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Por que a leishmaniose avança no sul do Brasil e o que os cães têm a ver com isso

Primeiros casos da doença aparecem em Porto Alegre e Florianópolis; pesquisadores falam em expansão do ciclo de transmissão silvestre.

27 out 2017 - 07h32
(atualizado às 07h48)
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Cães são considerados intermediários do parasita para humanos, e recomendação do Ministério da Saúde é eutanásia
Cães são considerados intermediários do parasita para humanos, e recomendação do Ministério da Saúde é eutanásia
Foto: iStock

Porto Alegre e Florianópolis registraram casos de leishmaniose visceral humana pela primeira vez na história. Por trás do avanço da doença, cuja prevenção pode envolver a eutanásia de cães, estão questões de vulnerabilidade social, migração, mudanças climáticas e até de ocupação irregular de áreas de mata.

Caracterizada por sintomas pouco específicos, como febre de longa duração e perda de peso, a leishmaniose visceral nem era considerada nos protocolos de saúde do sul do Brasil, tanto que os primeiros casos em Porto Alegre começaram a ser tratados como suspeitos de leucemia.

A doença é causada por protozoários do gênero Leishmania, transmitidos por mosquitos. Em estágio mais avançado, a doença causa inchaço do fígado e do baço, comprometendo o correto funcionamento do sistema hematológico, e pode atingir também a medula óssea.

Se não tratada, a leishmaniose pode levar à morte em 90% dos casos, segundo o Ministério da Saúde.

A primeira morte na capital gaúcha foi registrada em setembro de 2016. Nos meses seguintes, foram detectados quatro novos casos em Porto Alegre. Três pessoas morreram. Em agosto passado, Florianópolis registrou a primeira contaminação humana. Atualmente, dois pacientes são monitorados na capital catarinense.

O que chama atenção é que não foi identificado na região o vetor tradicional de transmissão presente nas demais áreas urbanas do país, o mosquito-palha (Lutzomyia longipalpis). Por isso, os cientistas acreditam que o inseto responsável pela transmissão da doença no sul é de hábitos silvestres, presente em regiões de mata.

Uma pesquisa do Ministério da Saúde em parceria com a Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) tenta identificar exatamente quais espécies de mosquitos estão envolvidas na transmissão da doença em Florianópolis.

"A espécie que atua como vetor na região sul é de baixa resistência em áreas urbanas, por isso acreditamos que há um potencial menor de transmissão", diz o coordenador substituto de Doenças Transmissíveis do Ministério da Saúde, Francisco de Lima Júnior.

Segundo Mariana Teixeira, doutora em Ciências Veterinárias com ênfase em Parasitologia na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), a expansão desordenada das cidades, assim como mudanças climáticas também podem estar relacionadas ao aparecimento da doença nas regiões metropolitanas gaúcha e catarinense.

"O vetor silvestre da leishmaniose se adapta à zona urbana à medida que as cidades avançam para a mata. Além disso, uma das proteções que a região sul tinha contra a expansão do mosquito era o inverno, e ultimamente as estações do ano já não são mais tão bem definidas", explica.

Intermediários

Para os pesquisadores, a transmissão do protozoário pelo mosquito silvestre, ainda menos adaptado às áreas urbanas, explicaria a expansão lenta da leishmaniose para humanos na região.

Mas casos em animais domésticos já ocorrem desde 2008 - os primeiros foram registrados em São Borja, na fronteira do Rio Grande do Sul com a Argentina. Por isso, quem tem cães em casa está sendo orientado a examiná-los para detectar protozoário leishmania infantum e, em caso positivo após dois testes, a eutanásia é recomendada.

A orientação segue protocolos do Ministério da Saúde e da Organização Pan-americana de Saúde (Opas), mas levanta polêmica.

Em Porto Alegre, uma decisão judicial obrigou a prefeitura a suspender a eutanásia de 12 cães, após protestos de ativistas.

Pela convivência no ambiente doméstico, os cães são vistos como intermediários importantes da transmissão da leishmaniose visceral para humanos: o mosquito pica um animal contaminado e passa adiante o protozoário causador da doença ao picar outro animal ou uma pessoa.

"O fluxo migratório urbano favorece a dispersão geográfica da doença, pois as pessoas transportam seus cães de áreas endêmicas para outras áreas, muitas vezes sem saber que o animal está contaminado", aponta Lima Júnior.

Perda de peso, aparecimento de feridas ou descamações de pele, queda anormal de pelos, inchaço das pernas e sangramento do nariz são efeitos da leishmaniose visceral em cachorros. No entanto, a doença pode ser assintomática em muitos casos.

Mesmo que o cão não apresente os sintomas típicos da leishmaniose, ele pode ser um intermediário da transmissão apenas pela presença do protozoário no organismo.

Áreas vulneráveis

Segundo Cíntia Petroscky, bióloga do Centro de Controle de Zoonoses de Florianópolis, já havia registros de leishmaniose visceral canina na cidade desde 2010.

De lá para cá, mais de 11 mil cães foram testados, sendo quase 400 positivos.

Os primeiros casos de contaminação em cães foram identificados no entorno da Lagoa da Conceição, área de grande circulação turística, que mescla residências de alto padrão com moradias simples, onde a população mais pobre vive em condições precárias de saneamento e higiene.

Diferentemente do mosquito Aedes egypti, vetor da dengue, que se reproduz em água limpa, o mosquito que transmite a leishmaniose prefere ambientes úmidos com farto material orgânico.

No caso de Porto Alegre, todas as vítimas da leishmaniose visceral humana residiam no Morro Santana, área de mata que vem sendo ocupada de maneira irregular nos últimos anos.

São da mesma área os 12 cães contaminados, que foram recolhidos pela prefeitura e passariam por eutanásia. Os animais seguem isolados em um canil municipal.

Em Florianópolis, os responsáveis por cães doentes que não queiram seguir a recomendação da eutanásia devem assinar um termo de responsabilidade.

De acordo com Fábio Indá, membro da Comissão de Saúde Pública do Conselho Regional de Medicina Veterinária de Santa Catarina, o termo foi criado como instrumento de segurança, pois o proprietário do animal deve assumir os riscos de manter um cão contaminado em casa.

"É uma questão cultural que envolve uma relação afetiva delicada, porque hoje o cachorro é um membro da família, mas no caso da leishmaniose há um risco coletivo que não pode ser ignorado", assinala o veterinário, mestre em Biotecnologia pela UFSC.

Alternativas

Há apenas um medicamento liberado pelo Ministério da Agricultura para o tratamento da leishmaniose visceral canina, porém ele não é considerado 100% eficaz.

Embora reduza os sintomas no cão, o medicamento não elimina totalmente o protozoário, de forma que o animal continua sendo um repositório da doença.

"Para cães particulares, o uso do medicamento é uma opção, desde que associado a outras medidas, como usar coleiras repelentes e manter o cachorro segregado de áreas de mata", destaca Anderson de Lima, diretor da Coordenadoria-geral de Vigilância em Saúde de Porto Alegre.

Como medida de saúde pública, no entanto, Lima considera o medicamento inviável devido ao alto custo, que pode passar de R$ 2 mil por ciclo de aplicação - o medicamento exige reforço a cada quatro meses - e ainda seria necessário acompanhamento periódico de um médico veterinário para monitorar os níveis de carga parasitária no organismo.

O Ministério da Saúde está conduzindo pesquisas para avaliar a relação custo-efetividade do uso de coleiras repelentes como medida de controle.

A vacina preventiva, que pode ser aplicada somente em cães saudáveis, não entrou nas políticas do governo porque os estudos de eficácia foram considerados insuficientes.

A primeira vacina é aplicada em três doses, depois são necessários reforços anuais de aplicação única.

Como evitar a contaminação

Apesar de ser grave, a leishmaniose visceral em humanos tem tratamento com medicação, mas não vacina.

O combate à doença passa pelo controle da proliferação do mosquito. A limpeza de material orgânico de jardins e a destinação correta do lixo são fundamentais. O uso de inseticidas e repelentes, bem como de telas milimetradas em portas e janelas também são recomendados.

Para a bióloga Cíntia Petroscky, o caso da leishmaniose é similar ao da dengue, da zika e da chikungunya, que teriam seu risco significativamente reduzido com medidas básicas de higiene e melhores condições de saneamento.

"Essas são chamadas doenças negligenciadas pela Organização Mundial da Saúde. A leishmaniose é negligenciada mesmo, porque quase nem se fala sobre ela", conclui.

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