", como diz o petista José Guimarães.
"O que está acontecendo é que a reforma é um tema que atinge a todos os brasileiros, indistintamente. O povo entendeu qual é o sentido da reforma, que é a retirada de direitos. Isso criou uma rejeição global ao projeto, o que acaba repercutindo nos deputados", disse à BBC Brasil o líder do PT na Câmara, deputado Carlos Zarattini (SP).
"Reforma trabalhista e PEC do Teto eram temas muito técnicos, difíceis das pessoas entenderem. Por isso não tinha tanta repercussão quanto a Previdência", diz ele. "E agora, essa tentativa de votar foi como soprar a brasa. A pressão (contra a reforma) aumentou", completou.
'Não tem essa vinculação'
Mas o que dizem os deputados que "mudaram de lado", isto é, que votaram a favor do impeachment, e agora são contra a reforma da Previdência?
"Essa simplificação (de que quem votou pelo impeachment precisaria votar sempre com o governo Temer) eu rejeito. Quem votou no impeachment o fez por acreditar que a Dilma cometeu um crime de responsabilidade, e não para apoiar o Temer. Da mesma forma, eu não votei a favor das denúncias contra Temer por apoiar um eventual governo de Rodrigo Maia (o presidente da Câmara, do DEM-RJ)", diz o deputado Pedro Cunha Lima (PSDB-PB).
Outro que "mudou de lado" é Sóstenes Cavalcante (DEM-RJ), um dos principais deputados da bancada evangélica da Câmara. Para Sóstenes, pesaram contra a reforma "a proximidade das eleições" - como há um clima de opinião contrário à reforma, muitos deputados temem ser punidos pelos eleitores no ano que vem.
É o mesmo que diz o deputado do PP mencionado acima, sob anonimato. "O meu eleitorado mais forte é de classe D e E, da periferia dos centros urbanos. Eles têm uma forte expectativa de que não vamos votar à favor da reforma. Fica complicado contrariar isso agora", disse o parlamentar.
Além disso, Sóstenes questiona a legitimidade de Temer para tomar medidas estruturais, como a reforma da Previdência. "O voto direto foi dado a Temer como vice, e não como presidente. Ele foi eleito em uma chapa com outro perfil de ideologia e de política econômica", diz ele, que entretanto votou com o governo em temas como a PEC do Teto de Gastos e a Reforma Trabalhista.
"Eu não caio nessa história de que o governo é ilegítimo. Mas politicamente você não tem como negar que é um governo que chegou de uma forma atípica, e que tem suas limitações", concorda Cunha Lima. O pai dele, Cássio Cunha Linha, é líder do PSDB no Senado.
O que vai acontecer hoje?
Os deputados não vão começar a votar ainda nesta quinta a Reforma da Previdência. Se tudo der certo, o que começa é a discussão oficial, em plenário, da proposta de emenda à Constituição (PEC) que prevê mudar as regras das aposentadorias.
Assim que pelo menos 51 deputados registrarem presença na Câmara (e não no Plenário), o presidente Rodrigo Maia (DEM-RJ) abre oficialmente a discussão. Como o texto será debatido em uma sessão extraordinária (e não em sessão ordinária), ele não necessariamente precisará estar na pauta das próximas sessões, se o governo resolver adiar a votação para 2018.
Se o quórum amanhã chegar a pelo menos 257 deputados dentro do Plenário da Câmara, o governo pode até tentar aprovar o que se chama de "requerimento de encerramento de discussão". Para isso, é preciso apenas que quatro deputados tenham discutido o tema: dois contra e dois a favor. Com o requerimento aprovado, é possível, em tese, partir direto para a votação na próxima semana.