Por que 120 mil famílias brasileiras correm risco de serem despejadas em janeiro
Lei federal e decisão do STF que proibiram despejos durante a pandemia perdem validade em dezembro, caso não sejam prorrogadas
Mais de 120 mil famílias brasileiras podem perder suas casas a partir de janeiro, caso uma decisão do STF (Supremo Tribunal Federal) e uma lei federal que proibiram despejos durante a pandemia não tenham seus prazos de vigência prorrogados.
O levantamento foi feito pela Campanha Despejo Zero, lançada em julho de 2020 e que reúne organizações e movimentos sociais que atuam contra a remoção forçada de famílias de suas moradias.
Segundo os números mais recentes da campanha, o Brasil somava em outubro 123,2 mil famílias ameaçadas de despejo, um crescimento de 32% em relação levantamento anterior, de agosto deste ano, quando 93,5 mil famílias estavam sob risco.
Desde o início da coleta de dados, em agosto de 2020, o crescimento no número de famílias ameaçadas é de 554%.
"O aumento no número de ameaças de despejo diz respeito à crise econômica e ao crescente número de pessoas que estão indo morar em ocupações mais recentes", avalia Raquel Ludemir, coordenadora na Habitat Brasil, ONG que atua na área do direito à moradia.
"São famílias que perderam seus empregos, não conseguem mais pagar aluguel, têm fontes de renda precárias, estão convivendo com aumento da conta de luz, do gás de cozinha e muitas vezes passando fome, e têm uma espada na cabeça dizendo que estão ameaçadas de despejo", diz Julia Franzoni, advogada associada à organização de direitos humanos Terra de Direitos e integrante do grupo de pesquisa Labá, da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro).
23,5 mil famílias despejadas na pandemia
Desde agosto de 2020, quando a campanha passou a compilar os dados a partir de denúncias de movimentos sociais e números das defensorias públicas locais, 23,5 mil famílias já foram despejadas no Brasil, mesmo estando em vigor uma decisão do STF (ADPF 828), uma lei federal (Lei 14.216/2021) e diversas leis estaduais para impedir remoções em meio à crise sanitária.
"A resposta do Estado na pandemia aos grupos mais vulnerabilizados é uma resposta de violência", diz Franzoni.
"Desde 2016, há um desmonte das políticas de moradia, com o fim do Ministério das Cidades e a destruição do Minha Casa, Minha Vida, que era vocacionado para atender a população mais pobre, com renda de zero a três salários mínimos. Seu substituto, o Casa Verde e Amarela, não atende em nada a demanda dessa parcela da população", considera a advogada.
Ela destaca o corte de 98% no Orçamento de 2021 dos recursos destinados ao FAR (Fundo de Arrendamento Residencial), que financiava as obras da faixa 1 do programa federal de habitação, voltada às famílias com renda mensal de até R$ 1.800.
Procurado, o Ministério do Desenvolvimento Regional - que assumiu o tema de habitação após o fim do Ministério das Cidades em 2019 - informou que, desde aquele ano, mais de 1,1 milhão de moradias foram entregues para pessoas de diversas faixa de renda.
Ainda segundo a pasta, desde o lançamento do Casa Verde e Amarela, em agosto de 2020, não houve atrasos nos pagamentos via Fundo de Arrendamento Residencial, e cerca de 45 mil unidades habitacionais da faixa 1 do programa foram entregues a famílias de baixa renda.
O ministério diz ainda que modalidade de locação social do programa continua "em estudo".
Com câncer, teve a casa demolida e agora vive de favor
Uma das vítimas dos milhares de despejos ocorridos em meio à pandemia, Denise Rodrigues dos Santos, de 59 anos e moradora de São Bernardo do Campo, na Grande São Paulo, foi removida há poucas semanas da casa onde morou por décadas na favela Parque São Bernardo.
"Eu comprei meu terreno há muitos anos. Comprei de terceiros e construí, com muito sacrifício", conta Denise, que está em tratamento contra um câncer de mama e tem um filho que sofre de uma doença degenerativa que leva à perda dos movimentos do corpo.
"Era tudo para mim, onde eu coloquei tudo que eu consegui ao longo da minha vida. E, do nada, o prefeito tirou minha casa. Eu estava ali há mais de 40 anos e tinha gente que tinha mais tempo do que eu", diz a cabeleireira.
Ela afirma que nunca recebeu uma notificação da prefeitura para a remoção e que, no dia da ação de despejo, a GCM (Guarda Civil Metropolitana) agiu com brutalidade e ela foi direcionada a um local de moradia provisória insalubre. Horas depois de Denise ter sido retirada do local, a casa onde ela viveu por décadas foi demolida.
"Sabe quando você está incrédula com o que está acontecendo com você? O desaforo, a humilhação, a falta de respeito. Eu nunca pensei em passar por isso", afirma.
Denise agora está vivendo de favor com uma amiga. "Jamais passou pela minha cabeça estar vivendo uma situação dessas. De repente, nem casa, nem moradia, nem móveis, nem nada."
Questionada sobre por que famílias foram removidas no Parque São Bernardo, mesmo com a vigência da Lei 14.216 e da ação do STF que proíbem despejos em meio à pandemia, a Prefeitura de São Bernardo do Campo afirma que o Tribunal de Justiça concedeu liminar que autorizou a remoção de moradias e comércios instalados irregularmente em terreno municipal e em área de risco, nas margens do córrego Saracantan.
"O local recebe atualmente obras de canalização e melhorias viárias, uma vez que o córrego possui vazão insuficiente para drenagem, podendo ocasionar inundações no período de fortes chuvas, colocando em risco os munícipes que lá estavam", diz a prefeitura.
A gestão municipal afirma ainda que os moradores foram notificados há um ano e inseridos no Programa Renda Abrigo, de auxílio aluguel.
"Em relação à personagem citada, a munícipe foi realocada provisoriamente em unidade habitacional do município, no entanto, no último dia 16 de novembro, informou à Prefeitura que desocupou o espaço e se mudou para a casa de parentes. Ela optou por receber o Programa Renda Abrigo (auxílio aluguel) para subsidiar a moradia transitória até a entrega da unidade habitacional definitiva", afirma a prefeitura, quanto ao caso de Denise.
Milhares de famílias sob risco a partir de janeiro
A Campanha Despejo Zero alerta que casos como o de Denise podem se multiplicar a partir de janeiro de 2022.
Em 3 de junho deste ano, o ministro Luís Roberto Barroso, do STF, determinou a suspensão por seis meses de ordens ou medidas de desocupação de áreas habitadas antes de 20 de março de 2020, quando foi aprovado o estado de calamidade pública devido à pandemia.
Segundo Barroso, que deferiu parcialmente cautelar em ação apresentada pelo Psol, o objetivo da decisão foi "evitar que remoções e desocupações coletivas violem os direitos à moradia, à vida e à saúde das populações envolvidas".
Como o prazo de seis meses passou a ser contado a partir da decisão, caso não seja prorrogada, ela deixa de valer em 3 de dezembro.
No entanto, até o dia 31 de dezembro, a Lei 14.216 garante a suspensão de todos os processos e procedimentos envolvendo despejos no país. Mas ela só abrange ocupações urbanas, enquanto a cautelar do STF impede despejos tanto na zona rural, como nas cidades.
"Temos mais de 123 mil famílias ameaçadas de despejo, em condições precárias, que vão ser colocadas na rua se não conseguirmos a extensão dessas medidas protetivas", diz a advogada Julia Franzoni.
No médio a longo prazo, segundo ela, é necessário retomar as políticas de habitação.
"É preciso uma retomada das políticas de moradia voltadas às populações que mais precisam, a reconstrução do sistema nacional de política urbana, a retomada dos financiamentos para a construção popular e da regularização fundiária", defende a porta-voz da Campanha Despejo Zero.
"As famílias não podem viver em transitoriedade permanente, numa situação de precariedade eterna. A crise sanitário agravou o contexto social no Brasil, de fome, desemprego e desestruturação dessas famílias mais pobres. Então é preciso garantir direitos."
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