'Salvar deputado pode gerar inferno político', diz estudioso
Fernando Abrucio, da FGV-SP, faz uma analogia entre a decisão do STF com a invasão do Congresso americano
O coordenador da área de Educação do Centro de Estudos de Administração Pública e Governo da FGV-SP, Fernando Abrucio, acredita que a votação na Câmara dos Deputados vai determinar não apenas se Daniel Silveira (PSL-RJ) permanece preso, mas também definir de que lado a Casa está: se age para assegurar a boa relação com os Poderes, dentro dos princípios da democracia, ou se trabalha para se autodefender.
Para o cientista político, a segunda hipótese pode apenas postergar o problema. "Salvar o deputado bolsonarista agora para apaziguar os ânimos pode gerar um inferno político logo ali na esquina", afirma.
Nesta entrevista ao Estadão,Abrucio faz uma analogia entre a decisão do ministro Alexandre de Moraes - depois ratificada pelo plenário -, de prender Silveira, com a invasão do Congresso americano, mês passado, por apoiadores do ex-presidente Donald Trump.
"Tem uma hora em que é preciso evitar a invasão do Capitólio, metáfora que cabe bem no que seria o dia seguinte do vídeo do Daniel Silveira se nada fosse feito." Acompanhe os demais trechos:
A votação do caso Daniel Silveira pelos deputados mostrará de fato o tamanho da base aliada de Jair Bolsonaro na Casa?
O resultado da votação vai expressar se a Câmara está mais preocupada com a defesa da democracia e com o bom relacionamento entre os Poderes, ou se prefere proteger seus membros. Neste sentido, a votação não é um bom indicador da base do governo Bolsonaro, pois também não interessa ao Executivo uma briga sem fim com o STF. Uma confusão como essa pode atrapalhar, e muito, as votações dos projetos de reforma. Se o deputado Silveira for absolvido pelos pares, por exemplo, os dois processos no Supremo nas mãos do ministro Alexandre Moraes podem andar mais rápido e serem bem mais duros nas suas decisões. Isso afetaria mais parlamentares e até gente do Executivo. Ou seja, salvar o deputado bolsonarista agora para apaziguar os ânimos pode gerar um inferno político logo ali na esquina.
O resultado poderá servir de termômetro para outras decisões, como a votação de um eventual impeachment?
Não creio. O que está em jogo, além da óbvia defesa da democracia, é o relacionamento entre o Legislativo e o STF. Por enquanto, o Executivo está fora disso. A não ser que o presidente Bolsonaro entre nesta história para brigar com o STF e proteger o seu aliado. Não podemos nos esquecer que até hoje tem processo no TSE referente à eleição presidencial de 2018.
O Parlamento costuma ser corporativista, mas também costuma ser pragmático. Interessa à Câmara uma briga com o Supremo em defesa de deputados milicianos digitais?
Essa é a dúvida que paira na cabeça dos deputados. Pensam eles: será que a gente salva um colega nosso para mostrar nossa autonomia como Poder, ou punimos o deputado Silveira para realçar o compromisso do Congresso com a democracia e garantir uma relação tranquila com o STF nos próximos dois anos? Para uma parte pequena do Congresso, mais comprometida com a democracia, essa é uma resposta fácil, mas para o deputado típico, definitivamente não é. Agora, tem de lembrar que há vários parlamentares com processos no STF. Eles podem acelerar suas condenações na antevéspera das eleições de 2022.E também tem de lembrar que a mídia - ou os adversários - lembrarão os eleitores no ano que vem os nomes dos que votaram pela democracia e os optaram pelo corporativismo.
A instauração, por ofício, do inquérito das fake news pelo STF não fez com que se reduzisse o volume de críticas às instituições, especialmente à Corte, por parte de parlamentares. A prisão de Silvera pode servir como um basta e um alerta?
Penso o contrário: se o STF não tivesse feito nada - e por vezes o fez de maneira atabalhoada do ponto de vista jurídico -, já teríamos tido um cabo e um soldado, além de milhares de bolsonaristas armados, fechando o Supremo. É muito difícil saber se essa decisão vai parar com críticas violentas e autoritárias contra o STF - críticas democráticas sempre existirão e são importantes. Mas tem uma hora em que é preciso evitar a invasão do Capitólio, metáfora que cabe bem no que seria o dia seguinte do vídeo do Daniel Silveira se nada fosse feito.
O fato de o próprio presidente da República, quando deputado, ter homenageado um torturador em plenário e não ter sido punido por isso nem pela Casa nem pela Justiça abriu caminho ou favoreceu esse tipo de postura hoje?
Naquela época, mais do que a Justiça, quem se calou foi o Congresso Nacional. Primeiro, no governo FHC, quando Michel Temer teve um papel importante para evitar a punição de um deputado que propôs o fuzilamento do então presidente da República. Segundo, no impeachment da Dilma, quando ela elogiou um torturador e o Eduardo Cunha, que comandava a Casa, até achou engraçado. Precisamos evitar esse tipo de comportamento no nascedouro, porque se não for parado, ele produz uma onda autoritária muito forte. O bolsonarismo é exatamente fruto da nossa leniência com o autoritarismo.
O bolsonarismo se alimenta de confrontos, sejam eles internos ou com demais Poderes. Essa crise favorece ou atrapalha o governo neste sentido?
Neste caso, só atrapalha. Bolsonaro conseguiu eleger o presidente das duas Casas e poderia ordenar melhor o processo legislativo a seu favor. O STF tem paralisado algumas de suas iniciativas, mas com parcimônia. Um conflito enorme entre os Poderes prejudica a governabilidade, exatamente num momento em que a pandemia está piorando, que a vacinação vai demorar para se expandir e como uma situação econômica ruim. Tentar jogar o povo, a maioria da população, contra o STF não vai apagar a crise atual. Os que as pessoas querem é vacina, emprego, renda e escola boa para os filhos.
A atual crise ainda tem como pano de fundo uma relação tensa entre o governo, o STF e as Forças Armadas. De que forma a prisão do deputado pode influenciar nesse aspecto?
O deputado Silveira foi muito irresponsável porque pode botar fogo na República, bem no meio de uma crise social e econômica gigantesca. A briga entre o STF e as Forças Armadas pode ser apaziguada dentro da democracia. Até porque se o bolsonarismo apostar mais nesta lógica autoritária, inclusive numa ruptura comandada por milícias armadas, não perderemos só a democracia que nos custou muito recuperar. O Brasil será isolado internacionalmente, com um possível embargo europeu e americano, pois Biden vai colocar o tema democrático no topo de sua agenda internacional. Aí iremos de uma crise profunda para a destruição econômica do País.