Voto impresso é tentativa de Bolsonaro de contestar eleição antecipadamente, diz cientista político
Para Carlos Melo, Brasil corre risco de viver seu 'seis de janeiro' - em referência ao episódio da invasão do Congresso americano este ano por apoiadores de Trump que contestavam lisura das eleições.
Esta semana deve ser decisiva para um dos projetos mais defendidos pelo presidente Jair Bolsonaro e de grande repercussão na política brasileira: a mudança nas urnas eletrônicas, que passariam a imprimir em papel os votos computados. Esses comprovantes em papel seriam então colocados em uma urna separada.
A PEC do voto impresso deve ser aprovada na Câmara de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados — que avalia se a matéria é constitucional ou não. No entanto, acredita-se que Bolsonaro perdeu a disputa para implantar o voto impresso como queria.
E a derrota foi política. Onze partidos — incluindo diversas siglas do Centrão, aliado do presidente — já avisaram que não aprovariam a PEC caso ela fosse para votação na Câmara e no Senado. Com isso, os bolsonaristas não teriam os 308 votos necessários para mudar as urnas eletrônicas, e a questão sequer deve chegar aos plenários do Congresso.
Se confirmada, a derrota de Bolsonaro significa que o Brasil seguirá em 2022 com a urna eletrônica funcionando exatamente nos moldes das últimas eleições.
Para o professor Carlos Melo, cientista político do Insper, em São Paulo, mesmo tendo perdido essa batalha política, Bolsonaro seguirá com sua estratégia de deslegitimar a eleição de 2022 caso seja derrotado nas urnas, com o argumento de que faltaria transparência no sistema eleitoral brasileiro — o mesmo que conduziu o presidente ao mandato em 2018.
"O presidente está jogando. Ele está preparado para ter o voto impresso e para não ter o voto impresso. Ele constituiu uma narrativa e seus eleitores acreditam nisso. A questão é: qual é o resultado que sairá das urnas? Ele vai contestar porque faz parte da estratégia dele", diz.
Segundo Melo, existe ainda o risco de uma repetição no Brasil do que se viu nos Estados Unidos após a derrota de Donald Trump para Joe Biden, com contestação violenta de resultados. No dia 6 de janeiro, manifestantes pró-Trump, seguindo a orientação do ex-presidente de questionar o resultado das eleições, invadiram o Congresso americano, em um episódio que resultou em cinco mortes.
Seis meses após a posse de Joe Biden, republicanos ainda estão promovendo uma recontagem de votos em um dos condados no Estado do Arizona, tentando provar que houve fraude na eleição que viu Trump derrotado. Melo diz que uma mudança no sistema de votação no Brasil permitiria inúmeros pedidos de recontagem, como acontece nos EUA.
Mesmo em meio à grande repercussão das investigações sobre irregularidades na compra de vacinas, assunto que tem dominado o noticiário e a agenda do governo nos últimos dias, Bolsonaro seguiu se manifestando sobre o voto impresso.
"Estou me antecipando a problemas no ano que vem. Como está aí, a fraude está escancarada. Fraude", disse Bolsonaro em vídeo publicado na sua conta no Twitter na quinta-feira (1/7). "Tiraram o Lula da cadeia. Tornaram elegível para ele ser presidente na fraude. Isso não vai acontecer."
Confira abaixo a entrevista com o cientista político.
BBC News Brasil — Está sendo enterrada a ideia do voto impresso no Brasil? Ou ela tem chances de prosperar ainda?
Carlos Melo — Em política tudo pode acontecer, e no Brasil mais ainda. Uma vez o [ex-ministro da Economia] Pedro Malan disse que no Brasil até o passado é incerto, quanto mais o presente.
O voto em urna eletrônica foi instituído há décadas e você teve alternância de poder. Se houvesse uma fraude, como essa fraude favoreceria adversários? Faria alternância de poder? Venceram eleições o PSDB, o PT, nos Estados houve variedade grande de partidos. O próprio Bolsonaro foi eleito várias vezes por voto eletrônico. Na última eleição, ele chega a 47% dos votos no primeiro turno. Que indícios concretos ele tem para dizer que tem fraude no voto eletrônico?
É interessante que nos EUA o voto é em papel e o ídolo dele, Donald Trump, também disse que havia fraude.
É muito mais questão de contestação antecipada do resultado da eleição do que de evidências concretas de problemas com a urna eletrônica. O ministro Luís Roberto Barroso, presidente do TSE, tem feito um trabalho importante de conscientização e esclarecimento desse voto eletrônico que é super-auditado. Me parece que existe antes de tudo uma tentativa de contestar o resultado das urnas antecipadamente, seja pelo voto impresso ou não.
Se for com voto impresso, ele [Bolsonaro] vai ficar pedindo recontagens indefinidamente. Foi o que aconteceu nos EUA com o George Bush e o Al Gore até o Gore desistir em nome da democracia americana em 2000. E se for pelo voto eletrônico, como você não tem como ficar pedindo recontagem sempre, seria uma bobagem porque a máquina daria o mesmo resultado sempre, ele vai partir para desqualificar o sistema — dizendo que o sistema é fraudado. Mas qual é o indício disso?
Hoje a Comissão de Constituição e Justiça é controlada por uma deputada bolsonarista [Bia Kicis (PSL-DF)] que faz parte do grupo do presidente que divulga essa versão de fraude do voto impresso — mas tampouco apresentou provas disso. E a CCJ tem uma força-tarefa, digamos assim, do Bolsonarismo.
Essa questão passa na CCJ, mas as articulações do Barroso com vários partidos, inclusive da base do governo, partidos que vêm elegendo deputados, senadores, governadores, deputados estaduais, prefeitos, chegou a uma conclusão de que não faz sentido.
É uma tentativa de politizar o resultado da eleição antecipadamente. Se ganhar ou se perder, eu acho que a contestação será a mesma. Se perder com o voto impresso, você vai para recontagens indefinidas, sempre tentando encontrar justificativas. E com o voto eletrônico isso é resolvido instantaneamente, não teria muito por onde ir.
BBC News Brasil — Por que esses 11 partidos pularam fora da ideia de haver voto impresso?
Melo — Você tem muitos parlamentares que se elegeram e se reelegeram por essas regras do jogo de hoje — ganharam e perderam eleições com essas regras. Para mudar essas regras, você vai criar uma insegurança completamente desnecessária.
Interessa a quem? Interessa a quem acredita em teorias conspiratórias, não necessariamente por má fé. Mas tem aquele que não acredita em teoria conspiratória. Ele quer ter um instrumento para tumultuar a eleição do ano que vem. É necessário separar essa discussão em grupos.
Tem os que acreditam no sistema do voto eletrônico. Ponto. Tem aqueles que se elegeram constantemente com esse sistema e que não têm razão para duvidar. Tem aqueles que acreditam em conspiração. E tem aqueles que têm uma visão de tumultuar o processo eleitoral do ano que vem.
BBC News Brasil — A eleição de 2022 já não está tumultuada desde já? Porque com o voto impresso derrubado, um dos lados vai argumentar que não foi aprovada uma forma mais transparente de contagem.
Melo — Vai, assim como ocorreu nos EUA também. O Trump fez isso o tempo todo depois que se ampliou o voto pelo correio por causa da questão da covid. A questão é se as instituições e o eleitorado caem nessa ou não. Você tem pesquisas dizendo que a maior parte dos pesquisados tem confiança no voto eletrônico.
Para resumir tudo em uma gíria, isso chama-se SPP — se pegar pegou. Vai depender de instituições e do esclarecimento da maioria da população. O que TSE tem feito, através do ministro Barroso, é tentar esclarecer a credibilidade da urna eletrônica. Foi votado no Congresso? Perdeu? Então resta ao TSE fazer uma grande campanha nos meios de comunicação de esclarecimento, reforçando a credibilidade no sistema.
Vai haver aqueles que vão questionar [o resultado das eleições], mas que questionariam com qualquer argumento, que foi o que vimos nos EUA. É uma colagem aqui do que vimos da alt.right americana. Houve várias contestações lá e as cortes estaduais negaram todos os pedidos do trumpismo. E a Suprema Corte também. Isso provavelmente vai acontecer aqui. O que temos que ver é se teremos instituições com a mesma clareza que houve lá.
BBC News Brasil — Na sua opinião, Bolsonaro sai enfraquecido nesse episódio por não emplacar o voto impresso? Ou não?
Melo — O presidente está jogando. Ele está preparado para ter o voto impresso e para não ter o voto impresso. Ele constituiu uma narrativa e seus eleitores acreditam nisso. A questão é: qual é o resultado que sairá das urnas? Se há questionamentos, que se faça como outros países fazem. Chamem observadores internacionais. Ele vai contestar porque faz parte da estratégia dele.
BBC News Brasil — Se perdeu um certo tempo discutindo o voto impresso. Houve alguma melhora no sistema eleitoral que se deixou de discutir por causa desse debate?
Melo — Sim. Por exemplo, em 2017 o Brasil fez mudança pontuais que foram importantes — acabar com voto proporcional de coligação que deformava bastante o sistema. Há uma tentativa de retrocesso em relação a isso — de se desfazer essa mudança importante de 2017. Isso ficou obscurecido por essa discussão do voto impresso.
Também pode haver aí uma cortina de fumaça com o voto impresso. Hoje, quando a CPI está discutindo coisas importantes sobre uma eventual corrupção no governo Bolsonaro, o presidente fez novas declarações sobre o voto impresso. Isso é tudo um problema do que virou a política brasileira — um conflito constante, com falta de entendimento, com pelo menos um dos lados querendo virar a mesa.
BBC News Brasil — Novas regras para as eleições do ano que vem precisam ser aprovadas até outubro, um anos antes do pleito. Existe tempo hábil ainda para essas mudanças acontecerem?
Melo — Quando a política quer, a política faz. Você vota na Comissão, isso vai para o plenário da Câmara e depois para o Senado. Se houver consenso, vontade política geral, você aprova isso rápido. Mas não há. Temos julho, agosto e setembro. É um tempo curto e não há consenso.
BBC News Brasil — Esse debate sobre o voto impresso pode gerar violência na eleição do ano que vem, ou ataques a instituições?
Melo — Voltamos ao caso dos EUA, o 6 de janeiro [a invasão do Congresso americano em janeiro deste ano por apoiadores de Trump]. Estamos falando de uma democracia de 1776, com constituição única desde 1787, com quase 50 presidentes eleitos pelo voto direto. Nenhum momento de ruptura democrática. E ainda assim você teve o seis de janeiro?
Se você olha para o Brasil, onde a democracia é claudicante, tropeça, volta — ainda estamos tentando estabelecer isso. Retomamos a democracia em 1985. Tivemos de lá para cá dois impeachments. Então se houve [violência] lá, é evidente que pode haver aqui. E talvez alguns grupos estejam investindo nisso. Vai depender da clareza da sociedade. Por isso que campanhas de esclarecimento precisam ser feitas. Vai depender da firmeza e da consolidação das instituições democráticas no Brasil. Está em aberto. Riscos existem, é claro que existem.