Vale do Ribeira, terra de Bolsonaro, convive com a fome
Famílias relatam dificuldades para manter alimentação em cidades do Vale do Ribeira
A dona de casa Maria da Silva Oliveira serviu macarrão branco, sem molho ou mistura, de almoço ontem para a família, repetindo o "cardápio" da noite anterior. São oito pessoas acomodadas em um imóvel de três cômodos em Registro, considerada a "capital" do Vale do Ribeira, em São Paulo. "Fome, todo mundo passa aqui, filho. A gente se vira com o básico, arroz, feijão, de vez em quando um ovo ou uma salsicha", afirma ela, que se mantém com renda mensal de R$ 900.
O caso de "Maria Preta", como é chamada na cidade, está longe de ser isolado e exemplifica dados divulgados por organismos internacionais que mostram a estagnação do combate à fome do Brasil. Também contraria a afirmação feita, na sexta-feira, pelo presidente Jair Bolsonaro de que falar em fome no País é uma "grande mentira".
Na casa de Ivone Guedes, também moradora de Registro, a situação era parecida. Para o almoço de sábado, ela contava com três ovos para sete pessoas, e não havia planos para o jantar. "Vou fazer mexido e repartir, tem arroz e feijão. A janta? Talvez meu irmão traga umas bananas." Ela conta ter trocado a zona rural pela cidade atrás de um emprego fixo, o que não conseguiu. "Fome? É o que mais tem por aqui. O estômago ronca, mas fazer o quê? Quando tem arroz e feijão, o básico do básico, a gente fica contente."
O Vale do Ribeira, onde Bolsonaro passou a infância e a juventude, é uma das regiões mais pobres de São Paulo, junto com o sudoeste do Estado. Dos 23 municípios que integram o Vale do Ribeira, três deles estão entre os 15 piores em termos de Índice de Desenvolvimento Humano (IDH)- Itariri, Sete Barras e Barra do Turvo.
A região também tem, proporcionalmente, a maior população assistida pelo Bolsa Família no Estado. Em 2015, último dado disponível, eram 30,4 mil famílias nos 23 municípios inscritas no programa. Só em Eldorado, 1.282 famílias (ou um terço da população) recebiam ajuda federal para sua subsistência.
A declaração de Bolsonaro foi dada durante café da manhã com jornalistas estrangeiros no Palácio do Alvorada. "Falar que se passa fome no Brasil é uma grande mentira. Passa-se mal, não come bem. Aí, eu concordo. Agora, passar fome, não. Você não vê gente pobre pelas ruas com físico esquelético como a gente vê em alguns outros países por aí pelo mundo", disse ele. Mais tarde, diante da repercussão da fala, ele mudou o tom. "Olha, o brasileiro come mal. Alguns passam fome. Agora, é inaceitável num país tão rico como o nosso, com terras agricultáveis e água em abundância."
Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura
Dados divulgados em setembro do ano passado pela Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO) e um grupo de agências da ONU mostram que o combate à fome no Brasil se estagnou, apesar de o País ter saído do chamado mapa da fome em 2014.
Segundo a entidade, em 2017 existiam 5,2 milhões de brasileiros passando fome (mais do que os 4,8 milhões de habitantes da Irlanda), uma mudança marginal em comparação aos números que vinham sendo apresentados nos últimos anos. Em 2014, por exemplo, o total era de 5,1 milhões.
Levantamento feito pelo Estado no Datasus, portal de dados do próprio Ministério da Saúde, mostra ainda que entre 2008 e 2017 (último dado disponível) cerca de 6 mil pessoas morreram por ano no País por complicações decorrentes da desnutrição. Os dados incluem óbitos relacionados aos quadros de desnutrição proteico-calórica leve, moderada e grave e a condições mais raras, porém ainda existentes no Brasil - como a desnutrição provocada pela ingestão inadequada de proteínas.
Eldorado
A cidade de Eldorado, de onde Jair Bolsonaro saiu aos 18 anos para seguir a carreira militar, está em 607.º lugar no IDH entre os 645 municípios paulistas. É lá que mora a família de Tarcineia Lima Moais. A renda vem do Bolsa Família (R$ 150) e de pensão de R$ 998 de um dos filhos que tem deficiência mental. Ela conta que consegue fazer três refeições diárias até, no máximo, a terceira semana do mês.
"Nos últimos sete, às vezes até dez dias, depois que a compra do mês acaba, é só arroz com feijão, e olha lá. Tem dia que a gente fica sem nada e precisa correr no barracão de banana para pedir alguma fruta e enganar a fome", afirma ela.
Na cidade onde a família de Bolsonaro tem lojas de roupas e material de construção, uma lotérica e um centro comercial, além de vários imóveis, não é preciso andar muito para encontrar outra família em situação de miséria.
"As fraldas (geriátricas) acabaram e não tenho dinheiro para comprar. Tive de fazer uma escolha e preferi comprar comida", disse Judite Alves de Oliveira, de 66 anos. Com o agravamento da artrose, ela passou a viver numa cadeira de rodas. A doença que a consumiu garante sua sobrevivência: um auxílio-doença de R$ 998.