Renan quer trégua com Lira, mas CPI e 2022 embaralham o jogo
'A vitória do Lira foi a vitória da política', diz relator da comissão, que almoçou com rival na casa de Kátia Abreu
A eleição do deputado Arthur Lira (Progressistas), líder do Centrão, para a presidência da Câmara e a escolha do senador Renan Calheiros (MDB) como relator da CPI da Covid devolveram protagonismo a políticos de Alagoas no cenário nacional. Mais do que isso, transportaram para Brasília uma rivalidade que domina o Estado nos últimos anos.
À frente do Progressistas, a família de Lira desafia a cada eleição o domínio do clã Calheiros num dos Estados mais desiguais do País, famoso pelos destinos turísticos, mas que tem um dos piores Índices de Desenvolvimento Humano (IDHs) e sofre para se reerguer economicamente.
Desde o governo de Fernando Collor de Mello (1990-1992), o presidente que renunciou para não sofrer impeachment, Alagoas não figurava com tanto destaque no cenário político nacional. A força dos clãs Lira e Calheiros e a projeção do deputado e do senador se explicam pelo controle da máquina partidária do Progressistas e do MDB no Estado.
Agora, as rivalidades também estão expostas na CPI da Covid. Lira sempre discordou da abertura da comissão parlamentar de inquérito. Disse várias vezes que a investigação é inoportuna e serve mais à "briga política e ideológica". Para o presidente da Câmara, a CPI não tem efeitos imediatos, interpretação oposta à de Renan, que vê o governo cada vez mais pressionado a agir. Na lista das divergências, mais uma se destaca: Lira apoia o presidente Jair Bolsonaro enquanto Renan é aliado do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva.
Bolsonaro e Lula prometem se enfrentar na disputa de 2022 ao Palácio do Planalto. Mas onde estarão os dois alagoanos? "Desde 2014, tenho tentado fazer aliança com Arthur Lira. Ele que não quer. Eu sempre quis que a gente subisse junto no palanque", disse o relator da CPI ao Estadão.
Renan e Lira se encontraram em feijoada de Kátia Abreu
No 1.º de Maio, um sábado, os dois demonstraram descontração num almoço oferecido pela senadora Kátia Abreu (Progressistas-TO) a autoridades da República, em Brasília. A feijoada preparada por Moisés, marido de Kátia, animou o encontro e serviu para Renan se aproximar do antigo adversário.
"Eu disse ao Arthur Lira que, no fundo, fiquei orgulhoso com a vitória dele. Torci pelo Baleia, mas a vitória do Lira é significativa. Foi a vitória da política", afirmou Renan. "Sei o que é uma pessoa de Alagoas se tornar presidente da Câmara", prosseguiu ele, que foi presidente do Senado por três períodos. Em fevereiro deste ano, o MDB de Renan ficou contra Lira e apoiou a candidatura de Baleia Rossi (SP). O deputado tinha o respaldo de Rodrigo Maia (DEM-RJ), que comandava a Câmara, mas perdeu a eleição no primeiro turno.
Naquele Dia do Trabalho, o almoço na casa de Kátia reuniu também o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Gilmar Mendes, o procurador-geral da República, Augusto Aras, e os ministros do Tribunal de Contas da União Bruno Dantas e Vital do Rêgo Filho, além do ex-presidente do TCU José Múcio Monteiro.
A conversa girou sobre CPI, economia, China e vacina, entre outros temas. Como não poderia deixar de ser, a sucessão de erros cometidos por Bolsonaro também se fez presente. "Falamos sobre tudo", resumiu Renan. "Eles acham que eu sou terrorista, mas o Bin Laden lá é o Omar Aziz", afirmou o senador, rindo, numa alusão ao presidente da CPI.
Questionado se Lira foi emissário de algum recado do Palácio do Planalto, o senador respondeu: "Absolutamente, ninguém me pediu nada". O deputado, por sua vez, tem dito que Bolsonaro nunca lhe solicitou ajuda para a articulação política da CPI. "Não sou senador", responde ele, sempre que perguntado sobre o tema.
Renan quer concorrer novamente ao comando do Senado
Em 2019, Renan renunciou na última hora à disputa pela presidência do Senado quando viu que perderia a eleição para Davi Alcolumbre (DEM-AP), o candidato apoiado pelo Palácio do Planalto. "Voltei ao baixo clero. Sou o 081 do Senado", disse ele ao Estadão, na época, vestindo o figurino de "velho Renan".
Em fevereiro de 2023, no entanto, o relator da CPI pretende concorrer novamente ao comando da Casa. Lira acompanha com lupa os movimentos de bastidor do adversário e informa o Planalto, onde tem como aliada a ministra da Secretaria de Governo, Flávia Arruda (PL), nome avalizado por ele para o ministério. Na CPI da Covid a dobradinha é com o senador Ciro Nogueira (PI), presidente do Progressistas e integrante da tropa de choque governista.
Ao acompanhar nesta sexta-feira, 7, o ministro do Desenvolvimento Regional, Rogério Marinho, na entrega de casas populares em Junqueiro (AL), seu reduto eleitoral, Lira anunciou que Bolsonaro desembarcará em Maceió, no próximo dia 13.
Vinte e quatro horas antes, o presidente dava sinais de ter armas engatilhadas para fustigar Renan. "Prezado senador, frase não mata ninguém. O que mata é desvio de recurso público, que o teu Estado desviou. Então, vamos investigar o teu filho que a gente resolve o teu problema. Desvio mata, frase não mata", afirmou Bolsonaro na noite de quinta-feira, 6, durante transmissão ao vivo pelas redes sociais.
O ataque ocorreu porque naquele dia Renan havia listado na CPI, durante depoimento do ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, uma série de manifestações do presidente contrárias à vacinação. Dias antes, porém, o próprio Bolsonaro tinha telefonado para o governador de Alagoas, Renan Filho, em busca de aproximação.
"As insinuações do presidente da República sobre Alagoas, sem apresentar fatos concretos, causam estranheza e soam mais como ameaça de retaliação à CPI", reagiu Renan Filho, que acusou o governo de enviar doses "sempre insuficientes" de vacinas contra covid para Alagoas. Seu pai foi na mesma direção. "O que mata é a pandemia, pela inação, inépcia, que, torço, não seja dele", destacou o relator da CPI, em referência a Bolsonaro.
Para Luciana Santana, doutora em Ciência Política e professora da Universidade Federal de Alagoas (UFAL), Renan "renasceu como ator relevante" com a relatoria da CPI. "Ele conseguiu juntar forças para contribuir com a eleição do filho para o Senado, em 2022, e tentar manter seu grupo no governo do Estado", observou ela. "Falava-se na morte política do Renan. Mas ele ganhou visibilidade. A pandemia o demarca no campo oposicionista".
Grupos Lira e Calheiros se organizam para eleições em Alagoas
No xadrez político de Alagoas, o futuro dos grupos Lira e Calheiros vai se cruzar novamente em 2022. É que Renan Filho terá de se licenciar do governo seis meses antes da eleição para disputar o Senado, como planeja. A ideia é que ele concorra à cadeira hoje ocupada por Fernando Collor (Pros), que flerta com Bolsonaro, mas é visto regionalmente como individualista. Como o ex-vice-governador Luciano Barbosa (MDB) se elegeu prefeito de Arapiraca no ano passado, o presidente da Assembleia Legislativa, Marcelo Victor (Solidariedade), seria o primeiro na linha sucessória. O deputado estadual, porém, é aliado de Lira. Dessa forma, Renan entregaria a máquina pública do Estado, influente nos 102 municípios, ao grupo rival.
É por isso que interessa aos Calheiros uma aproximação com os Lira. "O Palácio do Planalto fará qualquer lance para tirar forças do Renan e do filho dele, inclusive cedendo mais apoio a Lira ou a quem quer que seja. Do ponto de vista nacional, o presidente da Câmara tem mais força e vai capitalizar isso para tentar conquistar o governo do Estado, mesmo sem ser ele o candidato", argumentou o cientista político Ranulfo Paranhos, também professor da Universidade Federal de Alagoas.
Nos últimos anos, uma terceira força emergiu no Estado e vem se posicionando como alternativa para furar a polarização entre os dois grupos. Trata-se da aliança do prefeito de Maceió, João Henrique Caldas (PSB), conhecido como JHC, com o senador Rodrigo Cunha (PSDB).
JHC apoiou a eleição de Lira para a presidência da Câmara contra a orientação do próprio partido e surfa no governismo, entregando obras ao lado de aliados de Bolsonaro. Cunha, por sua vez, é potencial candidato do PSDB ao governo de Alagoas. Se eleito, a vaga de senador fica com sua primeira suplente, Eudócia Caldas, mãe de JHC.
Em recente reforma do secretariado, Renan Filho acomodou forças políticas opositoras no governo, num sinal de que busca amplo apoio, já que ainda não escolheu o pré-candidato à sua sucessão. Oito secretários foram substituídos. Agora, fazem parte da administração alas rivais do clã Beltrão, a família do deputado federal e ex-ministro do Turismo Marx Beltrão (PSD).
Famílias já estiveram juntas na base de governos anteriores
Os Calheiros e os Lira já estiveram juntos num passado não muito distante, na base dos governos Lula, Dilma Rousseff e Michel Temer. Em 2010, por exemplo, Renan e Benedito de Lira - pai do presidente da Câmara e hoje prefeito de Barra de São Miguel - foram eleitos numa dobradinha para o Senado.
A campanha de 2014, no entanto, deixou fissuras nos dois grupos. Renan Filho disputou o governo de Alagoas e tinha como adversário Benedito de Lira. A vitória do filho do senador azedou de vez a relação com o deputado. Em 2018, Benedito de Lira não se reelegeu, perdendo a vaga para o tucano Rodrigo Cunha. Renan, por sua vez, ficou com a segunda cadeira. Naqueles embates, os líderes dos dois clãs trocaram ofensas até hoje lembradas.
De chapéu de vaqueiro, ao lado do filho, Renan disse que "Biu" - apelido de Benedito de Lira - ficara "velhaco". Um vídeo no qual Arthur Lira defende o pai e devolve o xingamento voltou a circular na semana passada. Na gravação, o deputado chama Renan de traidor. "É o professor na arte de mentir e enganar. É velho e é velhaco. E ainda traz ao lado dele o velhaco Junior", diz Lira.
Nessa temporada de CPI da Covid, os sinais são confusos, mas há quem veja a possibilidade de uma trégua mais adiante. Até agora, porém, não é o que parece.