Por que ex-aliados do presidente adotaram termo 'bolsopetismo' para atacar governistas
Entenda o que eles querem dizer com isso e o que dizem cientistas políticos sobre a comparação
Uma nova expressão tem aparecido nas redes de políticos e ativistas de direita que desembarcaram do governo de Jair Bolsonaro. Com cada vez mais frequência, eles chamam os antigos aliados que continuam a apoiar o presidente com um novo apelido: "bolsopetistas".
Ex-líder do governo no Congresso, a deputada Joice Hasselmann (PSL-SP) agora se define no Twitter como "anti bolsolula".
O MBL (Movimento Brasil Livre), que foi um dos primeiro movimentos de direita a criticar Bolsonaro depois de apoiá-lo no segundo turno em 2018, usuo o termo desde o ano passado.
Youtubers de direita como Nando Moura e políticos de partidos como o Novo e o PSL (que elegeu o presidente) também têm usado o termo com frequência.
Mas o que esses grupos querem dizer com o termo? E ele faz sentido do ponto de vista político?
A expressão é uma comparação feita por parte da direita e centro-direita entre o bolsonarismo e o petismo. Embora estejam em campos opostos do espectro ideológico, "suas expressões políticas são muito similares", diz Renan Santos, coordenador nacional do MBL. "Ambos têm essa submissão da militância em relação ao líder, uma militância que aceita tudo, defende a qualquer custo."
"Seguem um roteiro parecido, com o discurso do 'vim para mudar tudo', derrotar uma elite política corrompida, mas falham, e fazem um acordão para se salvar", argumenta Santos. "O Olavo de Carvalho (mentor intelectual do bolsonarismo) é um estudioso de todo o trabalho do PT. Ele denuncia e depois imita", afirma o líder do MBL.
Para cientistas políticos ouvidos pela BBC News Brasil, o uso do termo é uma "estratégia política eficaz" de setores da direita que querem se descolar de Bolsonaro e também "associar decisões que se mostraram erradas e falhas do governo" à esquerda.
"É um setor que identificou a possibilidade de que o fracasso do governo Bolsonaro traga consigo a ideia de que a direita não tem o que oferecer", afirma o cientista político Creomar de Souza, CEO da consultoria de risco político Dharma.
Para o PT, essa comparação é uma "manipulação para esconder as falhas do governo Bolsonaro".
"É um governo que já perdeu a credibilidade, cuja política econômica já estava falhando muito antes da pandemia. Isso é culpa só deles, não podem empurrar isso para ninguém: nem para a esquerda, nem mesmo para o (ex-presidente) Michel Temer", diz o deputado estadual José Américo (PT-SP).
"Não existe isso (de serem dois extremos equivalentes). O Bolsonaro é de extrema-direita e coloca a luta ideológica acima de tudo. O PT não, o PT é de centro-esquerda, é social-democrata, e não coloca a luta ideológica em primeiro-lugar."
Racha na direita
A direita que elegeu Bolsonaro é diversa, explica o professor de ciência política Rodrigo Augusto Prando, da Universidade Presbiteriana Mackenzie.
E há grupos que — embora ainda estejam alinhados com o governo em pontos como a agenda econômica, votem em conjunto com deputados governistas em certas pautas e tenham ainda membros dos mesmos partidos dentro do governo — querem se distanciar da ala mais radical do bolsonarismo.
"A eleição de 2018 juntou no mesmo ambiente liberais que apostaram na figura do Paulo Guedes, órfãos do PSDB, lavajatistas e antipetistas que viram no Bolsonaro uma alternativa com vigor eleitoral", diz Prando.
"São grupos conservadores mas que não são contra a democracia e se afastam da parcela que é saudosista do regime militar e dos seguidores de Olavo de Carvalho, que defendem valores que remontam à Idade Média", afirma o professor de ciência política.
Para esses grupos, analisa o cientista político Geraldo Tadeu Monteiro, professor da Uerj, o uso do termo "bolsopetismo" é uma "estratégia retórica muito convincente".
"Bolsopetismo é algo que não faz sentido do ponto de vista racional, porque (petismo e bolsonarismo) não são movimentos iguais, mas do ponto de vista discursivo é muito eficiente", diz Monteiro.
"Eles estão usando o argumento do fanatismo - de que quem faz defesa incondicional de Bolsonaro é como quem faz defesa incondicional de Lula. E isso cala muito fundo no espírito liberal, mais centrista. Chamar o outro de fanático é perfeito", afirma.
Falsa simetria
Embora o termo "bolsopetismo" seja uma "estratégia retórica inteligente", diz Monteiro, é algo que não faz sentido do ponto de vista dos movimentos políticos que tenta juntar - o petismo e o bolsonarismo.
"Quando você estuda movimentos em ciência política, é claro que vai ter semelhanças e diferenças", afirma ele. E, apesar de algumas semelhanças, diz, não é possível tratar dois movimentos muito diferentes como se fossem a mesma coisa.
"De fato existem características similares no messianismo das figuras do Lula e do Bolsonaro", afirma Rodrigo Augusto Prando, do Mackenzie. Mas compará-los como extremos equivalentes, diz, "é com certeza uma falsa simetria, porque o Lula tem uma série de coisas que Bolsonaro não tem."
Prando cita três principais diferenças.
"Lula tinha uma coisa que o Bolsonaro nunca teve: um partido político. Bolsonaro sempre foi de partido para partido, e agora não está mais no que o elegeu", diz Prando.
"O partido educa para a democracia, socializa. O PT é ligado a intelectuais, à Igreja Católica, aos movimentos sociais. Então existe toda uma base, uma estrutura que mantinha Lula e que o Bolsonaro não tem", diz.
A diferença nas atitudes de Lula e Bolsonaro quanto à imprensa são um exemplo de como "a estrutura partidária e trajetória de Lula" fazem com que eles não sejam equivalentes, segundo o cientista político.
"Lula também dizia que a imprensa o perseguia, também muitas vezes tinha um discurso combativo, a Globo como inimiga, mas nunca chegou a ponto da liberdade de imprensa estar em risco porque ele tinha todo um movimento por trás e um partido que não aceitaria isso", diz Prando, dizendo que o ex-presidente nunca chegou ao ponto de ameaçar explicitamente não renovar a concessão da TV Globo, como fez Bolsonaro.
Além disso, afirma Prando, o petismo nunca "flertou com o golpismo" como fazem setores bolsonaristas que apoiam o fechamento do Congresso e a volta da ditadura militar.
"Embora Lula ainda hoje se considere um ser superior — o que não é uma atitude de um democrata — ele nunca atacou a democracia abertamente. No fim do segundo mandato, embora tivesse uma popularidade de 80%, ele não quis brigar por um terceiro porque sabia que estaria manchando uma trajetória de luta pela democracia", diz Prando.
"Enquanto isso no bolsonarismo você tem deputados que confundem liberdade de expressão com ameaças e perseguição, e um presidente que vai em protesto pedindo a volta da ditadura militar."
Outra diferença central, diz ele, é a trajetória política de Lula. "Lula sempre foi uma liderança, com um histórico no sindicalismo, predisposição ao diálogo e capacidade de liderar e fazer leitura do ambiente. Bolsonaro não é um líder, é um chefe, que manda e os outros obedecem", diz Prando.
Os apoiadores da ideia de que o "bolsonarismo é o novo petismo", no entanto, defendem seus argumentos de que se tratam de movimentos parecidos. "O bolsonarismo tem um golpismo tradicional, caudilhista. Mas o PT tem um modelo que considero golpista, defende a democracia mas compra o Parlamento, que é a coisa mais anti-republicana que existe", diz Renan Santos, do MBL.
Ataque pelo centro
Um aspecto peculiar do racha na direita exposto pela criação do termo "bolsopetismo", afirma Geraldo Tadeu Monteiro, é como a crítica ao governo Bolsonaro está vindo de setores mais ao centro.
"Quando você tem grupos com discursos anti-sistema se tornando mais hegemônicos, o que acontece normalmente é que eles precisam dar respostas a problemas concretos, precisam compor com o centro para ter governabilidade. Então as críticas vêm dos extremos para o centro", afirma Monteiro.
Ele cita o caso do próprio governo Lula que, ao ser eleito em 2002, formou um governo de coalizão para ter governabilidade e foi muito criticado por setores mais à esquerda que antes o apoiavam.
"O mesmo aconteceu na França, com o partido da Frente Nacional (grupo de extrema-direita francês). Quando resolveram disputar o governo, setores mais à direita criticaram, disseram que eles tinham perdido o compromisso com a revolução."
Já Bolsonaro, diz Monteiro, mesmo tendo assumido o governo, "estranhamente está sofrendo uma crítica pelo centro".
"É um governo se radicalizou de tal maneira que está sendo criticado pelo centro, enquanto os mais radicais continuam apoiando", diz.
Para Creomar de Souza, o uso do termo "bolsopetismo" é justamente uma reação da centro-direita à percepção de que não teriam espaço em um governo radicalizado.
"Perceberam que havia um movimento da direita radical de colocar o bolsonarismo como força hegemônica de direita. Pode ver que o presidente não foi bater de frente, na questão da quarentena, com o governador do Maranhão [Flávio Dino, do PCdoB]. Ele bateu de frente com o João Dória [governador de SP] e Wilson Witzel [governador do Rio], ambos de direita", diz Souza.
A visão é a mesma da cientista política Graziele Silotto, pesquisadora do Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento). "Eles foram se descolando à medida que perceberam que ficaram à sombra do governo eleitoralmente", afirma.
"E a estratégia retórica de usar o termo 'bolsopetismo' usada pela centro-direita mostra como (esse racha gerado pela radicalização do governo) tem se aprofundado", afirma o professor Monteiro, da Uerj.
"Para um bolsonarista, ser chamado de petista é o pior xingamento possível", diz ele. "Para um petista também, mas a briga é entre a direita, é uma expressão endereçada do centro para a direita ."
Renan Santos, do MBL, diz que as reações mais inconformadas ao uso do termo não vieram dos petistas. "Os bolsonaristas ficam revoltados", diz ele.