'STF precisa conhecer seu lugar na democracia', diz Steven Levitksy, que defende mandatos nas Cortes
'É sempre alvo de preocupação quando um órgão não eleito como o Supremo Tribunal está interferindo em políticas que deveriam ser decididas por autoridades eleitas', diz o cientista político americano, autor do best-seller 'Como as democracias morrem'
O Supremo Tribunal Federal (STF) foi fundamental para conter a escalada autoritária durante a gestão do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL); a instituição, porém, deve respeitar seus limites e não interferir em temas que são de competência de outros Poderes. A avaliação é do cientista político americano Steven Levitsky, autor do best-seller "Como as democracias morrem". "O Supremo Tribunal precisa conhecer seu lugar em uma democracia.", disse o escritor ao Estadão.
De acordo com Levitsky, o debate atual sobre o ativismo do Supremo no País é legítimo, especialmente por ser uma instituição com prerrogativas constitucionais amplas e que não é eleita pelo voto direto. Em sua avaliação, medidas como a definição de limites para os mandatos dos juízes da Suprema Corte são importantes tanto nos EUA quanto no Brasil. "Isso existe em muitas democracias ao redor do mundo".
O pesquisador também analisa a disputa política interna no País para as próximas eleições e afirma que, apesar da derrota de Bolsonaro, a extrema-direita continua forte no Brasil.
Confira a seguir a íntegra da entrevista concedida ao Estadão:
Pesquisas mostram que a Suprema Corte dos EUA atingiu seu nível mais baixo de confiança pública em 2023. No Brasil, o STF também enfrenta baixos níveis de credibilidade e popularidade. Como o senhor analisa esse cenário?
Os Supremos Tribunais são 'facas de dois gumes' quando se trata de democracia. Eles são fortes, e o Supremo Tribunal Federal brasileiro tem se mostrado muito forte, assim como a Corte Suprema dos Estados Unidos. Tribunais Supremos fortes são absolutamente vitais em alguns momentos, para proteger a democracia de um governo autoritário que busque abusar do poder.
Nós vimos isso muito claramente. O Supremo brasileiro foi muito agressivo, muito audacioso em expandir seu papel, talvez além do que deveria, além de seu papel normal, em nome da defesa da democracia. Eu acho que o Supremo Tribunal foi bem-sucedido nesse aspecto no Brasil. Mas os Tribunais Supremos são instituições não-eleitas. Eles não são 'corpos eleitos'. São partes críticas da democracia, mas não são instituições democráticas em si mesmas. Os eleitores sabem disso.
Quando um Supremo Tribunal poderoso bloqueia, decide contra ou enfraquece leis ou decisões de governos eleitos de maneira muito pública, isso é um território perigoso para a democracia. Os Tribunais Supremos são instituições contra-majoritárias e, para uma democracia ser legítima, esse poder contra-majoritário deve ser usado com grande restrição.
Houve momentos nos últimos anos, por razões muito diferentes, em que tanto a Corte Suprema dos EUA quanto o Supremo Tribunal Federal do Brasil se envolveram em ações de grande destaque, aparentemente com menos restrição. Acho que isso foi um pouco negativo para eles. Novamente, devo repetir, acho que no Brasil, muito disso foi necessário. Acho que o protagonismo contra Bolsonaro, especialmente em 2022, foi muito importante. Mas o Supremo Tribunal precisa conhecer seu lugar em uma democracia.
No Brasil, há críticas por parte de parlamentares de que o STF tem poder demais. O Congresso está atualmente estudando projetos para limitar essas influências, como a possibilidade de aprovar mandatos. Como o senhor vê essas iniciativas?
Isso depende da iniciativa. Especialmente quando se julga que uma instituição, como o presidente ou o Supremo Tribunal, tem poder demais, é legítimo para o Legislativo debater reformas que possam limitar esse poder. Mas os limites de mandato para os juízes do Supremo Tribunal são, na verdade, algo que Daniel Ziblatt e eu defendemos em nosso livro recente (Como salvar as democracias), porque nos Estados Unidos não há idade de aposentadoria de 75 anos e não existem limites de mandato. Os juízes permanecem no Tribunal por toda a vida.
Os Estados Unidos são a única grande democracia em que isso acontece. A maioria das democracias têm limites de mandato ou uma idade de aposentadoria. Agora, quatro anos é um período muito curto. Os juízes do Supremo Tribunal devem ter mandatos que se estendam muito além do mandato presidencial, então, se o Brasil continuar a ter dois mandatos presidenciais de quatro anos, eu diria que o mandato mínimo para juiz do Supremo Tribunal teria que ser de pelo menos 10 anos.
Já nos Estados Unidos, estamos falando talvez de mandatos de 12 ou 18 anos. Então não, não deveria ser de quatro anos. Não deveria ser um mandato muito curto. Mas algum tipo de limite de mandato para juízes do Supremo Tribunal é totalmente legítimo. Isso existe em muitas democracias ao redor do mundo.
Em 2023 nos EUA, houve o caso envolvendo o juiz da Suprema Corte Clarence Thomas. No Brasil, o comportamento dos ministros do STF também é alvo de críticas. Por exemplo, ministros participam de eventos patrocinados por empresas que têm casos em julgamento no Supremo. Além disso, a pouca transparência nas agendas dos componentes da Corte também é alvo de críticas por parte da população. Que medidas poderiam ser tomadas para reverter essa situação?
Eu não conheço muito bem esses casos específicos dos eventos para me aprofundar, mas, novamente, o Supremo Tribunal é um órgão incrivelmente importante e poderoso. E ele absolutamente deve manter um alto nível de credibilidade e confiança entre o público.
Se o Supremo Tribunal não for confiável para fazer a coisa certa, se não for confiável para agir em prol do interesse público, tanto o Estado de Direito quanto a democracia estarão em sérios problemas. Portanto, é realmente muito importante que os membros do Supremo Tribunal não apenas se comportem bem, mas também sejam amplamente percebidos como não apenas cumpridores da lei, mas como sendo extremamente transparentes.
A percepção de que os juízes do Supremo Tribunal estão ou trabalhando em aliança política com alguém ou têm algum tipo de relacionamento econômico com atores externos é devastadora. É fatal para a legitimidade de um tribunal. Portanto, ou o Supremo Tribunal se regula - o que a Suprema Corte dos Estados Unidos recentemente mostrou ser incapaz de fazer - ou precisa ser regulado. No caso dos Estados Unidos, o Congresso claramente precisa aprovar legislação impondo padrões éticos muito mais rigorosos ao Supremo Tribunal, e talvez o Brasil precise de algo semelhante.
Como o senhor analisa os ataques feitos por Elon Musk ao ministro Alexandre de Moraes? Além disso, qual é a sua avaliação sobre a reação de alguns membros da Câmara dos EUA que acusam o ministro de suposta censura à liberdade de expressão e ilegalidades em suas decisões?
Estamos vendo o ressurgimento em democracias em todo o Ocidente de uma classe plutocrática, uma classe de empresários ultra-ricos que não só são obscenamente ricos, mas agora estão começando a traduzir essa riqueza em um perfil público muito elevado. Estão tentando aproveitar essa riqueza e esse destaque para obter influência política. Estão tentando transformar sua riqueza econômica em influência política e poder político. Isso não é saudável para a democracia. E não é apenas Elon Musk.
Ele é uma figura particularmente demagógica e de destaque como proprietário da X. Ele também é uma figura particularmente imprudente, faz parte de uma classe de indivíduos ricos, ultra-ricos, que agora estão começando a exercer ou tentando exercer uma influência desproporcional na política.
No caso de Musk, vemos ele internacionalizando sua influência, não apenas exercendo influência no país onde é cidadão e eleitor, mas em outros países onde não é cidadão e eleitor. Esse tipo de influência por parte de atores econômicos não é saudável.
Além disso, também há uma transnacionalização da política, o que não é novo, mas tem sido especialmente forte na direita nos últimos anos. A direita iliberal, tornada muito mais fácil, muito mais possível pelas redes sociais, onde figuras da extrema direita estão trabalhando em conjunto e constantemente recebendo informações de seus aliados em outros países, e cada vez mais expressando opiniões sobre política em outros países, mesmo que frequentemente estejam muito mal informadas.
Portanto, congressistas de direita nos Estados Unidos não sabem muito sobre a política brasileira, provavelmente não deveriam opinar sobre a política brasileira. Mas eles estão na mesma rede social de direita que a família Bolsonaro, e estão no mesmo grupo de WhatsApp e recebendo as mesmas informações, às vezes desinformação. E agindo com base nisso. É bastante irresponsável porque eles não são especialistas em política brasileira.
O senhor concorda com as críticas contra o ministro?
Não conheço bem os detalhes deste caso para falar, mas é um debate grande e legítimo no Brasil sobre o ativismo do Supremo Tribunal Federal brasileiro. O Tribunal é muito poderoso e muito ativo. Novamente, é sempre alvo de preocupação quando um órgão não eleito como o Supremo Tribunal está interferindo em políticas que deveriam ser decididas por autoridades eleitas.
O Supremo Tribunal Federal brasileiro assumiu um papel muito ativo sob Bolsonaro. Novamente, acredito que foi importante que o fizesse, mas há um verdadeiro dilema. Há um lado sombrio nessa influência expandida.
O problema é que o Supremo Tribunal é de certa forma paralelo ao militarismo. Uma vez que um órgão não eleito começa a se intrometer na democracia, às vezes é difícil reverter isso. E este é um assunto real, embora eu não possa apontar o caso específico. Reconheço que este é um assunto de real preocupação pública para o Brasil.
Falando agora sobre seu último livro, "Como salvar as democracias", o senhor menciona que o medo exagerado de perder faz com que os partidos se voltem contra a democracia. O senhor poderia falar um pouco sobre como esse sentimento enfraquece a democracia e aumenta a polarização?
A polarização, até certo ponto, pode ser benéfica para a democracia. O Brasil, em alguns momentos da era democrática, como nas décadas de 1980 e 1990, experimentou um considerável nível de polarização, por exemplo, entre o PT e seus principais opositores. Oferecer aos eleitores um conjunto claro de escolhas é benéfico para a democracia. A política competitiva é boa para a democracia. E, às vezes, como vimos recentemente no Brasil, isso pode realmente aumentar o envolvimento e o engajamento na política. Mais pessoas se filiam a partidos nos Estados Unidos.
O voto e a participação eleitoral aumentaram nos últimos anos. No entanto, a polarização extrema pode ameaçar a democracia. Quando a polarização atinge um ponto em que líderes ou membros de um partido começam a temer que um governo do outro partido representará uma ameaça existencial, seja para eles, suas comunidades, suas famílias ou até mesmo para a democracia, isso se torna perigoso.
Quando a polarização atinge esses níveis, torna-se perigosa para a democracia. O receio é que, nos Estados Unidos, a polarização esteja alcançando esse patamar, onde membros do Partido Republicano sentem que não estão apenas perdendo eleições, mas que, se perderem eleições, perderão seu país.
Não tenho certeza ainda se esse nível de polarização existe no Brasil. Há muita polarização. Vemos ativistas, particularmente ativistas bolsonaristas, agindo como se enfrentasse uma ameaça existencial, acampando por semanas em frente aos quartéis militares e clamando por golpes. Isso é algo bastante extremo.
Como podemos reverter o baixo nível de confiança pública nos partidos e políticos?
Se eu soubesse a resposta para essa pergunta, teria um emprego muito melhor remunerado [risos]. Brincadeiras à parte, este é um problema realmente sério em todo o mundo. Acredito que seja mais extremo na América Latina, porque os partidos políticos já eram mais fracos do que na Europa Ocidental ou nos Estados Unidos. Mas esse problema de baixa confiança em políticos, partidos políticos, governos e autoridades em geral é muito grave em todo o mundo. E eu não acho que tenhamos descoberto as causas.
Eu não acredito que entendemos completamente as causas desse problema. E se não entendemos as causas, é impossível ou improvável que possamos pensar em soluções eficazes. Precisamos entender por que isso está acontecendo. Eu acho que parte do problema está nas redes sociais. Há cada vez mais evidências de que elas estão contribuindo para uma erosão da confiança em instituições e elites estabelecidas. Portanto, algum tipo de regulamentação das redes e também treinamento cidadão, educação pública em torno das redes sociais, provavelmente podem ser uma parte da resposta.
Eu também acredito que os cientistas políticos são culpados de uma quantidade considerável de conservadorismo nos últimos anos. À medida em que as democracias têm sido ameaçadas nos Estados Unidos, no Brasil e em outros lugares, nós nos concentramos em preservar, e proteger as instituições democráticas existentes por um bom motivo. Mas essas são instituições do século XIX e XX, instituições que não evoluíram muito, que não foram inovadas nos últimos anos e que simplesmente não estão funcionando tão bem em termos de o público se sentir representado ou sentir que pode expressar suas demandas e ser ouvido.
O melhor exemplo disso é o Chile, onde os políticos parecem fazer tudo certo. No Chile, a economia estava bem. Houve muito dinheiro gasto em saúde, educação e programas sociais. A desigualdade diminuiu. Os níveis de corrupção são bastante baixos. Não houve nada como o escândalo da Lava Jato. E ainda assim, os chilenos estão tão irritados com suas elites quanto os brasileiros. Este é um problema generalizado. Mesmo onde as instituições parecem funcionar bem, as pessoas estão perdendo a confiança.
A outra parte da solução, e a ciência política não ofereceu muito nesse aspecto, é que vamos ter que pensar em inovar nossas instituições. Não substituí-las, mas reformá-las e melhorá-las para que sejam mais acessíveis aos eleitores. Uma possibilidade são instituições participativas, que o Brasil experimentou um pouco a nível local, com resultados mistos talvez.
Em nossa última entrevista, o senhor mencionou que o bolsonarismo continuaria mesmo sem Bolsonaro e que o futuro político desse movimento dependerá do desempenho do terceiro mandato de Lula. Como o senhor avalia o governo de Lula até agora? E quais são as chances do bolsonarismo nas próximas eleições?
Depende de como você define o bolsonarismo. Quero dizer, no Brasil, ao contrário dos Estados Unidos, onde a extrema direita é representada por um único partido político, no Brasil tem todo um universo de políticos em vários partidos que eu descreveria amplamente como bolsonaristas. Eles são partidos de direita iliberais, muito ligados à questão da segurança pública, bastante vinculados a crenças religiosas, especialmente evangélicas, frequentemente opostos a muitos direitos sociais individuais e muito, muito anti-esquerda. E isso não é apenas Bolsonaro. Ele foi apenas o representante mais bem-sucedido dessa tendência.
Mas tem figuras políticas de direita iliberais em todo o Brasil. Na verdade, elas têm sido muito, muito bem-sucedidas eleitoralmente no Brasil ao longo da última década. E este é um bom momento para a extrema direita na América Latina. Em parte, devido ao fracasso percebido de muitos governos de esquerda no início do século XXI, mas também devido à expansão da criminalidade violenta. A violência e a insegurança sempre, sempre, sempre favorecem a direita. Eu não tenho ainda ideia se o bolsonarismo se beneficiará de um possível desempenho medíocre do governo Lula.
Mas eu acredito que a extrema direita continua sendo muito forte no Brasil. Nós a vemos na maioria dos principais Estados do país. Nós a vemos no Congresso. Nas últimas eleições, até mesmo na eleição de 2022 que Lula venceu, ainda foi uma eleição de direita. E essa espécie de fortalecimento da direita iliberal, que deslocou os tucanos, é a força dominante na direita política. Não ficaria nada surpreso se um líder de direita vencesse a próxima eleição, mesmo que não seja um aliado próximo de Bolsonaro.
No seu livro, o senhor menciona que partidos e políticos tradicionais se distanciaram de Bolsonaro após as eleições e o evento de 8 de Janeiro, enfatizando a importância desse movimento para preservar a democracia. No entanto, políticos e partidos estão se alinhando novamente com Bolsonaro. Esses políticos podem ser classificados como democratas semi-leais?
Eu percebi isso e é difícil (para mim) rotulá-los. Em momentos críticos, como a aprovação da Lei da Democracia em 2021, as eleições de 2022 e o rescaldo de 8 de janeiro de 2023, os políticos de direita no Brasil se comportaram como democratas leais - muito mais do que os Republicanos nos EUA. É difícil interpretar seu comportamento agora que a democracia está menos diretamente sob ameaça. Pode ser que eles estejam apenas buscando os eleitores de Bolsonaro. Mas, em termos de comportamento democrático leal, certamente seria melhor se esses políticos se afastassem completamente de Bolsonaro.
Qual seria o significado político de uma potencial vitória de Trump para o bolsonarismo no Brasil ?
Acredito que, como frequentemente acontece, as pessoas prestam muita atenção, para o bem ou para o mal, aos Estados Unidos. Os Estados Unidos ajudam a definir tendências. E, assim, uma vitória de Trump não garante nada, mas vai dar um impulso de confiança e energia para a extrema direita em todo o mundo, tanto na América Latina quanto na Europa.